Acontecimento do ano Internacional

Foi um evento que nos apanhou desprevenidos. Por isso, tem sido tão difícil classificar. Mas podemos arriscar. Terá sido uma espécie de <em>Putsch</em> à americana, resultante polarização e tensão social crescente. A nível interno este episódio poderá ser instigador de outros semelhantes. E tem uma forte carga simbólica. A nível externo é uma machadada à credibilidade norte-americana que pode ser aproveitada de diversas maneiras.
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2021 começou com um ataque à democracia norte-americana - a invasão do Capitólio enquanto decorria a ratificação da vitória de Biden. Militantes tomaram a sede do sistema político. A investigação continua, sem grandes conclusões. E, perante o absurdo da situação, a classificação do episódio tornou-se um desafio. Porém, hoje, à distância de quase um ano, arriscamos a responder a duas questões fundamentais.

1. Tecnicamente não foi uma tentativa de golpe de Estado. Isso implica mais que a simples tomada de poder. Parte de dentro do próprio Estado, do funcionalismo público permanente, como os militares ou as polícias. Ou seja, é preciso que a burocracia estatal derrube a liderança política para instaurar um novo regime. Aconteceu, por exemplo, no Egipto em 2013, em Portugal em 1974 e esteve quase para acontecer na Turquia em 2016. Não foi este o caso.

2. Aqui, os atacantes perturbaram as funções básicas do processo democrático. Quiseram pôr em causa a normal transição pacífica do poder. Para isso invadiram uma autoridade executiva. Mas foram civis que agiram por vontade própria e não actores estatais. Como tal, é uma hipótese ter sido uma insurreição violenta contra um acto eleitoral. Mas este tipo de situação é mais comum em democracias frágeis ou recentes. Há um exemplo das eleições nos Camarões em 2020, ou no Bangladesh em 2015 e 2018. Washington, em 2021, não cabe totalmente aqui.

3. Há dúvidas quanto à espontaneidade do movimento. Pareceu orgânico e não estruturado. Porém vemos um lastro de militância organizada. Nasce da desinformação e tem uma percepção conspirativa em relação ao Estado. Uma hora antes, Trump poderá ter instigado a marcha sobre o Capitólio, insistindo que a eleição tinha sido fraudulenta. "We will never give up, we will never concede". A partir desta frase, sentindo-se legitimados, avançaram para a sedição. Ou seja, vemos aqui mobilização e possível estrutura, ainda que profundamente diluída no mundo online e apenas à espera do momentum.

4. Por isso, a melhor descrição talvez venha dos alemães. Foi um Putsch. Um ataque desorganizado, simbólico, contra uma autoridade legal e geralmente com uma motivação de etno-nacionalista. Aconteceu em Munique, em 1923, quando os nazis tentaram, sem sucesso, depor o governo bávaro. Já o Putsch de Washington foi o resultado da confluência entre falhas segurança e o ímpeto de um movimento turbulento de comunidades extremistas online que se uniram em apoio às alegações de fraude eleitoral e quiseram "restaurar" a democracia.

1. Foi um lembrete da fragilidade da democracia. E que não há um excepcionalismo norte-americano. A história poderá dar-nos algumas lições. Tal como o Putsch de Munique, foi absurdo e falhou. Mas o movimento que representam permanece. Ou seja, a raiva que impeliu o ataque não vai desvanecer tão cedo. Brota de uma ilusão perigosa, que tem eco nas redes sociais.

2. A decepção com a derrota de Trump e a pandemia, somadas à desconfiança no Estado e à preocupação com os direitos constitucionais, vão continuar a contribuir para uma militância violenta. Os EUA vivem, cada vez mais, num ambiente político polarizado. Está a ser inflamado por comunicações rápidas e por um declinante consenso sobre o que são os factos. Como tal, podemos esperar continuação da agitação em muitas formas: da pacífica à violenta, da anárquica à coordenada.

3. Prejudicou a posição já vacilante dos EUA como farol da democracia. Agora, os adversários veem neste episódio uma confirmação disso. Ao mesmo tempo reivindicam falsas equivalências entre os desordeiros do Capitólio e os activistas pró-democracia dos seus respectivos países. Assim, justificam mais facilmente repressões contra dissidências. E, a longo prazo, este episódio também limita os esforços de Biden no revigorar da promoção da democracia. É um obstáculo aos esforços para reabilitar a credibilidade e influência de Washington.

4. Além disso, a polarização social é uma vulnerabilidade que poderá ser amplamente explorada por actores externos, nomeadamente através de desinformação online. E isso, juntamente com a violência no Capitólio, alimenta as narrativas revisionistas de que o sistema de democracia ocidental liderado pelos EUA está em declínio, quando comparado com a governance e a alegada estabilidade de alguns regimes autoritários.

Investigador/Professor na NOVA School of Law

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