Mercado imobiliário: não é doença antiga, o desafio é diferente

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Há já algum tempo que o debate sobre o mercado imobiliário português tem sido capturado por duas expressões que parecem resolver tudo: “bolha” ou “não bolha”. O problema é que esta dicotomia é demasiado pobre para explicar um fenómeno estruturalmente mais complexo.

 Há razões sólidas para rejeitar a tese de uma bolha clássica, daquelas que conhecemos em 2007/08: o rácio loan-to-value médio do crédito habitação está hoje abaixo de 70% (no pré-crash ultrapassava 90%), a banca opera com exigências de capital e stress tests que não existiam há 15 anos, e a construção anual está ainda cerca de 50% abaixo do nível pré-2008 (cerca de 26 mil casas/ano vs mais de 50 mil/ano antes da crise). Não há crédito fácil, não há sobreconstrução e não há alavancagem bancária massiva. O mercado não está a repetir a doença antiga.

 Mas isso não significa que esteja saudável. O que existe hoje é uma doença estrutural diferente. Portugal combina uma oferta cronicamente insuficiente (licenciamento lento, custo de construção elevado, pipeline curto), com uma procura que deixou de ser doméstica e passou a ser global.

 O relatório da Comissão Europeia, publicado no passado dia 15 de outubro, estima uma sobrevalorização próxima dos 35% face a fundamentos internos e mostra deterioração clara da acessibilidade. O UBS Bubble Index (setembro 2025) lembra que, quando os preços reais estabilizam globalmente, os mercados periféricos são os primeiros a perder tração. E, apesar disso, os dados do INE mostram que Portugal continua com preços a subir dois dígitos (+17,2% no último trimestre homólogo) e com transações a crescer (+15% para 43 mil unidades), sinal de que a subida não é sustentada por crédito fácil, mas por desequilíbrio real: pouca oferta, procura resiliente.

 Se aceitarmos que a questão não é “bolha ou não bolha” mas a qualidade da resposta do sistema, o que importa é para onde o país pode evoluir nos próximos 3–4 anos.

 No cenário base, as medidas públicas recentemente anunciadas (BEI, PPP, IVA 6% em segmentos elegíveis) avançam, mas em velocidade desigual entre municípios; o licenciamento melhora apenas marginalmente e a oferta cresce, mas insuficientemente. Neste regime, os preços nominais tendem a subir 2% a 4% ao ano e as rendas em novos contratos 3% a 5% ao ano, com acessibilidade a estabilizar, mas não a recuperar. É um cenário de “contenção sem resolução”.

 Num cenário otimista, há execução rápida com prazos vinculativos de licenciamento, padronização contratual nas PPP, libertação de solo e incentivos condicionados a acessibilidade real. Neste ambiente, a produção anual pode crescer 40 a 60% até 2028, as rendas entram em estabilização e os preços reais convergem para zero ou ligeiro negativo não por colapso, mas por absorção de oferta. A correção é “ordenada”, não violenta.

 Num cenário de stress, a execução falha, as regras oscilam, a incerteza regulatória regressa e a oferta não amplia. Com procura externa a persistir, os preços podem voltar a acelerar em hotspots 6% a 9% ao ano e as rendas podem agravar-se 7% a 10% ao ano nos centros, empurrando a classe média para fora do sistema e transferindo o risco do domínio financeiro para o domínio social e político.

Um exemplo de inovação que tenho acompanhado e que me cria uma clara esperança, embora atue noutra variável do problema (a temporalidade do stock), é o modelo que permite a venda da nua-propriedade mantendo o usufruto vitalício. Não cria oferta, mas desbloqueia património imobilizado e torna previsível a futura entrada desse stock no mercado. Ao reduzir incerteza na transmissão, diminui o risco de correções desordenadas e cria horizonte para capital de longo prazo, sem despesa pública.

A discussão certa não é rotular o ciclo. É saber se Portugal tem um plano credível para compatibilizar esta procura global com a vida das pessoas que aqui vivem e trabalham. Sem resposta do lado da execução, o risco não desaparece: desloca-se. Não para o balanço dos bancos, mas para o corpo social do país.

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