A 4 de dezembro de 2013, uma vaga de júbilo percorreu a Geórgia, país do Cáucaso, quando a UNESCO juntou oficialmente à lista representativa do Património Cultural Imaterial da Humanidade o método ancestral de produção de vinho em enormes potes de argila, os qvevris (ou kvevris)..Para os georgianos, o que se celebrou no outono de há quase sete anos, nas margens dos mares Negro e Cáspio, na vasta cordilheira do Cáucaso e nas estepes centrais, é uma tradição que se liga à própria afirmação milenar do território. Os grandes potes em forma de limão, enterrados no solo até ao gargalo (qvevri, traduzido, significa "aquilo que está enterrado"), cuidam de fermentar, envelhecer e acarinhar a matéria-prima que ocupa a atenção do ser humano há perto de 9000 anos naquela região. Um berço provável para a bebida que obceca a humanidade há inumeráveis gerações e que tem na sua origem carga suficiente de segredo, mistério e narrativa épica..Na realidade, quando brindamos com um Cabernet, Merlot ou Alicante, há um contínuo cronológico que liga estes nobres vinhos à sua discreta antepassada. Numa região compreendida entre os atuais Líbano, norte da Síria e do Irão, ao longo da costa mediterrânica da Turquia e do mar Negro, através da região do Cáucaso, despontava espontaneamente, há milhões de anos, a Vitis vinifera. No aconchego das folhas da videira, pendem os bagos de uva que, num tempo impreciso, terão despertado a atenção do homem. A natureza terá cuidado de engendrar a química da fermentação, com as condições ideais de humidade e calor. Por ação de leveduras, os açúcares presentes nas uvas convertem-se em álcool (etanol) e dióxido de carbono, assim como em produtos secundários..Ao ser humano ter-lhe-á cabido o papel de descobridor destas uvas selvagens, trabalhadas por microrganismos. Perdiam os bagos em doçura para ganharem um outro poder: o torpor alcoólico. Isso mesmo defende o arqueólogo norte-americano Patrick McGovern, que, a par de um grupo de perto de 20 investigadores de áreas tão distintas como a arqueobotânica e a climatologia, promoveram em 2017 um estudo na Geórgia, no encalço das primeiras civilizações do vinho: "Early Neolithic wine of Georgia in the South Caucasus.".McGovern, também autor do livro Uncorking the Past: The Quest for Wine, Beer, and Other Alcoholic Beverage (2009), apresenta-nos o vinho como mistério: "Tem uma substância que altera a mente e que surge do nada", como considerariam os nossos antepassados. Para o autor, docente na Universidade da Pensilvânia, abre-se campo para fazer do vinho o centro das religiões. E não só, a bebida do romano Baco e do grego Dionísio, antes de se tornar uma moeda de troca nas transações nacionais e internacionais, foi tentativa de medicamento e, desde sempre, um lubrificante social..O vinho é também, na sua origem, exemplo do engenho humano, na domesticação e reprodução de espécies vegetais, na cooperação dentro do grupo. Para encontrarmos a cultura da videira no Cáucaso, e quem a cuidasse, teve a humanidade de dar o passo seguinte, passar do nomadismo para o sedentarismo e inventar a agricultura. 10 000 anos a.C., os humanos inauguravam um novo período, o Neolítico. A Idade da Pedra Polida transporta uma invenção à qual o vinho prestará até hoje o seu tributo: a técnica que alia argila e fogo para obter a cerâmica..A gula humana por fermentações.Investigar a maternidade de um produto anterior à invenção da escrita levou a equipa de investigadores envolvida no já referido estudo a vasculhar milhares de fragmentos de cerâmica, alguns com mais de 7000 anos, num território no interior da Geórgia, 50 quilómetros a sul da capital, Tbilissi..Encontrar provas milenares de processos fermentativos obriga a vasculhar artefactos que tenham abrigado esta transformação. Nos locais arqueológicos de Shulaveris Gora e Shomutepe Gora, as encostas atualmente arborizadas terão sido adornadas com videiras que forneceriam a matéria-prima que, ainda hoje, setenta séculos volvidos, deixam uma marca indelével nas cerâmicas ali escavadas. Analisadas em laboratório, as cerâmicas revelam vestígios de ácido tartárico, indício de que o vinho terá estado em contacto com a argila..Vinho que, na época, seria uma bebida sazonal, para consumo antes de se iniciar uma segunda fermentação, a acética. O néctar inebriante transformava-se em vinagre, não obstante as estratégias desenvolvidas para conservar os vinhos nos potes que os abrigavam, como o uso de resina de pinho como material isolante no interior dos artefactos..Quase certo, de acordo com Steve Charters, docente na Burgundy School of Business, em Dijon, França, autor do ensaio Wine & Society: The Social and Cultural Context of a Drink, é que os atuais perscrutadores de olfato e palato dentro do copo de vinho iriam encontrar no passado remoto uma bebida despida de sedutor nariz e boca. A beberagem neolítica seria bastante turva, oxidada e com baixo teor alcoólico. Teria, contudo, um traço que a associa ao anúncio da UNESCO de dezembro de 2013. A cultura neolítica Shulaveri-Shomu - em alusão aos dois locais arqueológicos já referidos - moldava gigantes potes em argila, antecessores dos qvevris. Na época, acolhiam vinho, mas também grãos de cereais e mel. Uma gula humana por fermentações (alcoólicas, como a cerveja e o hidromel, e não alcoólicas, como o iogurte) que não teve a exclusividade georgiana. Longe, nas planícies da antiga China, próximo ao rio Amarelo, a cultura neolítica Jiahu revelava, sete mil anos antes de Cristo, apetência e técnica para produzir bebidas fermentadas com base em cereais e frutos silvestres. No território do atual Irão, no sítio arqueológico de Hajji Firuz Tepe, nas montanhas de Zagros, encontram-se, uma vez mais, vestígios da produção embrionária de vinho, desta feita no século V a.C..Uma atração humana pelo álcool que poderá, inclusivamente, contrariar a ligação óbvia entre as culturas dos cereais e a produção de pão. Num artigo escrito em agosto de 2018 para o jornal norte-americano Financial Timesm>, Robin Dunbar, antropólogo britânico e psicólogo evolucionário, também especialista em comportamento de primatas, sublinha a ideia da produção ancestral, ainda no Neolítico, de grãos como o trigo e a cevada com um propósito diferente do pão, antes uma papa que pudesse fermentar. Dunbar deixa-nos o exemplo de espécies de trigo cultivadas no Levante com uma estrutura de glúten pouco atrativa para obter um bom pão..O "macaco bêbedo" e o vício por fruta madura.No artigo já citado, Robin Dunbar sublinha a teoria defendida por diferentes autores de que a relação do vinho com a história humana, mais do que uma narrativa do engenho para tirar à uva néctares preciosos, está na nossa natureza primata. Os nossos genes contam uma história de milhões de anos de adaptação ao meio. "O álcool ativa o mecanismo do cérebro, que está envolvido na construção e manutenção de amizades", sublinha Dunbar, e adianta que este mecanismo, associado às endorfinas, atua no nosso organismo como um opiáceo. A euforia que conhecemos associada, por exemplo, a um serão de convívio servido com bons copos. De acordo com o antropólogo, citando o mesmo artigo, "os grupos sociais de primatas, ao contrário da maioria dos outros animais, contam com vínculos para manter a coerência social. E, para os humanos, é aqui que uma garrafa de vinho tinto partilhada desempenha um papel poderoso"..Por sua vez, Robert Dubley, professor de Biologia, na Universidade da Califórnia, recua a um passado remoto, cerca de 40 milhões de anos, para fundar a sua teoria sobre a apetência humana para as fermentações. Chama-lhe, prosaicamente, a hipótese do "macaco bêbedo" e motivou o livro The Drunken Monkey: Why We Drink and Abuse Alcohol (2014). Segundo Dubley, a atração pelo álcool conferia aos nossos antepassados arborícolas, anteriores ao Homo sapiens, vantagem na competição por frutos maduros. Num mundo mais quente, o calor coadjuvava nos processos fermentativos na casca e na polpa da fruta, convertendo os açúcares aí presentes em diferentes formas de álcool, o mais comum o etanol. Inebriado pelo vapor de etanol que se dispersava ao vento, o "macaco" percebia a localização da fruta madura e, consequentemente, daquela mais apetecível em termos nutricionais. Ainda de acordo com a hipótese de Dubley, que não merece consenso na comunidade científica, uma das provas de que esta assinatura pré-histórica reside nos nossos genes manifesta-se em enzimas específicas do organismo para metabolizar o etanol..Não muito longe da drunken monkey hypothesis navega o livro de 2019 do escritor, ilustrador e músico português Afonso Cruz. Em O Macaco Bêbedo Foi à Ópera: Da Embriaguez à Civilização, edição da Fundação Francisco Manuel dos Santos, o escritor, vencedor do Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco 2010, recupera a narrativa do macaco que desce da árvore em busca da fruta madura, mais calórica. Milhões de anos de uma dieta mais rica talharam-nos cérebros musculados, uma coluna vertebral robusta, mãos libertas e polegares oponíveis. Em poucos minutos, na escala evolutiva, o "macaco" vestia fraque, sentava-se para assistir a uma ópera de Rossini e fazia do vinho tosco do Neolítico o símbolo sagrado do sangue de Cristo.