Quantas vezes falou com o seu filho sobre racismo?

Tal como as meninas são mais tarde ou mais cedo preparadas pelos pais para lidar com o abuso masculino, as crianças das minorias são-no para enfrentar o racismo. Não há evidência maior do carácter sistémico dessas discriminações. Nem melhor garantia da sua permanência do que a negação.
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Ninguém me falou de machismo quando era criança. Não me disseram que tinha de aprender a viver num mundo machista, com regras machistas e, na altura, até leis radicalmente machistas (nasci em 1964, quando o Código Penal penalizava o adultério da mulher - exclusivamente - com dois a oito anos de prisão e impunha não mais de seis meses de desterro da comarca ao homem que matasse a mulher adúltera ou as filhas até aos 21 anos, se vivendo "sob o pátrio poder" e "desonradas"). Mas fui advertida desde cedo para a necessidade de "não responder", fingindo não ouvir, ao que homens me dissessem na rua. Fui ensinada a tentar evitar, a fugir, e, caso não conseguisse, a conformar-me com a violência e os abusos masculinos - porque, acreditava-se, seria "pior para mim" reagir; poderia, reagindo, atrair maior violência.

Foi muito mais tarde que consciencializei o que estava em causa na frase "uma mulher honesta não tem ouvidos". Foi muito mais tarde que percebi que tinha sido, como a generalidade das mulheres da minha idade, educada para me sujeitar ao poder masculino - de todos os homens e rapazes e até meninos - porque outra possibilidade não me era reconhecida; porque era para meu bem.

E que as conversas que os pais, geralmente as mães, tinham com as meninas eram no inverso, aos rapazes, resumidas a algo como "numa menina não se bate nem com uma flor." As meninas eram habituadas a esperar violência dos rapazes; deles esperava-se (prescrevia-se) violência, mas pedia-se-lhes que não a usassem, pelo menos fisicamente, com as fracas meninas. Nunca assisti a nenhuma imposição de regra ou sequer advertência, na escola primária, no então ciclo preparatório ou até já no liceu, sobre o que então era, e percebi em reportagens recentes, continua a ser, o rito masculino de "levantar as saias" e dos "apalpões". Duvido até que os responsáveis escolares realmente reparassem nessas coisas ou, reparando, as considerassem dignas de intervenção. Eram "brincadeiras", "rapazes sendo rapazes". E as raparigas, fugindo, chorando e calando, envergonhadas, a serem raparigas.

Era assim. E temo que continue a sê-lo em grande parte, porque as coisas não mudam a não ser que as façamos mudar, e para tal é preciso que os pais não eduquem as filhas para a submissão e a vitimização e os filhos para subjugar e vitimizar. É preciso que falem com elas e eles antecipando o que pode suceder, os efeitos de pressão dos pares, as dinâmicas de grupo, o peso dos estereótipos, e façam pedagogia preventiva. Que vinquem o facto de terem igual dignidade e igual direito à integridade emocional e física - e que não, as meninas não têm de fingir ser surdas e incapazes de reação e os rapazes não têm de as ver como vítimas potenciais.

É preciso que a escola encare esta realidade e a aborde, a desconstrua, aja sobre ela. Não chega falar das coisas "por cima", nos conceitos, na "violência de género", ter palestras vagas para cumprir "objetivos". É preciso ir à realidade, ao nível das crianças. Estar atento, intervir. É preciso ver, ouvir, sentir. E fazer sentir, cultivar a empatia.

Isto tudo, dirão, a propósito de racismo? Sim.

Na reportagem que o DN publicou no último sábado, a propósito do caso Marega, vários afrodescendentes portugueses falam da forma como os pais a dada altura tentaram prepará-los para os insultos e a discriminação, de um modo geral aconselhando que ignorassem ou que a reagir não o fizessem jamais com agressividade - facto que, no entender de alguns entrevistados, explica que os negros portugueses tendam a "meter para dentro", não respondendo aos agravos. Também os negros, como as mulheres, ensinados a não ter ouvidos.

Um dos entrevistados, o treinador de futebol e comentador Blessing Lumueno, de 32 anos, tendo uma filha de 2, considera inevitável ter de a preparar para sofrer o mesmo tipo de agressão que lhe infligiram a si desde os 8 anos, quando chegou a Portugal.

Outro dos entrevistados é um miúdo de 14 anos, Nivaldo, com quem o DN já falara em 2017, quando ele tinha 11. Nessa altura, quer Nivaldo quer vários outros alunos negros de um agrupamento de escolas de Lisboa tinham falado das suas experiências como vítimas de racismo, inclusive na escola - mesmo se os mais novos nem conheciam o termo, porque nunca ninguém, em casa ou na escola, lhes falara dele. Só sabiam que lhes chamavam pretos como insulto, e os mandavam para a terra deles.

Nivaldo nasceu cá; Portugal é a terra dele, não conhece outra. Mas já aos 11 estava habituado a que lhe perguntassem "vens de onde?". A mãe explicou-lhe que "em Portugal não gostam das pessoas mais escuras". Três anos depois, diz ao DN que na escola se fala muito pouco de racismo e que era importante que se falasse mais. Nem o facto de ele e os colegas negros terem relatado ao jornal o que viviam e sentiam terá levado o agrupamento a pensar numa forma de abordar a questão. É possível que não saiba como. Ou que considere, como Fátima Campos Ferreira disse várias vezes no Prós e Contras de segunda-feira passada, que o racismo é um assunto "muito delicado" - uma coisa, pelos vistos, da qual tem de se falar com pinças, a medo.

Medo de ofender. Mas medo de ofender quem? Olhando para o exemplo do programa citado, como para o debate que nasceu da reação de Marega a 16 de fevereiro em Guimarães, fica claro quem não se ofende com a discussão sobre racismo, quem cada vez mais a exige: as vítimas. As vítimas querem denunciar o racismo, discuti-lo. Se não são elas, as ofendidas, a ofender-se com o debate, quem tem então o direito de se ofender?

Sabemos a resposta: é o país que se ofende por lhe dizerem que é racista. É o país que se sente insultado por lhe dizerem que insulta. Mesmo se há inquéritos europeus que colocam Portugal no top do racismo biológico - ou seja, com a maior percentagem de respondentes a dizer que acredita em "raças" superiores e inferiores -, mesmo se basta olharmos para os lugares de representação e poder para percebermos que as minorias estão praticamente ausentes, mesmo se nos estádios vemos jogadores negros tantas vezes agredidos pela sua cor, comparados a macacos. Mesmo se ouvimos hoje, ainda, das crianças e adolescentes negros a certificação de que são alvo de racismo mais ou menos brutal, achamos que temos o direito de ficar ofendidos.

Esse direito a que nos arrogamos é o direito a mais essa ofensa. A de dizer a quem nos diz que há racismo que isso dói e destrói, que é tão generalizado que as crianças negras são preparadas para o suportar, que não estamos para ser confrontados com isso, que nos incomoda, que não aceitamos. Não estamos para que nos chamem racistas - só estamos para sê-lo.

E não, por favor não diga "eu não sou racista, nunca fiz sons de macaco num estádio contra um negro, nunca chamei preto de merda a ninguém, nunca disse preto vai para a tua terra, nunca ficaria chateado se uma filha minha ou filho meu tivesse um namorado ou namorada negra, até tenho amigos negros, odeio racistas". Diga-me o que fez para combater o racismo. Não preciso que me diga que andou à batatada com racistas, nem toda a gente tem de ter coragem; basta que conte quantas conversas teve com os seus filhos sobre racismo, como os preparou para não serem racistas, quantas vezes exigiu na escola que este assunto seja abordado. Diga-me como acha que se combate o racismo sem se admitir que existe, que não é uma exceção de psicopatas mas uma estrutura de pensamento em que fomos todos educados, um sítio de onde vimos e onde estamos. Nós e os nossos filhos.

Não é uma culpa, não é para pedir perdão, não é para nos martirizarmos, fustigarmos, expiarmos. E decerto não é para nos odiarmos. É para resolver.

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