O Deus das pequenas coisas

Sendo muitas as recordações, elas centram-se nas pequenas coisas, nos detalhes ínfimos e íntimos: o gira-discos de plástico, o Ford Cortina bege da família, os vasos de cactos nas prateleiras da cozinha.
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Num dos seus últimos livros, O Rio da Consciência, publicado postumamente, o famoso neurologista Oliver Sacks dedicou um texto à falibilidade da memória. Nele, conta uma história consigo passada e uma falsa recordação que teve do Blitz de 1940-1941. Sacks diz que se lembrava, de forma nítida e perfeita, das bombas alemãs que caíram no jardim de casa dos seus pais, e descreveu-as com pormenor num outro livro, O Tio Tungsténio.

Meses depois da saída de O Tio Tungsténio, o irmão mais velho repôs a verdade, recordando-lhe que, nessa época, Oliver estava num colégio interno, e tinha sido precisamente o seu irmão a contar-lhe o episódio numa carta em que relatava à minúcia o que se passou. Foi com base nessa carta que Oliver Sacks construiu, para si próprio e para os outros, uma falsa recordação, que ficou gravada na sua memória a ponto de, com total boa-fé, ter julgado ser protagonista de um episódio que nunca presenciou.

Sacks lembrava-se inclusivamente de ter estado a ajudar o pai e o irmão com baldes de água, tentando apagar o fogo das bombas incendiárias nazis, quando, pura e simplesmente, não participou em nada de nada, estando na altura internado num colégio em Bradfield, a muitos quilómetros dali. Há muitas situações como esta, e Sacks menciona um caso ocorrido com Ronald Reagan, que, na campanha presidencial de 1980, recordou um episódio heróico consigo passado na II Guerra Mundial que, na realidade, era uma cena do filme A Wing and a Prayer, de 1944. A menos que consideremos que se tratou de uma desastrada manobra de propaganda, o que é improvável, Reagan tinha retido essa cena como se ela se tivesse passado consigo na "vida real", fazendo-se protagonista de um filme em que, aliás, nunca entrou.

A Marília Ribeiro aconteceu o mesmo. Em 1995, Marília perdeu a mãe. Há muitas formas - ou "estratégias", como agora se diz - de lidar com o luto, o da morte e o de tantas outras e dolorosas perdas. Marília Ribeiro escolheu uma delas, das mais eficazes e produtivas: escreveu um livro. Mulheres, Trabalho e Alentejo. Caderno de Histórias de Vida, reeditado em Julho deste ano pelas Edições Colibri, é o resultado desse exercício, uma recolha de testemunhos e histórias de vida de trinta mulheres da região de Portalegre, existências passadas entre o amanho dos campos, o contrabando ocasional com Espanha e o labor operário na Fábrica da Robinson, na Fábrica dos Lanifícios ou na Manufactura das Tapeçarias.

O livro, claro, é interessantíssimo, como interessantíssima é a história da família da autora. A mãe nasceu em Amieira do Tejo, uma aldeia do Alto Alentejo, na fronteira com a Beira Baixa. O pai, natural de Portalegre, já em criança guardava porcos para os lados de Ponte de Sor, onde a família se tinha fixado. Aqui começam as falsas memórias. Durante toda a vida, Marília Ribeiro julgou que o seu pai andava descalço na lavoura, pelas memórias de infância que este lhe contava. O retrato de uma criança descalça a guardar porcos nos campos do Alentejo quadrava bem, ademais, numa realidade verdadeira, indiscutível: a miséria dos campos alentejanos era para Marília Ribeiro o que o Blitz fora para Oliver Sacks.

Mais tarde, Marília veio a saber pela irmã, nove anos mais velha, que o seu pai andava descalço porque os sapatos que tinha, e que usava para ir à escola, onde eram obrigatórios, lhe estavam apertados, razão pela qual ele os largava sempre que podia. Nada disto infirma a verdade agreste de uma criança que usava os sapatos do irmão para ir à escola, o único par que tinham, mas é bem diferente - pior ou melhor, não importa - do que a memória de uma criança descalça a guardar porcos pelos campos da Ponte de Sor.

Os pais de Marília conheceram-se, namoraram, casaram e, em busca de uma vida melhor, foram morar para Lisboa. Nos primeiros anos, residiram em Sacavém, num quarto arrendado com serventia de cozinha e de casa de banho. Ele empregou-se, aprendeu o ofício de serralheiro mecânico na Companhia Nacional de Electricidade. A mãe era doméstica, cuidava da casa.

Com o nascimento da primogénita, a irmã mais velha de Marília, alugaram uma casa perto da igreja, e a mãe acabou por convencer o pai à aventura de comprarem habitação própria. Ele recuou, hesitou, ela insistiu no empréstimo bancário por 25 anos e, ao fim de muitas conversas domésticas, lá se fez a hipoteca. Apesar de remediados (para dizer o mínimo), nunca deixaram de pagar uma só vez a prestação ao banco. As memórias da infância de Marília, como sempre sucede, são memórias de relação com os outros, flashes fugazes em que uma menina via a mãe a arrumar a casa às manhãs e, durante a tarde, a fazer costura, rendas e bordados.

Aos fins-de-semana, a mãe oferecia um luxo à família, sob a forma de um bolo ou de um doce feito a partir de uma receita aprendida na televisão com o chefe Silva. Arménia, assim se chamava a senhora, tinha predilecção por programas de culinária ou sobre a vida animal e, em matéria de rádio, era ouvinte diária do Simplesmente Maria, que passava na sua telefonia estrategicamente colocada na prateleira por cima do lava-loiças. Além do dramalhão radiofónico, escutava Arménia os Parodiantes de Lisboa e canções de música ligeira portuguesa.

À noite, o pai de Marília fechava a porta da cozinha e ligava a telefonia da prateleira por cima do lava-loiças. Outra falsa memória: Marília julgava que o seu pai, a sintonizar a rádio de ouvido encostado ao altifalante, aguardava notícias de uma revolução iminente. Uma vez mais, a irmã mais velha desfez-lhe a reminiscência imaginária: o pai encostava a porta, sim senhor, mas era para ouvir notícias de Portugal emitidas por rádios estrangeiras e o fechar a porta da cozinha não passava de uma medida de elementar precaução ante o temor da PIDE ou da bufaria dos vizinhos.

Com o andar dos anos e a progressão dos réditos, a família passou a gozar de outras distracções: idas à revista no Parque Mayer, filmes indianos no Monumental, horas a fio a ouvir o LP do Bolero de Ravel num gira-discos de plástico cor de laranja. Além disso, Arménia era uma leitora voraz, fascinada por Camilo, o que causava no marido ciúmes irracionais, a ponto de, um dia, ter dado sumiço ao busto do romancista, com o argumento de que as camilianas leituras "punham coisas na cabeça" da esposa. E todos os anos, pelo mês de Setembro, mãe e filha iam ao banco na Rua do Ouro levantar os juros dos depósitos, gastavam um pouco nos tecidos da Baixa, o resto era guardado para emergências eventuais.

Marília entrou na faculdade, concluiu estudos superiores, escreveu um livro de homenagem à sua mãe em que recolhe testemunhos de trabalhadoras do Alentejo, nos campos e nas fábricas, no contrabando ocasional da raia. Diz-se "tímida e insegura", recorda o tempo em que, à entrada na universidade, a sua mãe decidiu, a conselho da irmã, comprar-lhe uma enciclopédia da Imprensa Nacional cujos volumes tardavam a ser publicados e saíam aos bochechos. Suspeito ser a Enciclopédia Einaudi, mas não tenho a certeza, nem Marília o diz. O que diz é que a sua mãe tinha um talento especial para a costura, que gostava de andar a pé e de ouvir o cantarolar dos passarinhos. E que na varanda da casa de Sacavém havia uma gaiola com um passarinho cantante, geralmente um pintassilgo, trazido pelo pai logo que o antecessor se finava. A mãe habituava os pintassilgos a comer bocadinhos de maçã, dava-lhes folhas de alface, afagava-lhes as penas eriçadas e, nos dias mais quentes, banhava-os numa taça de água fresca. Nos móveis da cozinha, vasos com flores e cactos.

O pai de Marília teve uma doença psiquiátrica cujos primeiros sinais se manifestaram não muito depois de ter casado. A família sofreu com a psicose, que se agravou com o passar dos anos, alternando momentos de euforia e longos períodos de depressão e vazio. Um dia, a mãe confessou a Marília que, apesar daquele inferno, nunca pensou divorciar-se por várias razões: pena do marido, receio de perder a casa e, acima de tudo, porque não queria, com tão drástico gesto, comprometer o futuro das duas filhas.

Arménia nascera no Dia de São João e, por isso, gostava de ter sido chamada Maria João, o nome da sua melhor amiga. Ou, noutra hipótese, Noémia. O pai registou-a como Arménia, e assim ficou durante 64 anos de vida. Sempre amou o seu pai, uma "paz de alma", um homem bondoso conhecido entre os amigos como "Bom Vinagre". A única vez que teve coragem para enfrentar e discutir com a esposa, uma mulher com a muito alentejana alcunha "Tá Conceição Gargantada", foi para permitir que a jovem Arménia comprasse umas meias de vidro para levar a um baile.

Marília casou e saiu de casa aos 27 anos. A mãe morreu cinco anos depois. O que dela recorda é muito, tanto que escreveu um livro em sua memória. Mas, sendo muitas as recordações, elas centram-se nas pequenas coisas, nos detalhes ínfimos e íntimos: o gira-discos de plástico, o Ford Cortina bege da família, os vasos de cactos nas prateleiras da cozinha, as receitas do chefe Silva ou as graçolas dos Parodiantes.

Disse-se no início que as memórias que guardamos de infância são de relações com os outros, e que raramente ou quase nunca nos lembramos de em criança estarmos sozinhos. Relações com os outros, pessoas ou animais, ou com objectos, os brinquedos da nossa meninice, os Rosebuds que recordamos na hora da morte. Olhando para as lembranças de toda a vida de Marília Ribeiro, muito daquilo que ela evoca da sua mãe são também as pequenas coisas, pormenores literalmente vitais. É como se todo o ofício de viver, e o trabalho que fazemos em rememorá-lo, não andasse longe daquilo que as crianças fixam, e em que se fixam: a banheira do pintassilgo, a marca do automóvel, o busto do escritor Camilo.

Não é por acaso que os objectos e as marcas, sobretudo numa sociedade de consumo como a nossa, se convertem em tópicos privilegiados da memória e que aquilo a que o psicólogo holandês Douwe Draaisma chamou a "fábrica da nostalgia" tem por alvo produtos, símbolos e logótipos, os "cromos da caderneta" do nosso Nuno Markl. O resto, sentimentos e amores, raivas e emoções, surge em segundo plano, ou temos pudor em contá-lo para fora de nós mesmos. Os adultos também recordam, claro, grandes acontecimentos colectivos, a que chamam "históricos", sobretudo quando esses acontecimentos mexem com a sua própria subjectividade, por neles terem participado ou sido suas testemunhas, próximas ou distantes.

Por isso sabemos, ou julgamos saber, onde estávamos exactamente no dia 25 de Abril ou aquando da ida do Homem à Lua, na morte de Sá Carneiro ou durante os ataques às Torres Gémeas. Mesmo aí, todavia, existem falsas memórias e reconstruções involuntárias, sendo estranho pensar que muitos dos que julgaram estar num dado local aquando da tragédia do 11 de Setembro se encontravam, afinal, num outro lugar completamente diverso (sobre isto, vejam o episódio dedicado à memória da excelente série da Netflix The Mind Explained).

Quase sempre, é absolutamente irrelevante se uma memória é verdadeira ou falsa. Tirando os depoimentos nos tribunais ou tentativas maldosas dos que deturpam o passado e se tornam "assassinos da memória" (como lhes chamou o historiador Pierre Vidal-Naquet), a veracidade da memória é algo que pouco interessa, sendo indiferente sabermos se Arménia esteve, ou não, no Largo do Carmo na tarde de 25 de Abril de 1974 ou se tinha um gira-discos de plástico ou uma telefonia na cozinha. Ou se a sua filha Marília estava no sofá de casa ou no local de emprego quando chegaram as primeiras notícias dos ataques às Torres Gémeas.

O que não é indiferente, de modo algum, é pensarmos que a memória se fixa e retém em torno das coisas pequenas, como se a cor de um gira-discos de plástico ou a marca de um automóvel fossem, no fim de contas, o que de mais importante levamos desta vida efémera.

Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.

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