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22 janeiro 2023 às 00h05

"Comida tradicional portuguesa"... só para turista entrar

A rua das Portas de Santo Antão tem início no D. Maria, com passagem pelo Coliseu e Politeama. É cartão de visita da cidade e, por lá, já existiram boas cervejarias. Deram lugar a restaurantes que prometem mas não oferecem gastronomia típica nacional.

Céu Neves

O eixo entre o Rossio e o Marquês de Pombal bem poderia ser considerado o West End (Londres) ou o 9. º arrondissement (Paris) de Lisboa, pelo número de salas de espetáculos - mais concentradas na rua das Portas de Santo Antão, entre o D. Maria e o Ateneu, passando pelo Coliseu, Politeama e Casa do Alentejo. É um cartão de visita da cidade, que já juntou à atividade artística boas cervejarias. Fecharam para dar lugar a restaurantes que anunciam comida artesanal e tradicional portuguesa, mas é só na ementa.

Sardinha assada em qualquer altura do ano, que os funcionários dizem ser fresca, é logo para desconfiar. Há também bacalhau e polvo à lagareiro, carne de porco à alentejana, arroz de polvo, marisco e de tamboril, bacalhau à Brás, tudo pratos da gastronomia nacional. Os restaurantes que a servem têm toldos que dizem "tradicional" e "artesanal português", num total de quatro só nesta artéria. Estendem-se pela rua Jardim do Regedor, estão nos Correeiros e Sapateiros.

As ementas, o design e letra são iguais e não é visível o nome do restaurante. O DN quis saber o que está por detrás desta transformação. Entrámos e não gostámos, a começar pelo serviço. Os funcionários desconhecem o que estão a oferecer aos clientes, na maioria turistas. Os pratos pouco têm de tradicional e são em doses pequenas. Os preços dos pratos do dia não são elevados, já a restante carta é mais cara. Os complementos, como vinho a copo e sobremesa, custam 4,90 euros a dose. E, nas redes sociais, há quem se queixe de ser cobrada uma taxa de serviço entre 15 e 20 % que justificam ser uma exigência da câmara de Lisboa. Não nos cobraram essa taxa nem um mini-leite creme instantâneo sem o açúcar queimado. Protestámos em português.

Quem está por detrás deste negócio e qual é a sua estratégia?
É Dhurba Subedi, um nepalês de 37 anos, que chegou a Portugal em 2007 (tem a nacionalidade portuguesa), a filha, de 7 anos, e o filho, de 2, nasceram cá. Fica visivelmente triste quando criticamos o que serve, nega que cobra taxas extras, escuda-se na dificuldade em contratar pessoal. "Estava focado em fazer boa comida portuguesa, treinamos as pessoas três/quatro meses e vão embora. E na Baixa não podemos fazer mesmo comida mais tradicional, pois os turistas não gostam".

Dhurba já chegou a ter 50 restaurantes, principalmente em Lisboa, mas também em Viseu, Funchal, Ponta Delgada, Barreiro, Seixal e Montijo (além de Espanha, Alemanha e Bélgica). Garante que o objetivo sempre foi promover a gastronomia portuguesa, o que não resultou no estrangeiro. "Os naturais não vão a um restaurante português e os portugueses também não". Optou por ementas portuguesas por ter trabalhado sete anos em casas na Baixa. Não foram os primeiros empregos.

Dhurba Subedi migrou do Nepal (Pokhara) para a Bélgica aos 18 anos, passou por Barcelona e foi funcionário da loja do FC Barcelona. Aprendeu línguas e amealhou dinheiro para se dedicar à restauração em Portugal, onde chegou aos 21 anos. "Aluguei dois restaurantes e abri com comida indiana. Correu mal, o dinheiro que tinha ganho na Bélgica desapareceu, tive de arranjar emprego. Trabalhei na rua dos Correeiros a chamar clientes, depois noutro que geri. Além de português e nepalês, falo espanhol, francês, alemão, holandês, italiano, russo e japonês".

Conheceu a Baixa, os funcionários e os donos de restaurantes. "A maioria eram pessoas de idade e que me pediam para ficar com o seu restaurante. Eu propunha um aluguer mensal (5 ou 10 anos) e ia ficando. Aproveitei a fase da covid, as pessoas estavam aflitas e eu não precisava de investir muito dinheiro. Como tinha o sushi, fazia take away", diz.
Assegura que não compra nem paga trespasses, mas há casos em que fica com quotas e tem sócios.

O restaurante Derby, nas Portas de Santo Antão, foi o primeiro. Adquiriu 25% em 2014, atualmente tem 100%. Era uma casa de petiscos e abriu como Restaurante Tradicional Português. Tem uma cozinha mínima onde trabalham nepaleses. Passaram a funcionar à noite e todos os dias da semana. Ainda assim, não estará a dar para as despesas, o que parece ser a estratégia de Dhurba. "Não temos prejuízo nem grandes lucros, é quase troca por troca", explica em relação ao seu negócio. E, quando não dá, fecha ou muda a ementa. O Derby vai passar a ser um espaço vegan.

Na mesma rua, possui os antigos Andorra, Lagosta Real, Prazeres do Mar e, ao lado, o Sol Dourado. Não são só restaurantes com mesas vazias - tem a Marisqueira Uma, que só serve arroz de marisco, e tem fila. São cerca de 20, em Portugal e no estrangeiro, e 120 funcionários, na maioria nepaleses.

Dhurba está aperceber que a comida portuguesa não dá muito resultado, pelo menos na forma como a está a oferecer. Começou a apostar no ramen, uma sopa japonesa, contando com dois restaurantes em Lisboa e um no Barreiro: Ramen Bambu. "Estou focado em fazer uma marca boa e só trabalhar nisso. O que não conseguir gerir, vou largando".

Quem vai assistindo a todas estas transformações "com tristeza" é Alípio Ramos, 76 anos. Trabalha na Frutaria Bristol, fundada em 1929. "Conheci esta rua quando ainda passava o elétrico. Tinha dos melhores restaurantes de Lisboa [mantêm-se dois de elite], foram fechando e surgiram espaços que não têm nada a ver com Portugal. O golpe fatal foi com a pandemia. Não são só os restaurantes que mudam, estão transformar tudo em hotéis. Vamos sobrevivendo, com os turistas e alguns portugueses".

O restaurante Inhaca é dos poucos que mantém uma tradicional cervejaria nas Portas de Santo Antão. O dono, Armando Batista, tomou conta do espaço há 46 anos (tem 74). "A nossa base é o peixe e o marisco frescos, como a carne. Olho para as montras dos outros e não vejo nada disso, não sei como vivem. O negócio mudou".

Tem sete funcionários, alguns há quase 30 anos, não sabe até quando irá manter as portas abertas. "O marisco vende-se pouco. E há falta de pessoal com formação", lamenta. Argumenta que ter ao lado restaurantes sem qualidade o prejudica. "É uma rua onde passa muita gente, se vai ao primeiro restaurante e é enganado, não volta. Valem os clientes que nos conhecem". Espera deixar o restaurante para algum dos funcionários. Tem esperança em Diogo Marques, 33 anos, que ali começou a trabalhar aos 17.

A Associação de Dinamização da Baixa Pombalina assiste a todas estas transformações com preocupação: "O comércio da Baixa perdeu qualidade. Embora tenham aparecido algumas ofertas inovadoras, muitas delas são ao sabor das pessoas que nos visitam. O empresário atua sempre com a intenção do rentável, procura o que vende mais e está sempre a mudar. Falta uma restauração com qualidade e que tenha comida tradicional portuguesa", critica o seu presidente, Manuel Lopes. Sublinha: "Já não é como antigamente, em que a pessoa abria um restaurante para deixar aos filhos. Agora abre e mantém enquanto dá ou está na moda. No dia em que isso não acontecer, fecha. Mas estou convencido que há clientes para oferta de qualidade".

ceuneves@dn.pt