Comores. Onde o casamento conta
Antes de contar o singular conjúgio a que assisti, importa lembrar que os portugueses foram os primeiros europeus a chegar a estas ilhas, em 1505, mas a rota já era usada por árabes para a troca de escravos e de marfim. Essa "visita" portuguesa acabou por ser efémera, porque as ilhas depressa se tornaram numa colónia francesa. A partir do séc. XIX, a presença francesa acabou por diminuir, até que o país se tornou independente, em 1975, formando a República Federal Islâmica das Comores. O arquipélago está situado na parte norte do canal de Moçambique e é composto por três ilhas principais: Njazidja, antiga Grande Comore e onde se localiza a capital (Moroni); Mwali, antiga Mohéli; e Nzwami, antiga Anjouan. O cenário à chegada a Moroni é o de um lugar onde o tempo não tem conta. A posição geográfica do arquipélago indica a presença de condições ideais para umas férias nas praias de águas mornas e ondas suaves e para visitas às cidades. Os corpos andam cobertos de acordo com a cultura islamizada. Porém, o acontecimento mais surpreendente a que assisti foi o de um casamento, numa aldeia próxima da capital. Existem dois tipos de casamentos, o "pequeno casamento" e o "grande casamento". O primeiro é como que uma antecâmara para o segundo, que todos querem, nem que demore vinte anos a acontecer, mas implica gastos impressionantes no contexto de um país pobre. O que mais me sensibilizou foram as marcas deslumbrantes de um "grande casamento", em duas semanas de celebrações: festejos e cortejos nas ruas, com quase toda a população local; danças, cantares e rezas; as melhores indumentárias e joias; e comida distribuída a rodos por diferentes bairros. Um "grande casamento" dá estatuto ao noivo, até porque, no futuro, apenas poderá usar uma determinada indumentária ou ficar de pé na primeira fila da mesquita se casar assim. O estatuto da mulher também muda, à medida que ela se torna mãe. Quem não casar deste modo, à grande, quase não merece o respeito da população. O casamento implica a construção ou a renovação da casa e donativos para projetos para a comunidade, ou seja, um grande dote por parte do noivo. Para a noiva, durante essas duas semanas, um grupo de mulheres prepara-lhe rituais de beleza, através da aplicação na pele de cosméticos caseiros. O sábado é o dia do enlace. Chegam pessoas de outras aldeias e cidades, políticos e altos dignitários da ilha e ainda emigrantes em França e noutros países. Montam-se estandartes, cordas com bandeirinhas e 2000 cadeiras no espaço exterior limpo e destinado à celebração. A polícia está presente. Ao cair da noite, o espaço começa a encher-se. Todos se apresentam impecavelmente vestidos. O nosso grupo era "outsider" naquela festa, mas o guia logo nos preparou um espaço onde nos sentámos ao fundo da plateia. A cerimónia religiosa cumpre os preceitos muçulmanos. No domingo de manhã, um novo cortejo se forma para se dirigir para a casa dos noivos. Há muita gente nas ruas, e os mais jovens estão empoleirados naquelas construções que parecem inacabadas. O grande casamento pode custar 30.000 euros, pelo que os noivos podem ser criticados por causa do alto custo, mas ao mesmo tempo é uma fonte de coesão social e a principal razão pela qual os emigrantes em França e noutros lugares continuam a enviar dinheiro para o seu país de origem. Para além disto, os casamentos são tributados para fins de desenvolvimento local. Desejo que haja muitos para que o futuro deste país floresça. Afinal, nestas paragens, o tempo não conta, mas o casamento conta, e muito.
Jorge Mangorrinha, professor universitário e pós-doutorado em turismo, faz um ensaio de memória através de fragmentos de viagem realizadas por ar, mar e terra e por olhares, leituras e conversas, entre o sonho que se fez realidade e a realidade que se fez sonho. Viagens fascinantes que são descritas pelo único português que até à data colocou em palavras imaginativas o que sente por todos os países do mundo. Uma série para ler aqui, na edição digital do DN.