Vinte anos, praticamente um bilião de dólares gasto no conflito mais caro da História (qualquer coisa como 1 000 000 000 000 dólares), 83 mil milhões no treino e equipamento dos cerca de 300 mil soldados das forças afegãs. Em dez dias, sob o olhar atónito do mundo, tudo ruiu como um frágil castelo de cartas, com as capitais de província a caírem quase sem disparar um tiro..Como é que foi possível? António Martins da Cruz, antigo ministro dos Negócios Estrangeiros (MNE), que foi também embaixador português junto da NATO, não esconde alguma estupefação pela forma como a administração americana não foi capaz de antecipar as consequências da saída do Afeganistão. "Como é que a administração Biden e o Pentágono, a Casa Branca, os vários departamentos de Estado, com milhares de pessoas no Afeganistão, foram incapazes de ver o que se estava a passar? Como é que foi possível terem confiado no exército afegão, que eles treinaram e equiparam?", questiona, sublinhando o enorme investimento feito nas duas últimas décadas. "Os americanos gastaram, segundo o Congresso, um trilião de dólares [bilião na nomenclatura portuguesa] no Afeganistão - 800 milhões de milhões de euros. 83 biliões de dólares com as Forças Armadas: são 70 mil milhões de euros, em equipamento, treino, etc. É mais de um terço do PIB português. Fiz as contas: isto representa 29 vezes o orçamento anual de Defesa de Portugal. 29 vezes!"..Martins da Cruz sublinha que as armas e o equipamento "já caíram ou vão cair" nas mãos dos talibãs. E "estamos a falar de equipamento que Portugal, e outros países da NATO, não têm". Por exemplo, "35 helicópteros de ataque MD 530, que são os melhores helicópteros de ataque dos EUA. Portugal e a maioria dos países da NATO não tem nenhum. E os talibãs agora têm", diz o antigo MNE. Porque é que o exército afegão cedeu sem resistência? "Total corrupção, falta de determinação e vontade de combater e uma má avaliação dos americanos"..AFEGANISTÃO. A guerra que Biden quis acabar e ameaça voltar-se contra ele.Para o embaixador Seixas da Costa é "absolutamente espantosa a falta de consciência que a administração americana teve na avaliação concreta do impacto da sua saída": "Os americanos deixaram montada uma tropa de cerca de 300 mil soldados afegãos. Os talibãs têm 80 mil soldados regulares, mais umas milícias. E aquilo de repente desfaz-se como um gelado em dia de sol." O que prova que as autoridades afegãs que durante estes anos foram alternativa aos talibãs "nunca conseguiram convencer verdadeiramente a população". Mais: "Eles próprios tinham de estar convencidos que não havia sustentação, se não isto não caía tão facilmente. Toda a gente depôs as armas, houve uma espécie de consciência de inevitabilidade da vitória talibã".."Os americanos não fizeram o trabalho como deve ser", diz também Maria João Tomás, investigadora no ISCTE e especialista em assuntos do Médio Oriente, focando a análise no longo prazo e usando como exemplo a Aliança do Norte, fundada e liderada por Ahmad Shah Massud, mujaedine herói da guerra contra os soviéticos e aliado na luta contra os talibãs. "Massud fez um valioso trabalho e não só contra os talibãs. Foi assassinado dois dias antes dos atentados às Torres Gémeas - não foi coincidência. Massud tinha a população com ele, o que é que fazia? Ajudava-a a sair do cultivo do ópio, ajudava a incrementar outros tipos de cultivo, fomentava a economia, o comércio, para que as pessoas tivessem uma alternativa viável. Isso foi feito por quem sabia do terreno. Os americanos não fizeram nada disto, iam lá, destruíam os campos de ópio. Depois iam os talibãs por trás, pagavam aos camponeses, protegiam os campos, compravam o ópio.".Mas, com todos os focos apontados aos Estados Unidos, Martins da Cruz sublinha que não foram apenas os norte-americanos que estiveram no Afeganistão, mas também a NATO. "Preocupam-me as consequências para a política externa portuguesa. Portugal teve 4500 militares no Afeganistão durante estes 19 anos. Dá a ideia que estamos a olhar para o lado como se não fosse nada connosco. Não, é com Portugal, que esteve envolvido na operação. O que aconteceu no Afeganistão afeta a credibilidade dos EUA, mas também dos aliados que lá estiveram, portanto também a portuguesa"..Consumada a tomada de poder pelos talibãs, Francisco Seixas da Costa não tem dúvidas: é preciso estabelecer canais diplomáticos e falar com os "estudantes de religião". "Há sempre um tempo em que, por muito estranho que seja o parceiro que se apresenta à comunidade internacional, há que falar com ele. Este é um regime bizarro, com uma matriz fundada num conjunto de princípios que fogem manifestamente da matriz internacional, mas é um sujeito do direito internacional com o qual é preciso contar. É preciso falar com eles, perceber o que querem fazer. Fecharmo-nos ao contacto não resolve nada"..Para o embaixador, para além da preocupação com a situação interna no Afeganistão, nomeadamente em termos de direitos humanos - e em particular das mulheres - o "grande problema do mundo ocidental é a circunstância de, à luz daquele regime, se poderem formar linhas subversivas que possam pôr em causa a segurança coletiva".."A razão pela qual se foi para o Afeganistão há 20 anos é exatamente a mesma que preocupa agora as pessoas. Será que, atrás disto, a Al Qaeda se vai reorganizar? Porque se isso acontecer, e se os sinais que vierem de Cabul forem no sentido de aquilo se tornar uma espécie de santuário para a destabilização internacional, por muito que as pessoas não tenham gostado do resultado final da intervenção no Afeganistão...". Se isso acontecesse, remata Seixas da Costa, "muito provavelmente poderia vir aí uma ação militar". Já se esse cenário não se concretizar, o Afeganistão transformar-se-á num "regime bizarro, tipo Coreia do Norte, ou Kadafi na Líbia a partir de certa altura, com o qual o mundo terá que aprender a lidar"..Já Martins da Cruz destaca as possíveis consequências desta vitória dos talibãs no resto do mundo. "Penso que isto vai levar a um aumento do terrorismo. O Afeganistão vai ser uma plataforma para o terrorismo. A vitória dos talibãs vai aumentar o radicalismo islâmico, o que é mau para Moçambique, que nos diz diretamente respeito, é mau para o Sahel, onde temos tropas portuguesas envolvidas no combate ao ISIS, pode aumentar as migrações de países árabes para a Europa, além dos refugiados que a Turquia, com as relações que tem com a Europa, vai enviar para a Europa logo que puder". O antigo ministro dos Negócios Estrangeiros questiona, aliás, qual será a política europeia e norte-americana para acolher os refugiados do Afeganistão..Podem os talibãs ser diferentes do regime que instauraram no Afeganistão entre 1996 e 2001, quando proibiram as mulheres de trabalhar e ir à escola, instituíram as amputações como castigo e promoveram execuções públicas, proibiram a música, destruíram os famosos budas de Bamiyan e se empenharam em perseguir minorias? Maria João Tomás sublinha que há todas as razões para duvidar disso. Já deram provas de que "hoje dizem uma coisa, amanhã fazem outra. Têm uma ideologia de base fundamentalista e dificilmente se afastarão dela. Já há relatos de atrocidades, não em Cabul, mas nos meios rurais sim"..Afeganistão: Talibãs prometem proteger país, perdoar colaboradores e honrar mulheres.Martins da Cruz também não acredita na moderação dos talibãs. "Não são moderados, são radicais, vão aplicar a sharia, e de uma maneira radical, e não vão procurar credibilidade internacional, é a última coisa que lhes interessa, basta terem-na com os vizinhos"..Maria João Tomás sublinha que a saída dos EUA vem "mudar a geopolítica" naquela região e isso já é visível. "Os Estados Unidos retiraram-se de uma posição estratégica que foi imediatamente ocupada pelos russos e pelos chineses, que têm muito a lucrar com isto e têm aliados fortíssimos na região. Vai ser interessante perceber como se posicionam"..Uma mudança de forças que não pode deixar a Europa indiferente, alerta a investigadora. "Os europeus não podem, de maneira nenhuma, vacilar nesta situação, têm que marcar posição. Não podemos estar tão dependentes dos americanos, a União Europeia tem que ter uma posição forte, independentemente dos Estados Unidos". Para esta especialista em assuntos do Médio Oriente "esta retirada muda completamente o mapa, coloca a China e a Rússia muito mais próximas da Europa, sem os EUA como escudo. É bom que a Europa se mexa". "Tudo isto é interessante, mas não deixa de ser assustador", remata..susete.francisco@dn.pt