"Porto espacial de Santa Maria? As coisas têm que acontecer para o ano, não vejo outra hipótese"

Ricardo Conde, presidente da Agência Espacial Portuguesa, falou ao DN à margem do encontro da Comunidade Intermunicipal do Alto Minho e traçou as prioridades para fazer de Portugal uma "nação espacial" em 2030: da política de satélites ao atrasado porto espacial de Santa Maria.
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Assumiu a ambição de tornar Portugal "numa nação espacial em 2030". O que significa isso?
Quando falamos no espaço, devemos compreender aqui há várias dimensões. E o espaço tem muitas. A primeira é a do conhecimento: da física, da origem do universo, tudo o que enquadra a dimensão do nosso desconhecido. Esse é o grande domínio do espaço, o domínio do conhecimento. Portugal pertence à Agência Espacial Europeia (ESA) desde 2000, passaram sensivelmente 22 anos, e temos atualmente um ecossistema de cerca de 70 empresas e instituições de investigação que atuam nessas missões. Depois, há uma dimensão um bocadinho mais "terrena", se calhar, da utilização do espaço a que se chama o New Space Economy, o espaço como uma área para a economia. Nós utilizamos, sem nos apercebermos, tecnologias do espaço no nosso dia a dia. E aí será que Portugal consegue - através, por exemplo, de lançadores, satélites, dados de satélites e utilização desses dados - atuar neste setor e ir ao encontro ao grande objetivo que é utilizarmos esses dados para abordar as nossas complexidades e problemas atuais? A resposta é sim. Quando se diz que nesta década Portugal tem de se tornar uma nação espacial, é utilizar todo esse conhecimento acumulado de 20 e tal anos e associar ao desenvolvimento de programas nacionais, para, de facto, daqui a sensivelmente sete/oito anos Portugal estar num patamar diferente.

Dentro dessa estratégia nacional para o espaço, que áreas são do nosso vital interesse?
Portugal tem neste momento, em termos de programas nacionais, três áreas fundamentais. E a primeira é uma política nacional de dados de observação da Terra. O que é que eu quero dizer com isto? Portugal tem que ter acesso aos seus dados de observação. Quando tivermos isto e tivermos acesso a esses dados, significa que podemos usá-los para questões extremamente importantes que hoje nos impactam. Falamos de sustentabilidade, da nossa relação com o território e como o exploramos. Temos um problema brutal, que vai ser um dos maiores problemas no nosso país, que é a água...

Citaçãocitacao"Portugal tem de ter uma política de dados de observação da Terra, ter acesso a dados de observação que podem impactar na gestão do território. Por isso lançámos a ideia de termos os nossos próprios satélites."

E como é que a exploração espacial pode ajudar a resolver ou a mitigar esses problemas?
O ponto é esse. A água, a erosão costeira, que vai ser também um problema cada vez maior, o problema dos stocks de carbono e utilização da biomassa e a deflagração de fogos cada vez mais constante em virtude das alterações climáticas. Estes quatro problemas muito dificilmente são abordados num contexto de autarquia, num contexto regional. Só num contexto de país, de região de países, de mundo. E nesse contexto os satélites têm a capacidade de, primeiro, ver de uma forma global, de uma forma cada vez mais frequente. E depois, essencialmente nesta dimensão, a capacidade de retirar esta informação com muita frequência. Aquilo que se chama neste momento data fusion: agregarmos um conjunto de dados sobre o território, com frequência cada vez mais constante, e associarmos processos de inteligência artificial para fazermos modelos preditivos. Há um projeto europeu de Digital Twins, que consiste em fazer um modelo digital gémeo do globo. Para quê? Para prever comportamentos através de dados de satélite. Esse é o grande programa que nós estamos a implementar. Vamos lançar a partir do próximo ano uma política de dados, o GeoHub, onde há muita investigação que tem de ser produzida. É o nosso caminho, a nível nacional, para aquilo que chamamos o digital planet. Por isso lançámos esta ideia de termos os nossos próprios satélites [foi anunciada uma parceria com Espanha na última cimeira ibérica que visa colocar em órbita entre 12 e 16 satélites - seis a oito para cada país]. Essa ideia foi agora alavancada pelo Programa de Recuperação e Resiliência e a nossa responsabilidade como agência é adquirirmos um conjunto de dados para começarmos a ver como é que se desenvolvem essas aplicações, tornar mais democrática a utilização desses dados.

Além dessa política de dados, que outras dimensões tem o programa espacial português?
Há outra dimensão do programa nacional que é a monitorização do lixo espacial, que é um dos grandes problemas que temos neste momento. O que estamos a fazer no espaço é semelhante ao que fizemos nos oceanos. É uma zona que é de todos e não é de ninguém, e fomos atirando lá para cima coisas sem qualquer sentido de responsabilidade. A Europa (a ESA) está agora a implementar uma polícia de zero lixo espacial e também a economia circular no espaço. Ou seja, tudo aquilo que é colocado lá em cima, a partir de 2030 tem de ser posto cá em baixo. Há uma série de missões, mas é preciso monitorizar. E aí, se calhar, em vez de olharmos ground to space, ou seja, da terra para o espaço, teremos de olhar space to space. As observações já se desenvolverem lá em cima. Então entramos no Space 2.0, naquilo que é o in orbit servicing (serviços em órbita). Neste momento o espaço, sobretudo em órbitas baixas, é tudo menos sustentável. E há uma terceira componente do nosso programa, que é tirar partido da nossa geografia. Será que Portugal tem capacidade para ser um ponto de retorno do espaço e de acesso ao espaço? E a nossa resposta, por aquilo que temos visto e que temos vindo a trabalhar, é que sim.

Citaçãocitacao"O que estamos a fazer no espaço é semelhante ao que fizemos nos oceanos. É uma zona que é de todos e não é de ninguém, e fomos atirando lá para cima coisas sem qualquer sentido de responsabilidade"

Aí estamos a falar do porto espacial de Santa Maria e do lançamento do primeiro satélite, projetos que têm acumulado atrasos. Irão mesmo ser uma realidade?
Vamos já a partir do final deste ano dar um impulso muito significativo à componente dos Açores... Eu diria que sempre houve uma interpretação pouco séria daquilo que nós estávamos a falar. Gosto sempre de dizer que os Açores, e em primeiro lugar Santa Maria, têm a possibilidade de ter um pequeno ecossistema espacial que tenha várias valências. Por exemplo, há pouco falei do retorno e do acesso ao espaço. Há vários projetos que vão ser erguidos já a partir de janeiro [2023] em Santa Maria. Estamos neste momento à espera de fazer a escritura de uma série de instalações, e iremos fazer as infraestruturas para ser um ponto de retorno do espaço. E porque é que digo de retorno, para já? Porque vamos avançar com o projeto do veículo reutilizável europeu, que vai aterrar em Santa Maria, o Space Rider. Mas estamos aqui a olhar para outra perspetiva, como os voos hipersónicos, que serão muito importantes para aquilo que é o futuro do transporte aéreo e espacial, os voos suborbitais, o lançamento de rockets suborbitais. Na década de 2000 toda a gente pensou que ia ter um papel nas dot.com, mas o facto é que as 10 principais companhias tecnológicas do mundo são todas americanas, com uma ou outra chinesa pelo meio. Estas grandes áreas de negócio acabam sempre por ser dominadas por grandes grupos, porque são mais competitivos. O espaço vai ter mais ou menos a mesma direção. Neste momento, a maior empresa de lançamento do mundo é a SpaceX. Só que o Elon Musk está a preparar uma revolução ainda maior, que é lançar massivamente. Ele diz que quer atingir até 10 dólares por quilo. Hoje a SpaceX lança a 10 /15 mil dólares por quilo. Mas quando isto acontecer vai criar uma disrupção enorme no mercado.

Então faz sentido ainda a ideia do porto espacial de Santa Maria?
Faz, porque depois começa-se aqui a entrar em nichos. É a história do táxi e do autocarro: se eu for de táxi, vou às horas que quero, vou sozinho, vou por onde quiser, ou seja, pago as condições e comodidade disto tudo; se for de autocarro, vou quando tiver que ir. Os dois existem e são possíveis. Aqui, vai ter de ser o mercado a dizer o que é que é possível, não serão os governos. Portanto, o objetivo será lançar o porto espacial, a capacidade de acesso ao espaço, adaptada às características daquilo que for a procura do mercado.

E há um timing definido para isso?
Sim, as coisas têm que acontecer para o ano. Não vejo outra hipótese.

Dentro do papel que Portugal quer desempenhar na indústria espacial, qual a importância estratégica do porto de Santa Maria?
Eu sei que é mais emblemático vermos um rocket subir no espaço do que estarmos sentados ao computador a receber dados de satélite. Tem outro impacto. Mas não tem o mesmo impacto em dimensão económica. Ou seja, a dimensão económica em si do porto espacial... é mais uma atividade a adicionar às várias que Portugal tem. Agora, se vai ser a galinha dos ovos de ouro, isso certamente não vai ser. É importante no sentido de afirmar uma capacidade e eventualmente no futuro se desenvolverem capacidades.

Já disse que a Agência Espacial Portuguesa pretende promover na próxima década a criação de mil postos de trabalho qualificados no setor espacial em Portugal e atingir cerca de 500 milhões de euros de volume de negócios em 2030. Estas metas são possíveis? E em que ponto estamos?
Eu penso que são possíveis. Até porque 2025 vai ser eventualmente um ponto de viragem. Neste momento, com esses programas que estão a ser lançados, vai haver um conjunto de atividades que irá exigir muita massa crítica. Para ter uma ideia, nós duplicámos nos últimos 10 anos os profissionais que temos no setor. Não temos muitos profissionais, temos aí uns 1300/1400 nas várias empresas. É um setor que fatura na ordem dos 50 milhões de euros atualmente. Repare que o objetivo é multiplicar por 10, 500 milhões [até 2030]. O facto é que nestes próximos três anos, até 2025, essa multiplicação já vai ser por quatro, sensivelmente. A partir de 2025 Portugal deverá estar numa posição diferente daquela em que está hoje. Terá uma política de dados, terá satélites, terá eventualmente retorno e acesso ao espaço, ou seja, o ecossistema estará um bocadinho mais consolidado e mais abrangente. E a partir daí é mais fácil crescer.

Citaçãocitacao"Eu sei que tem mais impacto vermos um rocket subir do que estar ao computador a receber dados de satélite. Mas não tem o mesmo impacto em dimensão económica. O porto espacial não vai ser a galinha dos ovos de ouro."

A Agência Espacial Portuguesa é recente, de 2019, e a presença de Portugal na Agência Espacial Europeia tem 20 anos. Que participação tem hoje o país no cenário global da exploração espacial? Em que projetos internacionais está envolvido?
O espaço [português] começou há muitos anos com a cortiça. Hoje, quando olhamos para aquilo que Portugal faz, a maioria das pessoas não tem noção. Dou só um exemplo recente: estamos todos muito empolgados com o lançamento do programa Artemis, para exploração da Lua. Há um módulo que é feito pela ESA e aí leva tecnologia de duas empresas portuguesas. Por exemplo, a missão Hera, que vai ser lançada para o ano, tem uma série de empresas portuguesas nas comunicações, na sensorização, nas câmaras, na radiometria... Regra geral, em todas as missões da agência europeia estão empresas portuguesas. Portanto, nós estamos nos vários segmentos. Esse é o nosso footprint naquele que é o trajeto da Europa no espaço.

Há quem aponte o espaço como o próximo grande campo de disputa entre as grandes potências...
Eu creio que sim. A Rússia já disse estar a considerar os satélites como possíveis alvos militares. A realidade é que ninguém sabe o que será o mercado do espaço daqui a três, quatro, cinco anos. Mas há algo que toda a gente sabe: cada vez mais o espaço vai ser militarizado. Isto abre aqui uma caixa de Pandora. A evolução do espaço vai ser um espaço militar, e não se admirem que algumas estações internacionais sejam militares.

Que impactos provoca a guerra na Ucrânia e os cortes de cooperação com a Rússia na indústria espacial europeia e portuguesa?
Houve um impacto grande, porque havia com os russos uma colaboração muito estreita. De um dia para o outro acabou tudo. Havia uma série de missões europeias que estavam previstas voar em rockets russos. E há também outra coisa: a Europa vivia muito de uma cooperação com a Ucrânia em termos de motores para os lançadores. Isso desapareceu de um dia para o outro. O próprio problema dos materiais, o alumínio, o aço, houve um impacto muito grande. Mas passámos a tomar consciência destas dependências e a trabalhar a ideia de uma Europa mais resiliente. Não digo que o caminho deva ser o de uma desglobalização, mas efetivamente acaba por ser uma maior autonomia a nível europeu.

E a Europa tem capacidade para se afirmar de forma autónoma nesta corrida?
Sim. Teve de o procurar. Começou a perceber que tem de criar esta resiliência. Então, espero que agora, inclusive nesta próxima reunião interministerial, haja um entendimento claro de que há componentes que têm de ser produzidos numa Europa como hoje a conhecemos, não é numa Europa estendida [na última cimeira ibérica foi assinado também um acordo entre Portugal e Espanha na área dos semicondutores]. É por aí que teremos de ir.

Disse já que, no final desta década, "esta geração vai ditar aquilo que será a saída do nosso planeta e a existência de vida permanente em órbita". Vamos mesmo ter os Jetsons da vida real?
Temos um problema enorme para resolver, que é a nossa permanência aqui na Terra. Não há a perspetiva de que exista algo muito parecido com isto, pelo menos a distâncias consideráveis quanto ao nosso relógio biológico. Por isso temos um grande desafio, que é cuidarmos muito bem do nosso planeta para nos podermos aventurar noutro. Como dizia Carl Sagan já há uns aninhos, não virá ninguém salvar-nos de nós próprios. É o que ele disse: "to visit, yes; to settle, not yet". Estabelecermo-nos não vai ser possível, é contra a natureza humana. Agora, vai haver idas e vindas, vai haver mais permanência e vai haver mais estações em órbita, hotéis em órbita. Mas vai ser para uma elite: 99%, muitos noves mais à direita das pessoas vão continuar a viver aqui. Portanto, a exploração espacial tem que servir para incrementar o conhecimento, para melhorarmos a nossa vida aqui.
Estamos numa corrida contra o tempo e temos de ganhar tempo para conseguirmos um delta de conhecimento para resolvermos alguns problemas aqui na Terra.

Citaçãocitacao"Temos um grande desafio, que é cuidarmos muito bem do nosso planeta para nos podermos aventurar noutro. Como dizia Carl Sagan já há uns aninhos, não virá ninguém salvar-nos de nós próprios. "

E, em termos orçamentais, o governo tem dado o sinal adequado para o cumprimento dos objetivos na Estratégia Portugal Espaço 2030?
Em 2019, no chamado "conselho ministerial" da ESA, Portugal assumiu a maior contribuição financeira de sempre até à data. Nos últimos 10 anos Portugal duplicou praticamente a sua contribuição para o espaço, e isso é um feito notável. Hoje contribui sensivelmente com 103 milhões de euros para a agência europeia. Agora, em novembro, vamos novamente ser chamados ao conselho ministerial da ESA. É um momento crítico, porque estamos num momento muito complexo e há várias frentes orçamentais a que os países têm que acorrer. Mas não vejo para já nenhum sinal de que possa ser reduzida a contribuição portuguesa. Aliás, a agência portuguesa está a fazer um esforço para tentar ver se é possível um aumento da contribuição. Isso exige uma interpretação de que o espaço é crítico e vai ter nos próximos três anos um efeito imediato em tudo o que é políticas energéticas, de segurança, mitigação das questões do clima.

E como tem sido a execução do PRR nesta área?
O PRR veio dar um impulso muito grande à execução de alguns projetos. A constelação de satélites, por exemplo, vai ser feita através do PRR. Seria complicado de outra forma lançar projetos de orçamento semelhante ao que é a nossa contribuição para a ESA, teria de pedinchar muito ao primeiro-ministro e garantir que iriam chover milhões lá de cima. O PRR veio dar uma ajuda fundamental. Por isso é que digo que nos próximos três anos temos aqui uma oportunidade irrepetível. O budget do PRR é na ordem dos 200 milhões. Um dos objetivos é que Portugal tenha também capacidade industrial, consiga também fazer satélites. Não só operá-los, como fazê-los.

rui.frias@dn.pt

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