Fossem faraós ou simples camponeses, os antigos egípcios sabiam que as suas vidas estavam suspensas de um longo, mas estreito, fio de água, "plantado", como por milagre, no deserto. Por isso, tratavam o Nilo como a um deus, entoando-lhe cânticos que lhe aplacassem a ira e favorecessem a abundância. Em pleno deserto, o rio, que hoje sabemos ser o mais extenso do mundo, fornecia-lhes uma faixa de terra fértil, ao mesmo tempo que permitia o transporte de pessoas e mercadorias, decerto muito mais penoso se conduzido por terra. Mas se a história muda, a geografia não. Muitos séculos depois de Cleópatra se passear no rio, na sua barcaça de luxo, Gamal Abdal Nasser (1918-1970) compreendeu que o Egito moderno só se libertaria efetivamente do domínio das potências ocidentais (nomeadamente da Inglaterra, que ali teve um protetorado, em fases de intensidade diferente de 1882 a 1947) se usasse o Nilo como trunfo..Figura destacada da revolução de 1952, este coronel do exército, que se tornou o segundo presidente do seu país após a abolição da monarquia e o afastamento do rei Faruk, recuperou, no âmbito de uma política de afirmação nacionalista árabe, a ideia de construir uma grande central hidroelétrica no Nilo. O projeto não era novo: No século X, já os califas tinham visto as vantagens de construir uma grande represa naquele ponto do rio, mas abandonaram-no ao considerarem-no irrealizável. Em 1902, o califa reinante chamara engenheiros britânicos para lhes encomendar a construção de uma grande represa na área de Assuão ("mercado" em árabe), cerca de 800 quilómetros a sul do Cairo. O objetivo era controlar as violentas inundações que pendularmente ali se verificavam. O trabalho fez-se, mas não tardou a revelar-se insuficiente para as necessidades..Em guerra pela barragem.Homem moderno, Nasser queria mais do que controlar o ímpeto do rio. Queria transformá-lo em energia, resolver os problemas históricos que a falta de irrigação colocava à agricultura no país e ambicionava construir, nesse mesmo local, uma grande barragem, capaz de ombrear, em tecnologia, com o que de melhor se fazia no mundo. Ainda chegou a acordo com financiadores britânicos e norte-americanos, mas a proximidade com a União Soviética e o seu reconhecimento da República Popular da China levá-los-ia a virar-lhe costas. Para trás ficava também o projeto do engenheiro grego Adrian Deninos..O egípcio avançou sozinho, sem abdicar do projeto. Como o financiaria? Nacionalizaria o Canal de Suez, ainda explorado por uma parceria anglo-francesa, e, com o dinheiro obtido com os impostos cobrados em ponto de passagem tão fundamental para a navegação marítima, financiaria o empreendimento. Nasser sabia que estava a comprar uma guerra, no já de si muito conturbado panorama político do Médio Oriente do pós-guerra. A resposta militar ao anúncio da sua intenção não se fez esperar: a 29 de outubro de 1956, tropas israelitas invadiram a Península do Sinai, vencendo rapidamente a resistência das tropas egípcias. No dia seguinte, a Grã-Bretanha e a França ocuparam a zona do Canal de Suez. Em resposta a estes acontecimentos, a União Soviética ameaçou intervir em nome do Egito. Com a Europa de Leste em alvoroço por causa da revolta antissoviética na Hungria, o presidente Eisenhower considerou que importava não criar mais um foco de tensão numa região cronicamente tão volátil. Pressionou os seus aliados a retirar-se sob a supervisão das Nações Unidas. Após uma semana de conflito, que causou a morte a 3000 soldados egípcios, Nasser tinha carta-branca para avançar com os seus projetos..A construção e o apoio da URSS.Os impostos cobrados no Canal, agora nacionalizados, permitiram a Nasser começar a construção em janeiro de 1960. Mas não estava sozinho. Além da concessão de avultados empréstimos, os seus aliados soviéticos asseguravam o fornecimento de tecnologia de ponta, nomeadamente as 12 enormes turbinas da central elétrica. Não surpreende, pois, que em 1964, quando, uma vez concluída a primeira fase de construção, se começou a encher o reservatório, o líder da URSS, Nikita Kruschev, tenha sido convidado de honra de Nasser. Os ocidentais e os seus aliados de Israel arrepiavam-se com o que parecia ser um sinal evidente do crescimento socialista nos países muçulmanos do Médio Oriente. Mas nem a Guerra dos Seis Dias, entre vários países árabes (entre os quais o Egito) e Israel, nem todo o poder comandado pelo general Dayan podiam travar o Assuão..Nos anos seguintes, cerca de 60 milhões de metros cúbicos de cimento foram empregues para erguer a comporta, massa 16 vezes maior do que a pedra usada na Grande Pirâmide de Gizé. A 21 de julho de 1970, o projeto foi concluído na plenitude das suas ciclópicas dimensões. A Represa de Assuão mede 3600 metros de comprimento e 111 metros de altura. Igualmente impressionantes são os 980 metros de largura da base, que vai se reduzindo até aos 40 metros na sua parte superior. Conta com 12 geradores de 175 megawatts cada um e tem uma produção hidroelétrica de 10 000 GWh/ano. À data da sua conclusão já fornecia eletricidade a metade do território egípcio. Nasser morreu subitamente, de ataque cardíaco, aos 52 anos, dois meses após a conclusão da sua maior obra, deixando inconsolável uma multidão que via nele a personificação da libertação dos povos árabes face ao imperialismo ocidental e à ameaça israelita (diz-se que ao seu funeral no Cairo terão assistido cerca de quatro milhões de pessoas). Em sua homenagem, o seu sucessor, Anwar el-Sadat (que fora seu vice-presidente e será assassinado em 1981) atribuiu o nome de Nasser ao imenso lago artificial (um dos maiores do mundo) formado pela construção da barragem..Populações e monumentos deslocados.Apesar da sua importância económica, o projeto da nova barragem sempre levantou controvérsia por razões demográficas, ambientais e arqueológicas. Além do desaparecimento de várias espécies de fauna e flora fluvial, ficavam ameaçadas de submersão importantes monumentos e sítios arqueológicos da Antiguidade. Graças à intervenção da UNESCO, a parte mais significativa da vizinha Abu Simbel (a bela capital do faraó Ramsés II) foi deslocada para as margens do lago Nasser. Outros monumentos foram destinados e reconstituídos em países que, de algum modo, ajudaram com os trabalhos de resgate (é o caso do Templo de Debod, que hoje constitui um polo de atração num dos parques urbanos mais frequentados de Madrid)..Mais dramática, porém, foi a deslocação imediata de mais de cem mil núbios, que viviam, nas margens do Nilo, no sul do Egito e no norte do Sudão, desde o tempo dos faraós. Com uma identidade étnica, cultural e até religiosa própria (são muçulmanos mas com alguma influência cristã), foram forçados pelos funcionários do Governo a abandonar as suas casas e as explorações agrícolas. Sacrificavam-se pelo bem do Egito, assegurava-lhes Nasser, e o Estado saberia responder aos seus anseios, com casas e condições de vida à altura do que perdiam. Mas tal nem sempre aconteceu..A violência deste desenraizamento não foi esquecida pelos seus descendentes. Na sequência de muitos protestos mais ou menos velados ao longo de décadas, a Constituição Egípcia de 2014, saída da revolução de 2011, incluiu, pela primeira vez, uma cláusula que reconhece a sua identidade específica (estamos a falar de um grupo que, na atualidade, são mais de quatro milhões de pessoas) e comprometeu-se a assegurar o seu regresso à terra ancestral até 2025. Como nada tenha sido feito até à data, os núbios têm vindo a manifestar-se pacificamente pelo cumprimento de tais promessas, mas o presidente Al-Sissi não mostra sinais de os ouvir, dando, afinal, continuidade a uma longa história de segregação deste povo pela maioria egípcia.