Em Abril de 2015, por ocasião do 10.º aniversário da Fundação EDP, o então primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho, afirmava que Portugal "precisa de investimento externo como de pão para a boca". Não foi a primeira nem a última vez que a frase seria usada, mas naquele contexto tinha uma função evidente: justificar as privatizações realizadas nos anos precedentes, que se traduziram na perda de controlo nacional sobre grandes empresas de sectores estratégicos. A EDP é o caso mais óbvio, mas não é o único. A pergunta que ainda hoje devemos fazer é: o que ganha o país com isso?.O governo de Passos Coelho não foi o único nem o principal responsável pelas privatizações de grandes empresas de sectores estratégicos em Portugal. Desde a revisão constitucional de 1989, que postulou o fim da irreversibilidade das nacionalizações do pós-25 de Abril, foram privatizadas várias dezenas de empresas em sectores como a banca, os seguros, a energia, as telecomunicações, os transportes, a comunicação social, as indústrias da defesa, as águas, o lixo, os cimentos, a siderurgia, a construção naval, e muitos outros. Em Novembro de 2016, Fernando Teixeira dos Santos, ex-ministro e ex-secretário de Estado de vários governos do PS, estimava em quase 60 mil milhões de euros as receitas das privatizações desde 1989, orgulhando-se de ser "responsável por cerca de 40% desta receita"..Passos Coelho e Paulo Portas não são, pois, os campeões das privatizações. É verdade que, tal como noutros domínios, o anterior governo fez questão de ir além da troika. O memorando de entendimento assinado em 2011 com o FMI, o BCE e a Comissão Europeia obrigava o governo português a obter 5,5 mil milhões de euros de receitas de privatizações. No final de 2015 o Estado já tinha encaixado quase o dobro desse valor com a passagem para mãos privadas de empresas como a EDP, a REN, a Fidelidade, a ANA, a TAP, os CTT, entre outras. Além deste excesso de zelo, o que distingue o governo de Passos e Portas é a convicção com que se privatizaram empresas em sectores considerados em muitos países como fundamentais para a soberania nacional, elogiando o investimento estrangeiro qualquer que fosse a sua origem e as empresas a que se destinava..A recente visita do presidente chinês a Portugal ilustra alguns dos problemas que o Estado português já começou a ter de gerir em resultado dessa fúria privatizadora..Portugal é hoje o país europeu onde o investimento proveniente da China mais conta em percentagem do PIB. Entre 2011 e 2015, o Estado chinês ou grupos empresariais do Império do Meio tornaram-se investidores de referência em empresas dos sectores da energia (REN, EDP, Petrogal Brasil), da banca (BCP, Haitong/ex-BES Investimento, Bison/ex-Banif Investimento), dos seguros (Fidelidade), da comunicação social (Global Media, dona do DN, do JN e da TSF), da saúde (Grupo Luz Saúde), dos transportes aéreos (TAP) e muitos outros. A China é também o país que mais pesa nos chamados "vistos gold", tendo um impacto considerável no sector do imobiliário por essa via (e não só)..O surto de investimento chinês surge num momento particular da geopolítica mundial, em que o multilateralismo assente em regras e em organizações internacionais é posto em causa pelo próprio governo dos EUA, país que liderou a construção do sistema internacional que hoje conhecemos. Num contexto de grande incerteza sobre a configuração das relações internacionais, a China posiciona-se como actor incontornável num futuro mundo multipolar, procurando estender a sua influência política, económica e diplomática a vários cantos do mundo. Portugal não é excepção..Os entusiastas das privatizações e da venda de empresas estratégicas a investidores estrangeiros são frequentemente os mesmos que se dizem preocupados com a dívida pública portuguesa. Parecem assim esquecer uma regra básica da contabilidade nacional e das relações internacionais: o investimento directo estrangeiro também é uma forma de dívida do país face ao exterior. Uma dívida financeira, que se paga sob a forma de distribuição de dividendos, mais cedo ou mais tarde repatriados para os países de origem. E uma dívida política, que se paga sob a forma de perda de autonomia nas relações internacionais - principalmente quando o investimento inclui sectores cruciais para as economias receptoras. Cada vez que o governo português for chamado a pronunciar-se sobre questões vitais para os interesses chineses (no contexto da UE, da OMC, da ONU, etc.) saberá que poderão estar em causa os interesses estratégicos de Portugal - e não poderá deixar de ter isso em consideração..Contrariamente aos que demonizam o endividamento, não avalio a contracção de dívidas por si mesma, mas pelo potencial que a utilização dos recursos disponibilizados por essa via permite ou não realizar. Por essa mesma razão, não vejo o investimento estrangeiro como necessariamente positivo ou negativo - tudo depende do que acrescenta e do que retira ao país. Pode trazer capacidade tecnológica e de gestão, economias de escala e acesso a novos mercados. Também pode trazer apenas investidores ávidos de extrair dividendos, neutralizar potenciais concorrentes ou obter vantagens políticas (e pelo meio beneficiar alguns facilitadores de negócios)..Com a venda de sectores estratégicos ao exterior, os custos para Portugal sob a forma de perda de soberania, de pressão dos accionistas para obtenção de lucros (com reflexos nos preços pagos por todos nós e na qualidade dos serviços) ou nos custos da habitação (por via da pressão imobiliária) são hoje claros. Os benefícios ainda estão longe de ser evidentes. O entusiasmo pelo sucesso nacional na atracção de investimento estrangeiro chinês - e de outros países - deveria por isso ser mais contido.. Economista e professor do ISCTE-IUL