A fábrica da nostalgia

A nostalgia é tanto mais intensa ou expressiva quanto não se confunde com a memória.
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No primeiro ano de casados, tiraram o primeiro retrato. Berlim, Natal de 1900. Richard era funcionário dos caminhos-de-ferro e fotógrafo amador; a mulher, Anna, era doméstica e morreria em 1945. Durante 42 anos, sem hiatos nem falhas, os Wagner fizeram-se fotografar na sala de estar da sua casa, na noite de Consoada. O cenário e o enquadramento praticamente não mudavam: Anna à esquerda e Richard à direita, a árvore de Natal ao centro, uma mesa de refeições, os embrulhos próprios da quadra. Aparentemente, todas as fotografias mostram a mesma coisa, um casal burguês, convencional e feliz. Mas, de 1900 a 1942, o tempo mudou e a passagem dos anos é visível nas feições de ambos, nos cabelos que embranquecem, nas rugas dos rostos, na progressiva flacidez dos corpos, prenúncios do fim. Há outras diferenças subtis: na primeira fotografia, de 1900, a jovem Anna brinca com o seu gatinho Mietz; em 1915, um mapa mostra o avanço das tropas alemãs na Grande Guerra. Surgem ainda em cena diversos electrodomésticos: em 1927, um aspirador da marca Progress; em 1935, um aquecedor eléctrico; em 1937, um rádio do tipo Volksempfänger, igual aos que existiam nas casas dos nossos avós. Os Wagner não tiveram filhos, e as fotografias eram usadas nos cartões de Boas-Festas que enviavam aos amigos mais próximos. Richard morreu em 1950, com 77 anos, poucas semanas antes do Natal, e a sua colecção de retratos só foi encontrada quase meio século mais tarde, esquecida no sótão da casa de uma amiga do casal, na antiga Berlim Leste.

Em Tierra de Mujeres. Una Mirada Íntima y Familiar al Mundo Rural, um livro acabado de sair em Espanha, a veterinária e escritora feminista María Sánchez fala dos retratos emoldurados que enchiam as casas dos seus avós e interroga-se sobre os motivos que os levavam a fazer-se fotografar daquela maneira, com as suas melhores roupas, elas de brincos e gargantilhas, eles de gravata e correntes de ouro penduradas nos bolsos dos coletes. Por estranho que pareça, os retratos a preto e branco da casa dos avós de María Sánchez não diferem muito das selfies dos nossos dias, já que em ambos vibra a mesma pulsão narcísica, a obsessão em projectarmos no mundo (e no futuro) aquilo que temos, ou julgamos ter, de melhor. Daí sorrirmos e fazermos pose para a câmara, daí destruirmos ou apagarmos as fotografias em que "não ficámos bem", mas que são, afinal, as mais espontâneas e naturais de todas, as que nos mostram com o verdadeiro aspecto que carregamos no dia-a-dia, ou em que por acaso estamos com um olho semicerrado e um estranho trejeito nos lábios. É também por causa dessa pulsão narcísica que contratamos profissionais que fixam para a posterioridade o primeiro dia de escola das crianças, os casamentos e os baptizados, bailes de formatura, jantares de gala, os momentos mais memoráveis das nossas vidas, não necessariamente os mais marcantes ou decisivos. Desses, muitos há que não constam do inventário, sobretudo os que convocam a perda e a dor do luto. Ninguém de bom senso fotografa ou contrata alguém para fotografar o velório e o funeral dos pais, a agonia do marido no quarto de um hospital ou o desastre de automóvel que vitimou um filho. Seria até um sacrilégio pensar fazê-lo, e a palavra é mesmo essa, sacrilégio, pois tudo quanto respeita à fotografia tem muito de religioso e está envolto numa aura sacral, transcendente. Ornamentamos as nossas casas e os locais de trabalho com fotografias de familiares ou entes queridos, como se fossem santos em altares, quase sempre em ambientes de felicidade convencional: férias na praia, viagens ao estrangeiro, festas feéricas, reuniões de família. "Para mais tarde recordar", dizia o anúncio da Kodak, e do que se trata é disso mesmo: congelar um instante de felicidade momentânea, tantas vezes simulada, tentando fazer passá-la por indício de felicidade existencial, profunda e duradoura. A família fotografada junto ao mar, num entardecer de postal, não está apenas a passar um momento bom e memorável; está a representar-se, perante os outros mas sobretudo perante si própria, como um núcleo feliz e plenamente realizado no cumprimento da tão árdua tarefa a que Pavese chamou "o ofício de viver". Há uma infinita tristeza nessa encenação, que desesperadamente tenta iludir a efemeridade e a finitude da existência terrena (a fotografia é sempre um combate contra a morte e o esquecimento) e que, do mesmo passo, evidencia o modo uniformizado e padronizado como figuramos a felicidade ideal. Com isso, acabamos por buscá-la e vivenciá-la de um modo igualmente padronizado, impregnado de estereótipos e lugares-comuns, ou seja, sempre da mesma maneira: em milhões de lares por todo o mundo, as imagens sucedem-se, todas iguais - alegria e risos, beijos e abraços. Não é necessário sequer citarmos a estafada frase de Tolstói para percebermos que, de facto, todas as famílias felizes são iguais: basta olharmos para o modo como a felicidade é representada nos seus álbuns de fotografias.

Talvez isso nos conduza à conclusão paradoxal e terrível de que o mais fidedigno dos registos, o fotográfico, é, no fim de contas, o mais inautêntico de todos. Em Olhando o Sofrimento dos Outros, Susan Sontag debruça-se sobre as fotografias de guerra e demais desastres, mas o sofrimento dos outros (e de nós próprios) está também na forma como se fotografam ou deixam fotografar. Vemos os Wagner sorridentes para o cliché, mas ignoramos o que está antes e depois desse fugaz instante, as discussões e os silêncios, os segredos e as mentiras sórdidas, talvez até a violência; ou, pelo contrário, o amor eterno, a paz e a harmonia conjugais. Em rigor, nada sabemos deles nem do que foi a sua vida, se foram felizes ou infelizes, porque a fotografia não o mostra, ainda que aparente mostrá-lo, e aí reside o seu maior e mais enganador artifício.

A crítica intelectual desprezou durante anos este tipo de imagens, íntimas e familiares, geralmente captadas por amadores, considerando que elas nem sequer faziam parte do universo da fotografia. Quer dizer, era como se existisse uma coisa grandiosa e poderosa chamada "a fotografia" e outra, no plural, "as fotografias", que nada tinha que ver com a primeira. Em alguns casos, é certo, intuiu-se o valor documental dessas imagens ingénuas, mas só recentemente se descobriu o poder encantatório do seu verbo, o seu enorme potencial de mobilização de sentimentos nostálgicos tão em voga nesta época de "retromania". Começou então a demanda afanosa de fotografias perdidas nos velhos sótãos das casas, nos alfarrabistas, nas feiras da ladra. Não são os retratos de estúdio e as poses estudadas que despertam o maior interesse e procura, mas as imagens casuais de cenas vulgares do quotidiano, tanto mais valiosas se tiverem sido captadas ao acaso, sem um propósito definido. Quando María Sánchez diz, no seu livro, que prefere as fotografias esquecidas em velhas caixas de sapatos ou de bolachas, em detrimento dos retratos emoldurados e solenes, está a fazer eco de um sentimento dominante no nosso tempo, obsessivamente norteado pela busca da "autenticidade" e, por isso, presa fácil dos sedutores ardis da fotografia. Ao vermos os camponeses risonhos ou as varinas sadias de Artur Pastor tendemos a figurar o passado como um tempo idílico, melhor e mais feliz do que o nosso, em que se vivia frugalmente mas ninguém precisava de antidepressivos e de pornografia, em que não havia crime violento nem terrorismo islâmico, em que as pessoas eram mais bondosas e mais íntegras do que os nossos contemporâneos. E quando contemplamos as imagens glamorosas da alta sociedade ou do mundo da moda, captadas por um Cecil Beaton ou por um Norman Parkinson, julgamos que nesse pretérito perfeito imperavam o cavalheirismo e a elegância, a distinção e a classe, valores ausentes na barbárie massificada dos nossos dias.

É nesse ponto que a nostalgia se afasta radicalmente da memória: esta assenta na recordação do que se viveu e experienciou; a emoção nostálgica, pelo contrário, prescinde da experiência do vivido. Mais ainda, a nostalgia é tanto mais intensa ou expressiva quanto não se confunde com a memória, ou seja, quando se projecta sobre realidades não vividas e que, por isso, não podem ser recordadas ou evocadas como tal. A memória, é certo, também pode ser nostálgica, mas nesse caso é sempre selectiva, filtrada e complacente. "Que bela vida tínhamos em Angola!", diz o retornado de África em transe pós-colonial, lembrando as cálidas tardes no Mussulo, mas esquecendo a miséria dos musseques, a permanente angústia com os ataques dos "turras", as quezílias no trabalho e o patrão insuportável, a maleita tropical do primogénito ou as pragas de baratas esvoaçantes. A imagem desempenha um papel crucial nessa reconstrução selectiva da memória, pois aquilo que se fotografava, como é óbvio, eram as tardes de praia no Mussulo, não a miséria dos musseques.

Mas a fotografia tem outro papel, ainda mais crucial: dirigindo-se a nostalgia àquilo que não se viveu, só através de imagens temos acesso ao passado que não foi nosso. Somos capazes de sentir saudades do Rio de Janeiro dos "anos dourados" da década de 1950 ou do Algarve imaculado da década de 1960 porque os conhecemos através de fotografias, de imagens que nos transportam para épocas e lugares onde nunca estivemos, e de que nos apropriamos num suave exercício de auto-ilusão romântica. Uma vez mais, é através de um ardil e de uma falsidade que a fotografia opera, e por isso ela é tão poderosa e perigosa. "Engana-me que eu gosto", mote supremo de todos os nostálgicos.

Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.

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