Mariana Mortágua: "Seja quem for o líder do PS, terá de enfrentar o Bloco"

A líder do Bloco de Esquerda recusa falar sobre entendimentos futuros à esquerda com o argumento de que o presente é que conta - e o presente é para "acertar contas" com o PS. Ao PSD lança a acusação de ter adotado "métodos e discursos" do Chega.
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Tinha 27 anos quando foi eleita deputada pela primeira vez, já se disse perseguida por ser mulher, de esquerda, filha de um resistente antifascista e aparentemente por ter o dom de incomodar algumas pessoas com muito poder. É doutorada em Economia e Francisco Louçã já disse que daria uma boa ministra das Finanças. Lidera o Bloco de Esquerda desde maio passado.

Quem são os facilitadores com quem quer acertar contas que são, como diz, a nata podre do regime?
A nata podre do regime é um conjunto de interesses económicos que são as grandes empresas do país, que tiveram diferentes protagonistas ao longo do tempo. Alguns acabaram por ir à falência e arrastar com eles milhares de milhões em negócios e até em projetos importantes para o país. Outros surgiram agora na forma de grandes fundos de investimento, de grandes interesses e que têm depois quem lhes facilita a vida. E quem lhes facilita a vida é quem facilita o investimento, quem abre as portas, quem muda as leis a seu favor. Vimos isso acontecer na EDP.

E esses são?
São vários. São as empresas de advogados, são ministros, muitas vezes, são secretários de Estado. É um regime de portas giratórias que faz com que os interesses de um grupo pequeno de pessoas e de grupos económicos passem por interesses nacionais. E isto acontece sem que nós nos apercebamos. É do interesse nacional ter este projeto económico. E isto falou-se na altura dos projetos imobiliários de luxo da Comporta ou da Herdade do Pinheirinho, que hoje sabemos que são atentados ambientais. Como se falou do lítio, como se falou do hidrogénio, como era do interesse nacional vender a PT ao Brasil, como era depois do interesse nacional vender o resto da PT à Altice. É sempre do interesse nacional quando, na verdade, é do interesse de um punhado de empresários, e de gente com poder, que depois vai manipulando o interesse público e quem está no governo.

É por isso que fala de rufias que, como diz, criaram o caos na saúde e na educação?
Sim. Acho que um país que é gerido ao sabor destes interesses deixa sempre para trás uma maioria e um povo que não tem este poder e que não tem o poder de determinar o interesse nacional. Um ministro de saúde tem de decidir se quer investir na saúde, o que quer dizer ter profissionais, ter um SNS forte. E ao não fazê-lo, alegando que não há dinheiro para isso, que não é possível, depois há sempre dinheiro para outras coisas, mas para isso não há, o que está a fazer é facilitar o negócio privado da saúde, que vai crescendo à custa do orçamento do SNS. Por isso, sim, são facilitadores de alguns dos maiores interesses económicos em Portugal neste momento, que são o interesse da saúde.

É possível uma geringonça com verdadeiros rufias ou com facilitadores?
Eu penso que esta questão não se coloca neste momento, porque neste momento o que nós estamos a discutir é um governo na maioria absoluta que deixou cicatrizes profundas no país, que deixou uma situação de desgaste social e de desgaste político. E o desgaste social é um governo que virou as costas a uma maioria de gente que não consegue encontrar uma casa. E não conseguem encontrar uma casa porque há um grupo de interesses imobiliários e de especuladores que ganhou com os preços das casas a subir. E é preciso acertar contas com essa maioria absoluta. E neste momento é isso que é preciso fazer. Cada partido tem que vir a jogo, tem que vir a terreno, acertar essas contas, olhar para o que aconteceu no país e dizer qual é o seu programa para o país. Acho que devemos isso às pessoas.

Mas o que se passará no pós eleições modela a decisão das pessoas. Para um entendimento do Bloco com o PS é uma linha vermelha parar a privatização da TAP? É algo que o Bloco não tolera de todo a continuação desse processo?
Eu não falo em termos de linhas vermelhas. Se retirar essa parte da pergunta, eu respondo sobre a TAP.

Fale como entender.
Acho que é muito importante que Portugal possa ter uma empresa estratégica como a TAP. E a sua privatização é a garantia que ela deixará de ser portuguesa. E isso aconteceu com a PT, aconteceu com o CTT, aconteceu com a EDP, aconteceu com a REN, com todas as empresas, com a ANA. Todas as empresas que foram privatizadas e que acabaram ou destruídas ou em mãos de fundos de investimento internacionais. A única forma de manter a TAP, que é estratégica, de manter os seus postos de trabalho, de manter uma empresa que faz compras em Portugal, que é importante para as exportações, que é importante para o país, para a economia do país, é mantê-la nas mãos do Estado.

Admitiria um entendimento com o PS se isso não parasse o processo da privatização da TAP?
Este não é um momento de discutir entendimentos. Este é um momento de discutir a maioria absoluta e o que o governo do PS fez ao país. E é preciso ajustar contas com esse tempo. E quando nós olhamos para o PS neste momento, no momento em que falamos, o que vemos são dois candidatos que apresentaram agora as suas moções, e o que essas moções confirmam é uma disputa dos candidatos para ver quem é que é o maior herdeiro da maioria absoluta. A maioria absoluta deixou o país numa situação de crise social e política. E falar do futuro, sem falar do presente e sem falar do que aconteceu há muito tempo, sem falar da maioria absoluta é um erro. É preciso compreender o que é que se passou neste país para um governo de maioria absoluta ter caído de um dia para o outro, para um governo que tinha toda a estabilidade e toda a maioria para governar ter deixado Portugal no estado em que deixou.

Não admite que o Bloco, como qualquer partido, tem um dever de transparência perante os eleitores e explicar claramente qual será a sua política de aliança?
O dever do Bloco é o de apresentar alternativas e soluções. Dizer exatamente o que é que correu mal. E o que é que faria de diferente. Eu sou líder do Bloco de Esquerda e candidato-me a eleições pelo meu programa. E o dever que eu tenho para com os eleitores é de explicar esse programa. E dizer cara a cara às pessoas o que é que eu faria de diferente. E o que é que eu proponho de diferente para o país. E neste momento é essa a minha preocupação, e é isso que eu quero que as pessoas conheçam.

O Bloco admite um dia deixar de ser um partido parlamentar e ser um partido de governo?
Nós nunca rejeitámos ser um partido de governo. Não há nenhum tabu em ser partido de governo. O Bloco será um partido de governo para governar com ideias que tem. Com o seu programa. Com o programa de transformação do país. Mas isso depende de uma maioria social. Isso depende da força que é capaz de ter. Eu já o disse várias vezes e repito. Ser governo não é ser um ministro para executar ideias de outro. Ser governo é ter força para poder...

O que é uma maioria social?
A maioria social...

Como é que isso se traduz eleitoralmente?
Uma maioria social é uma maioria que dá força. São os votos que cada partido tem. E que dá força às ideias e ao seu programa. Para poder executar o seu programa. Quando eu vou a eleições, e quando apresento o meu programa, eu tenho um programa para defender a habitação. Que não é o mesmo programa do PS e não é o mesmo programa da direita. E o que eu quero dizer às pessoas é que sou capaz e quero baixar o preço das casas. E que tenho medidas para isso. Mas para isso eu preciso do apoio. Eu preciso dos votos das pessoas para esse programa. E eu acredito que vou tê-lo.

As pessoas contam nos governos. Pedro Nuno de Santos foi um pivô central nas negociações da geringonça. Isso dá ao Bloco uma confiança para ensaiar uma nova relação com o PS? Dito de outra forma, Pedro Nuno de Santos é confiável?
Tanto quanto sei, neste momento há dois candidatos em disputa no PS. Nenhum ganhou. E o que eu posso dizer neste momento do que vejo no debate do PS...

Mas falando de Pedro Nuno de Santos...
É que ambos disputam a herança da maioria absoluta. E o que eu acho é que ambos os candidatos à liderança do PS, que não está definida, ainda vão a eleições, e não serei eu com certeza que a vou definir, estão a disputar a herança da maioria absoluta sendo absolutamente incapazes de olhar para trás e perceber os erros da maioria absoluta. O que é que correu mal para que um partido que teve todas as condições para fazer diferente tenha deixado o país na crise social e política em que deixou.

Quem é mais confiável? Pedro Nuno de Santos, que teve um papel na geringonça, ou José Luís Carneiro, um centrista?
Eu não tenho preferências para o próximo secretário-geral do PS. Acho que quem tem que preferir escolher são os militantes do PS. Sou líder do Bloco de Esquerda e vou debater com o próximo secretário-geral do PS. E vou debater com o próximo secretário-geral do PS sobre o que aconteceu durante os anos da maioria absoluta, e sobre a forma como viraram a cara ao país e como deixaram o país numa situação em que uma pessoa que recebe um salário de 1000 ou de 1500 euros não consegue encontrar um lugar para viver.

Então traça cenários para perceber com quem é que pode ter que vir a entender-se.
Seja quem for o secretário-geral do PS, terá de enfrentar o Bloco de Esquerda sobre o que fez à habitação e ao Serviço Nacional de Saúde. Porque essa é a herança, essas são as cicatrizes que a maioria absoluta deixa no país.

E para o Bloco? O que é que poderá ser um mau resultado ou um bom resultado ou um resultado assim e assim?
Tenho objetivos, e acho que o objetivo de qualquer partido que se candidata às eleições é ter o melhor resultado possível. O meu objetivo é ter o melhor resultado possível. E vão-me perguntar o que é o melhor resultado possível. O melhor resultado possível é ser capaz de impor soluções. É ter força para executar o meu programa.

O que é que significa impor soluções?
É ter força. É ter força para poder pôr um teto às rendas. É ter força para poder proibir a venda de casas a estrangeiros.

Impor soluções significa ter mais deputados?
Sim.

Mais deputados significa ter um melhor resultado que nas últimas eleições?
Os regimes democráticos e parlamentares fazem-se assim. Quem tem mais deputados consegue determinar as soluções para o país. E eu quero determiná-las. Porque acho que o Bloco apresenta um programa que este país ainda não viu, e que pode trazer novas soluções para problemas que se arrastam há demasiado tempo. E que se agravaram com maioria absoluta. Entre eles esta questão central da Habitação. Porque não é só a dificuldade de encontrar uma casa. É a forma como a crise na habitação empobrece toda a gente. Porque não há salário que resista ao preço das casas. E faz com que as pessoas emigrem. E faz com que as pessoas não tenham perspetivas de futuro. E não consigam ter uma família. E essa é uma angústia. E é uma prisão.

Essa sua ideia eu percebo. O que eu quero perceber é qual é a fasquia. Se quer impor soluções tem que ter na sua cabeça uma fasquia que lhe permita impor soluções. Ninguém consegue impor soluções sem ter um teto. Um número confortável de deputados. E eu queria perceber qual é a sua fasquia.
A minha fasquia é ter a força necessária para impor soluções. E o céu é o limite.

Quer dizer, ter força necessária até podia implicar perder deputados mas ficar com uma força de charneira entre a maioria de esquerda depender do Bloco ou não.
Os partidos servem de propósito de transformação social. E é por isso que eu estou na política. Para transformar as coisas. E, portanto, quando me perguntam se vou a eleições, porque é que vou a eleições? Eu vou a eleições para transformar o país em que vivo. E vou a eleições com um coletivo de gente que quer transformar o país em que vive. O objetivo que nós temos para ir a eleições é esse. É transformar o país em que vivemos. Ter força para o fazer. O que é que nós sabemos que é preciso para ter essa força? Eleger deputados. Quanto mais deputados e deputadas elegermos, mais força teremos no Parlamento para poder impor soluções diferentes. Para poder executar o nosso programa. E isto é a única coisa que eu posso dizer com honestidade e com transparência.

E uma perda de deputados é para si admissível? Como é que reagiria?
Não, penso que uma perda de deputados seria sempre uma derrota eleitoral. E não tenho nenhum problema em dizê-lo. Eu quero ganhar deputados.

Há a assunção individual de responsabilidades nessa circunstância por Mariana Mortágua, qual será?
Todas as vitórias e derrotas do Bloco de Esquerda são vitórias e derrotas de um coletivo. Nós não somos partidos individualistas. Somos partidos que se dirigem por um coletivo de gente. Eu faço parte desse coletivo. Esse coletivo assumirá todas as vitórias, inclusive aquelas que vamos ter nas próximas eleições.

O que é que está a falhar à esquerda que justifica, por exemplo, o crescimento da extrema-direita? Ou não é culpa da esquerda, é culpa da vida?
Não, não acho que seja culpa da vida. Acho que a extrema-direita tem um ambiente em que cresce. Esse ambiente é, antes de mais, o da desagregação da direita tradicional. A direita tradicional ficou sem programa. Em Portugal, em particular, mas isso aconteceu um pouco por todo o mundo ocidental. E ficou sem programa em particular em Portugal porque depois de ter governado com a troika, de ter dito ao país que era necessário empobrecer, que era preciso políticas de austeridade, que isso era a solução para nos redimirmos dos nossos pecados, foi possível demonstrar que não era assim. E que havia outras alternativas. E depois disso enfrentaram um PS que governou ao centro, que governou com o lema e o mote das contas certas, que retirou ao PSD muito do seu espaço de atuação, e que deixou a direita do centro e a direita tradicional sem programa e sem caminho. E também é verdade que esta incapacidade da direita tradicional de se afirmar ajuda ao surgimento de uma extrema-direita violenta, boçal, agressiva, e que tem a sua expressão em Portugal como tem um pouco por todo o mundo.

O facto de, por exemplo, o Bloco durante muito tempo ter posto no centro da agenda desigualdades muito específicas, desigualdades de género ou desigualdades baseadas na orientação sexual, aquilo que alguém chamou as causas fraturantes, não criou a ideia de que as desigualdades sociais gerais tinham deixado de ser prioridade? Não insuflou a possibilidade de crescimento do ressentimento e de sentimentos de exclusão que alimentam a extrema-direita?
Não me venha por favor dizer que defender direitos para todos alimenta a extrema-direita, porque isso eu não aceito.

Mas eu não estou a dizer que defenda direitos para todos, estou a dizer que a defesa de direitos específicos depois criaram a perceção de que os direitos sociais gerais não eram prioritários.
Isso é uma ilusão, é uma falsidade. O Bloco de Esquerda sempre defendeu os direitos gerais totais. O Bloco de Esquerda foi a força que se afirmou contra a precariedade. O Bloco de Esquerda introduziu o termo precariedade em Portugal. O Bloco de Esquerda fez um programa de integração de precários do Estado que foi o maior que este país já viu. O Bloco de Esquerda denuncia e está ao lado de quem vive de baixos salários. Eu não vejo mais ninguém a falar disso. Mais ninguém. E, portanto, dizer que a extrema-direita cresce porque este partido que defende toda a gente, inclusive as pessoas que pela orientação sexual, por serem negras, por serem imigrantes têm menos direitos, e que defender mais direitos é causa de crescimento da extrema-direita, isso eu não aceito.

O Chega está a crescer muito nas sondagens. Porque é que isso acontece e por que é que isso não acontece também com o Bloco de Esquerda? O que é que está a correr mal?
Nada está a correr mal. O Bloco de Esquerda está a crescer nas sondagens. Nas sondagens e não só. Está a crescer na sua capacidade de influência e de determinar o debate público. O debate público hoje é marcado pelas propostas pela habitação, por exemplo, e em larga medida eu acho que isso também é fruto de o Bloco de Esquerda ter colocado a habitação no centro do debate com propostas muito concretas.

Mas há uma diferença no crescimento. Parece que os seus argumentos são mais fracos ou menos eficazes do que os do Chega.
A força dos argumentos é a força das propostas e a força da razão. E qualquer pessoa sabe quais são as propostas e qual é a razão do Bloco de Esquerda. É a razão de quem defende a habitação. É a razão de quem defende o SNS. Eu, do Chega, o que conheço é que defende os vistos gold e que é apoiado financeiramente por interesses imobiliários.

E como é que um partido como o Bloco pode ter um discurso que seja eficaz naquilo que são os potenciais eleitores do Chega?
O Bloco de Esquerda pode afirmar-se, como sempre afirmou, como uma força séria na denúncia de um regime económico que tem tomado conta deste país, mas também na afirmação de um estado social e de uma vida com direitos. Isto está nos antípodas do que defende a extrema-direita. A extrema-direita tinha no seu programa acabar com o SNS, vendê-lo às postas, acabar com o sistema de educação, despedir os professores, acabar com os direitos sociais, baixar os salários. É por isso, aliás, que não tem nenhuma proposta, porque no dia em que disser a proposta que tem solta-se a caixa de Pandora e solta-se o horror. E, portanto...

Porquê?
Porque a proposta é esta. Porque a proposta é acabar com o SNS, acabar com o sistema de educação, é destruir direitos sociais. A proposta é servir o mesmo regime de interesses. A extrema-direita não está contra o sistema. A extrema-direita é o pior que o sistema tem. E é por isso que é apoiada pelo sistema. É por isso que é apoiada pelos interesses económicos da especulação imobiliária. É por isso que é apoiada pelos interesses económicos que são donos das maiores empresas deste país. Todos financiam a extrema-direita em Portugal. E o que eu posso dizer às pessoas é o que digo. É que o Bloco se bate para que toda a gente...

Repetindo, os grandes empresários apoiam a extrema-direita. Foi isso que disse?
Sim, sim.

Nomeia alguns?
Champalimaud, por exemplo, financia o Chega, diretamente. São os donos do CTT. Há vários. Eu até tenho uma lista, se quiser. Tenho sempre o cuidado de trazer essas... O Grupo Barraqueiro foi dono da TAP, financia o Chega. A família Mello financia o Chega. Francisco Cruz Martins esteve envolvido em Vale do Lobo e naquele projeto que levou a Caixa Geral de Depósitos a perder milhões. Esteve envolvido no BES e nos Panama Papers, e fez declarações a dizer que estava a angariar apoiantes para o Chega e financiadores para o Chega. Salvador de Andrade, que trabalhou no imobiliário do BES, foi administrador de umas empresas de imobiliário do BES. Francisco Sá Nogueira, que foi administrador de empresas de turismo e de viagens do BES. Todos eles financiam o Chega. Todos eles.

E o objetivo é?
O objetivo, toda a gente sabe o que é. É defender o mesmo regime de interesses. O mesmo regime de economia viciada. O mesmo regime de portas giratórias. E é por isso que a extrema-direita cala o bico quando se trata de vistos gold. E quando se trata de oligarcas russos em Portugal. E quando se trata de resorts de luxo. Nunca ninguém ouviu, nunca ninguém ouviu nem ouvirá a extrema-direita a bater nos resorts de luxo. A extrema-direita bate em quem está no chão. Bate em quem já foi destruída, em quem já não existe. Nunca ninguém viu a extrema-direita a combater alguém com poder. Alguém com poder de verdade. Quando Ricardo Salgado tinha poder ou quando Zeinal Bava tinha poder. Isso nunca ninguém ouviu.

Quando fala de uma direita...
Quando eu falo às pessoas sobre o que é o Bloco de Esquerda. O Bloco de Esquerda é a força que está neste país há 20 anos a combater as portas giratórias. E a combater quem tem poder. E é por isso que eles não nos suportam. E não nos financiam, certamente. Mas queremos fazer mais do que isso. É porque nós sabemos que este regime de portas giratórias, este regime de privilégios, que acaba sempre por beneficiar a especulação e os interesses de algumas empresas, é a garantia de que há especulação imobiliária e que as pessoas não podem aceder à habitação.

Quando fala de uma direita raivosa, mais boçal, até chegou a dizer muito violenta, está a falar também do PSD e do líder do PSD, Luís Montenegro?
Eu gostava de falar mais sobre o meu programa e menos sobre a direita. Mas é óbvio que há um efeito de arrastamento de um PSD que não tendo programa porque o PS tomou para si as contas certas, que não são certas, porque depois estão sempre excedentes orçamentais, colocam em causa o SNS. Que faz com que a direita entre numa disputa, e essa disputa se faça em termos cada vez mais violentos. E nós vemos isso em Portugal, como vemos isso noutros lados do mundo.

E onde é que encontra boçalidade e raiva no PSD?
Eu penso que toda a gente que está a assistir ao debate público percebe perfeitamente o que é que eu estou a falar.

Explique-me.
Já expliquei. Acho que a imposição dos métodos da extrema-direita no debate traz uma agressividade, uma violência, uma boçalidade, que não fazem bem ao debate democrático, que não ajudam ao esclarecimento de ideias, que criam anátemas, que não ajudam a que se possa discutir propostas, e que desviam o assunto do que é verdadeiramente importante.

E essa boçalidade, essa raiva, essa violência também se transferiu para o PSD?
Tal, aliás, como estamos a desviar o assunto desta entrevista daquilo que é verdadeiramente importante, acho eu, tenho modéstia de que se me disserem o contrário, mas acho que são os problemas do país. A maioria absoluta caiu. Porque o país vive uma crise social. E é sobre ela que nós temos que falar.

Sim, mas queremos perceber o sentido das suas palavras. Se essa boçalidade que fala, se essa violência que fala, se essa raiva que fala, se também transferiu para o PSD?
Mas eu já disse que acho que, à medida que o PS ocupou o espaço do PSD na retórica e em muita da sua política, o PSD, que não tem um discurso político, tem muito mais dificuldade em ter um discurso político, e que se sente pressionado pela extrema-direita, adota métodos e discursos da extrema-direita. Eu não estou a inventar nada ao dizer isto. Não estou a inventar nada. Posso apenas lamentar, em nome do debate democrático, que assim seja.

Em nome do debate democrático, se o processo contra António Costa no Supremo não der em nada, acha que a procuradora-geral da República deve assumir responsabilidades? Ou que consequências é que deve assumir?
Acho que este caso inquieta os portugueses. E é normal que inquiete, porque são suspeitas sobre o primeiro-ministro. Há duas coisas que é importante dizer. Em primeiro, que a Justiça tem que trabalhar livremente. E que é óbvio que ninguém está acima de suspeita. E a Justiça tem que trabalhar livremente para investigar as suspeitas que tem. Mas também é verdade que a Justiça e a Procuradoria-Geral da República, em particular, devem dar explicações à democracia, deve dar explicações ao povo.

Só isso?
Isso é o que eu posso dizer neste momento perante as informações que temos. Não serei eu a fazer outras afirmações sem ter mais informação. E é precisamente porque sabemos muito pouco, todos nós...

Mas podemos chegar a essa parte em que o processo não der em nada, é arquivado.
Não comento cenários, eu comento o presente. E acho que essa é a minha responsabilidade. Perante um caso tão inquietante, acho que é importante que a Justiça trabalhe livremente e de forma célere, porque ninguém deve viver sob suspeita. E é importante que fossem prestadas explicações ao país para que as pessoas saibam do que se trata. E são importantes duas outras coisas o tema destas investigações: a primeira é que, com crime ou sem crime, e isso não está em questão, isso tem que ser a Justiça a avaliar, é levantado o véu, não é só agora, já foi muitas vezes no passado, do tal regime de promiscuidade que falava, e das portas giratórias, e da facilidade com que se fazem alguns negócios, e que é importante denunciar porque política industrial não é isto. E porque se pode criar ideia em Portugal que para ter política industrial é preciso abdicar. Abdicar de transparência, abdicar de defender o interesse do país, abdicar das receitas do Estado, abdicar dos interesses internacionais, ambientais, e que tudo isso pode ser abdicado para nós termos política industrial. E eu acho isso uma má ideia. Em segundo lugar, acho que, e aproveito porque acho que é importante, nestes momentos, também que tenhamos, que essa transparência se possa estender à comunicação social. Que tem um papel muito importante na denúncia nestes casos, e que isso possa significar ter um jornalismo livre e uma imprensa crítica, e que a idoneidade dos acionistas dos grupos de comunicação social esteja garantida, e que a independência e as condições de trabalho dos jornalistas estejam garantidas. E por isso também me preocupa muito aquilo que está a acontecer neste momento na Global Media, desde a passagem de uma parte do capital de Marco Galinha para um fundo que não conhecemos bem quem é, nem em que condições é financiado, e também nas condições de trabalho dos trabalhadores deste grupo. Muitos deles à beira e sob ameaça de um despedimento coletivo, com alterações sem consulta de Conselho de Redação, e acho que poder ter esta imprensa livre de qualidade também é uma garantia de democracia.

Agradecemos a preocupação. Se dependesse de si, exclusivamente de si, Catarina Martins seria a cabeça de lista do Bloco ao Parlamento Europeu, ou a candidata presidencial?
Nós ainda não vimos essas listas, até porque, entretanto, temos eleições legislativas no caminho. O que eu acho e tenho dito é que a Catarina Martins é...

Pode ser o que quiser.
Pode ser o que quiser.

Se depender de si. Se depender de si. Não estou a falar de uma decisão coletiva do partido, mas se Mariana Mortágua tivesse o poder de, por si só, decidir quem seria a cabeça de lista ao Parlamento Europeu ou a candidata a presidencial, Catarina Martins poderia ser essa escolha?
Quando eu digo que Catarina Martins pode ser o que ela quiser, o que eu estou a dizer é que, se depender de mim, ela pode ser o que ela quiser, porque ela será sempre a melhor candidata, porque ela é a melhor que nós temos.

Vamos falar um bocadinho do programa do Bloco na questão da habitação. Sentimos que há muitos senhorios, senhorios tradicionais, que temem o Bloco, por terem medo de leis que lhes tiram o controlo das suas casas. Coisas como arrendamento compulsivo, complicações nos despejos, congelamento de rendas, e, repito, estamos a falar de senhorios tradicionais. Preocupa o Bloco de Esquerda a possibilidade, não assustar estas pessoas, ou até do ponto de vista dos interesses eleitorais do Bloco, dado que não contam com estes votos, estão-se mais ou menos nas tintas, para estas preocupações?
Eu não penso a política em termos de interesses eleitorais, penso a política em termos de justiça.

É extraordinário numa democracia dizer isso, não é?
Se pensasse em termos de votos não tomava posições difíceis às vezes, e acho que temos que tomar as posições em que acreditamos e tentar ter as propostas e as soluções mais justas possíveis. Há vários pontos da resposta a essa pergunta. Há vários pontos de resposta a essa pergunta. O primeiro ponto é, quando discutimos políticas públicas, sejam elas quais forem, há sempre o dom de, por alguma razão, conseguirmos colocar o país a debater o prejuízo para os senhorios de poder limitar um pouco as rendas e nunca a debater a desgraça dos inquilinos, o que se passa com quem tem que arrendar uma casa e não consegue. E eu penso que as histórias que eu tenho, dos meus amigos, das pessoas que eu conheço à minha volta, toda a gente tem. São pessoas que já pagam uma renda mais do que razoável, 1000 euros, 1200 euros em alguns casos, a quem o senhorio chega e diz, peço desculpa, vou aumentar para 1600. Mas vai aumentar porquê? 'Porque posso. Vou aumentar porque posso.' As rendas aumentaram em Portugal nos últimos anos, 40/50%. O nosso problema em Portugal, neste momento, não é um problema de empobrecimento de senhorios. É um problema de empobrecimento generalizado e acelerado de quem não tem propriedade. E um empobrecimento a sério. Estamos a criar um país em que quem tem propriedade consegue viver e ganhar bem a vida com isso quem não tem é expulso das cidades. É expulso. Não consegue ter uma família. Não consegue encontrar um T2 para ter um filho. É disto que nós estamos a falar. E apesar disto há o dom de nunca dar a palavra a estas pessoas. E de nunca dar a palavra a uma maioria que tem a vida destruída porque não consegue uma casa. E de colocar os interesses de quem neste momento está por cima, porque está, são circunstâncias da vida, têm circunstância de ter propriedade e as rendas têm aumentado 30%, no centro das preocupações. Dito isto, se eu acho que uma política que congelou rendas durante 30 anos em Portugal, fez algum bem ao mercado da habitação e ao direito da habitação, acho que não. Acho que foi uma política errada.

Diga-me uma coisa. O PS governa há oito anos e metade desse tempo o BE integrou um entendimento à esquerda que foi designado genericamente por 'Geringonça'. Nesses quatro anos, o que é que o Bloco fez, ou teve capacidade de fazer, ou tentou fazer, mas não conseguiu fazer, na questão da habitação?
O Bloco tentou fazer muitas coisas. Como sabem, o acordo que nós fizemos em 2015, e relativamente ao qual fazemos uma avaliação positiva, foi cumprido, e acho que a avaliação que toda a gente faz, essa legislatura, entre 2015 e 2019, é uma avaliação positiva. O balanço geral desse acordo entre 2015 e 2019 é um balanço positivo. É preciso perceber em que contexto é que ele surge. Ele surge num contexto em que Portugal estava a sair de uma intervenção da troika, e que era preciso aquilo que nós chamámos de destroikizar o país e recuperar a dignidade e a esperança num país que estava destruído.

E também num contexto não irrelevante do PSD até ter ganho as eleições. Ou seja, de ser possível que a maioria...
O PSD ser o partido mais votado sem uma maioria parlamentar.

Sim. E penso que isso foi importante para o país. E acho que esse diagnóstico tem o apoio de uma grande parte da população em Portugal. Se esse acordo foi a questões estruturais, da forma como se organiza o poder económico, da forma como se organiza o Estado Social, da forma como se organiza o mercado da habitação, não foi.

Foi uma 'geringonça' de remendos?
O acordo que nós fizemos foi um acordo circunstancial que naquele momento precisava de acudir a questões essenciais para o país. Que eram os salários, as pensões, a enorme quebra de rendimentos. Era preciso travar as privatizações. Nós temos que nos colocar em 2015, e olhar para esse acordo à luz de 2015. E o que conseguimos em 2015 foi um acordo para aumentar o salário mínimo nacional com um ritmo previsto e ao longo dos anos. Foi um acordo para retirar todos os cortes salariais. Na altura o PS queria congelar as pensões. E o que nós conseguimos fazer foi pôr em vigor a lei que hoje permite a atualização das pensões ao valor a que estão a ser atualizadas. Portanto foram dados passos muito importantes para recuperar a espinha dorsal do contrato social deste país. Mas se me perguntam se nós fomos capazes de ir à estrutura dos serviços sociais, da saúde, da habitação - não fomos.

É um falhanço.
Não é. O que eu posso dizer é que o acordo que foi feito em 2015 cumpriu os seus objetivos. E o balanço que fazemos dele é um balanço positivo.

Mas qualquer reedição tem que ter uma agenda positiva. Ou seja, não pode ser... repetir uma agenda de revogações de coisas que estavam mal feitas, no entender dos parceiros desse entendimento. Qualquer entendimento futuro, pergunto, tem que ter uma agenda mais construtiva que não seja exclusivamente virada para retificar coisas do passado.
Vamos ver. Sobre o acordo de 2015, o balanço que fazemos é positivo. E acho que o balanço que a maioria das pessoas faz é positivo.

Agora falemos de 2023.
Deixem-me só terminar e espero que fique claro. [A 'geringonça'] foi incapaz de ir a questões estruturais. Aliás, a incapacidade do governo de dar resposta a questões estruturais, que vão da habitação à saúde, foi precisamente o que acabou por nos fazer votar contra o orçamento perante a incapacidade do governo de dar resposta ao SNS. Sobre o futuro. O que eu posso dizer é que antes do futuro há um presente. E esse presente é uma maioria absoluta que deixou o país numa crise social. E este é o tempo de acertar as contas com essa maioria absoluta. Este é o tempo de cada partido dizer o que é que aconteceu durante este período, e que programa é que traz ao país para sarar as feridas dessa maioria absoluta. E é sobre isso que nos devemos estar a concentrar. Quem dá um salto para o futuro sem falar no presente e sem dizer agora como é que resolve o problema da habitação e o problema dos hospitais que estão fechados, e das escolas que não têm professores, e das pessoas que trabalham com 1200 euros por mês. Porque muitas vezes fala-se, a direita encontrou este mantra que é descemos os impostos e resolvemos todos os problemas. O problema é que é possível descer os impostos. As pessoas podem até nem pagar IRS. Mas 1200 euros por mês continuam a ser 1200 euros por mês. E uma renda de 800 continua a ser uma renda de 800. E um salário de 1200 continua a não pagar uma renda de 800. Porque é preciso pagar a luz e o aquecimento e a água. E as pessoas têm direito a lazer e têm direito à cultura. E, portanto, estes são os problemas estruturais do país para os quais cada partido tem de dar resposta. E quem quer saltar para a frente sem responder a estes problemas não está a fazer bem nenhum ao país.

Olhando para o presente, as visões do Bloco e do PCP são muito parecidas. Descartem em absoluto a hipótese de um dia o Bloco alinhar numa frente eleitoral comum com o PCP? Ou isto, para si, é um absurdo completo?
Nós e o PCP temos posições que nos afastam e que são conhecidas. Temos posições internacionais que nos afastam, como, por exemplo, a Ucrânia. E temos posições que nos afastam sobre a liberdade individual, o caso da eutanásia, por exemplo, e que refletem diferentes visões do mundo. Também temos posições que nos aproximam. O Estado Social, as questões laborais têm-nos aproximado. Aliás, na maior parte das matérias na Assembleia da República que versam sobre o Estado Social, sobre os direitos laborais, temos estado juntos. Portanto, nós não temos precisado de frentes para divergir quando temos de divergir e para nos aproximarmos quando temos de nos aproximar.

E se for preciso?
O problema é que não temos precisado. Essa questão não se coloca porque a verdade é que o PCP e o Bloco estão lado a lado, em muitos momentos, não só na vida na Assembleia da República, como na vida social, nos encontros que temos, nas movimentações sociais, onde o PCP também está presente, e fazemos esse trabalho com solidariedade. E, portanto, essa questão acho que não se coloca.

Fecha completamente a porta, ou um dia, quem sabe, talvez...
Não se trata de fechar nem abrir portas. Trata-se de compreender que temos posições que são mais próximas e posições que são mais distantes. De compreender aceitar que caminhamos lado a lado em muitos momentos e que, na prática, votamos em consonância e lutamos pelas mesmas coisas muitas vezes no Parlamento. E esse... E esse trabalho, essa solidariedade, temos tido com o PCP, da mesma forma que temos distanciamento e divergência em outros pontos. Acho que essa tem sido a realidade da relação entre estes dois partidos.

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