Foi nos três hangares de manutenção e engenharia da TAP que Luís Rodrigues meteu as fichas no último ano. De mãos atadas devido aos constrangimentos do aeroporto de Lisboa que estrangulam a capacidade de crescimento da companhia e com a frota limitada a 99 aviões por via do plano de reestruturação de Bruxelas em vigor até ao final de 2025, a reparação de aeronaves a clientes da Europa e dos Estados Unidos apresentou-se como estratégia nevrálgica para impulsionar a tesouraria. No final de 2024, as receitas da área da manutenção brilharam, destacando-se no conjunto dos indicadores que compõem o pacote dos rendimentos operacionais da empresa pública: a subida recorde de 45% valeu à TAP 236,8 milhões de euros. Os ventos mudaram com a virada de ano e até junho a atividade de reparação de componentes e de aeronaves sofreu um tombo de 12,5 milhões de euros, para 104 milhões de euros, o que se traduziu um recuo homólogo de 10,7% , representando uma inversão no ciclo de ascensão ocorrido em 2024. Este foi um dos fatores que também pesou nos prejuízos de 70,7 milhões de euros divulgados na semana passada. São vários os motivos que justificam o refrear desta área de negócio e para os trabalhadores é clara, em primeiro lugar, uma mudança de postura por parte da administração. “Em 2024 foi-nos transmitido que a manutenção era um dos motores de crescimento no contexto das limitações do plano de reestruturação e essa intenção traduziu-se num aumento de serviços a terceiros. Hoje, infelizmente, essa visão parece menos clara e é como se a prioridade tivesse voltado a ser apenas a operação de passageiros”, diz ao DN o presidente do Sindicato dos Técnicos de Manutenção de Aeronaves (Sitema), Jorge Alves. O representante desta classe profissional ressalva que, apesar de compreender que a operação de passageiros seja o core da companhia e que a prioridade passe por “manter os aviões da TAP a voar com fiabilidade” é fulcral manter a visão estratégica na manutenção, à semelhança do que ocorreu nos dois últimos anos. “O risco desta mudança de foco é que se comprometa a consolidação de uma área com potencial de gerar receita estável, com menor exposição à sazonalidade e menos dependente das variações do mercado de transporte aéreo”, aponta.No relatório de contas, a companhia justifica a quebra do desempenho com os “constrangimentos contínuos na cadeia de fornecimento” e com “a menor disponibilidade para serviços externos devido ao aumento de trabalhos para a própria empresa”. O porta-voz dos técnicos de manutenção de aeronaves (TMA) explica que o volume e a complexidade da operação interna este ano é maior, uma vez que a transportadora está a operar mais aviões, a realizar um maior número de voos e de rotas simultâneas, nomeadamente de longo curso, o que impacta a carga de trabalho da manutenção. “Além disso, os constrangimentos logísticos e operacionais, como atrasos, escalas curtas e alta rotatividade de aeronaves exigem uma resposta mais rápida e mais intensiva por parte das equipas técnicas. Isso reduziu a margem de manobra para manter o mesmo nível de serviço a terceiros, sem comprometer a segurança e a fiabilidade da frota TAP”, indica. O facto de a TAP ter de priorizar a manutenção dos seus aviões, e sem recursos humanos suficientes para dar resposta às solicitações, resultou na recusa de trabalhos a clientes externos, diminuindo as receitas destas vendas. “A procura continua a existir, a oficina da TAP tem bom nome, especialmente junto de operadores europeus e americanos, mas o problema é a falta de capacidade interna disponível. Há menos espaço de manobra técnica e humana. A oficina de motores tem capacidade, mas precisa de reforço logístico, humano e de mais espaço físico para responder a um volume de trabalho cada vez mais exigente, interno e externo. A TAP está a operar com instalações ao limite da capacidade, o que impede o crescimento estrutural da manutenção. Sem isso, não é possível manter os níveis de 2024.”, garante o sindicalista. .Falta de mão-de-obra coloca “pressão silenciosa” nos trabalhadores.Para Jorge Alves, a falta de mão-de-obra qualificada configura-se num dos principais constrangimentos. O quadro atual de pessoal, que conta com cerca de 850 TMA, não é suficiente para responder às exigências do negócio. “Há uma pressão silenciosa sobre os TMA, que são chamados a dar resposta a tudo, muitas vezes com equipas reduzidas e sob forte carga. Terá de ser melhorado o planeamento na utilização da capacidade técnica. É importante relembrar que a fiabilidade operacional da TAP assenta diretamente na estabilidade da manutenção”, alerta. Os desafios na retenção desta categoria de profissionais não são novos. A procura internacional por estes especialistas tem sido pujante e as condições de mercado fora de portas mais aliciantes empurram muitos trabalhadores para fora de Portugal. O presidente do Sitema defende, por isso, que é imperativo que sejam criados métodos de atração e defende a necessidade de uma reestruturação do modelo da TAP que deverá passar pelo investimento “numa formação moderna, integrada e orientada para o futuro”.Sobre a posição da TAP face aos problemas iminentes, Jorge Alves admite que existe uma “consciência das limitações”, mas lamenta que a resposta não tenha acompanhado ainda “a urgência da situação”, nem ao nível de recursos humanos nem de espaço e logística. “É essencial que a empresa encare estas questões não como custo, mas como investimento para crescimento sustentável, sobretudo se quiser manter ambições no mercado de serviços a terceiros”, frisa. O técnico afiança ser ainda fundamental apostar na visibilidade internacional das oficinas de motores e componentes de forma a reforçar a relevância estratégica da companhia de bandeira.Além da falta de capacidade humana e logística há ainda outro fator a beliscar o normal funcionamento da área da engenharia e manutenção. Os constrangimentos na cadeia de fornecimento, nomeadamente referentes à escassez de peças, componentes e consumíveis aeronáuticos, continuam a afetar a indústria da aviação. O quadro que se espraia desde a pandemia foi agravado pelos conflitos geopolíticos e pela elevada procura no setor da aviação no período pós-covid. “As previsões mais recentes indicam que esta pressão poderá começar a aliviar gradualmente em 2026, mas nada está garantido. A escassez continua a afetar a indústria globalmente e, enquanto isso, a TAP precisa de encontrar formas de mitigar o impacto com melhor planeamento logístico, maior autonomia na reparação interna e estratégias de stock mais robustas”, sugere Jorge Alves..Contas no vermelho não preocupam.Os resultados líquidos negativos do primeiro semestre, que representam um agravamento de 45,9 milhões de euros em comparação com 2024, não se apresentam como motivo de preocupação para os trabalhadores da TAP, que consideram que a operação está boa e recomenda-se. “Tem sido um verão feito sem espinhas e 95% dos voos que integrei estavam completamente lotados. Nunca vi tantos voos em que andamos ali a tentar encaixar passageiros até à última instância”, explica João Lira da direção do Sindicato dos Pilotos e da Aviação Civil (SPAC).O representante dos pilotos destaca “o segundo semestre extremamente positivo” e garante que o negócio do transporte aéreo “não é nem nunca foi o problema da TAP, mas sim as más decisões de gestão que vêm do passado” e que, acredita, podem justificar os números no vermelho.Do lado dos tripulantes a posição é similar, com estes profissionais a destacarem o crescimento da companhia. “É preciso valorizar este crescimento e perceber que apesar de todas as condicionantes do aeroporto de Lisboa e do Porto não houve grandes irregularidades na operação e muitas vezes há a tendência a desvalorizar isto”, observa o presidente do Sindicato Nacional do Pessoal de Voo da Aviação Civil (SNPVAC).Ricardo Penarroias elogia ainda o clima de paz social este verão, fruto dos acordos de empresa (AE) que entraram em vigor no ano passado. “Permitiram menos zonas cinzentas e menos clivagens com a empresa e um ano a decorrer com tranquilidade”, relata..Trabalhadores temem que privatização esmague condições laborais .A tesouraria da empresa não é uma dor de cabeça para os representantes dos trabalhadores da TAP, mas o cenário muda quando o tema é a venda da companhia de bandeira. O processo de privatização, que arrancou em julho depois da aprovação do diploma pelo Governo, constitui motivo de apreensão em uníssono pelos trabalhadores que temem perder direitos e se queixam da falta de transparência. “É uma verdade básica: a entrada de um novo dono obriga a uma tentativa de esmagamento de condições de trabalhadores. Isto não irá acontecer, só mesmo à força, e à força não é bom, diz-nos a história”, avisa o representante dos pilotos, João Lira. As restantes estruturas sindicais lamentam não estarem a ser parte integrante do processo. “Há uma enorme preocupação entre os trabalhadores, especialmente pelo modo como o processo está a ser conduzido pelo Governo. O Sitema solicitou formalmente reuniões para ser informado sobre o processo, mas até agora não obtivemos qualquer resposta. As únicas informações de que dispomos são as que vão sendo divulgadas na comunicação social, o que consideramos absolutamente inaceitável, tendo em conta o impacto que uma privatização pode ter sobre centenas de técnicos e sobre uma área tão crítica como a manutenção. O histórico das privatizações em Portugal, particularmente no setor dos transportes, levanta sérias reservas”, partilha Jorge Alves. O líder do SNPVAC corrobora. “Não fomos ouvidos, não houve uma consulta dos trabalhadores que são, na realidade, aqueles que depois, no futuro, irão sofrer o impacto direto das medidas que forem agora tomadas. As consequências de um processo mal feito, por norma, prejudicam sempre os trabalhadores, eles é que pagam a fatura no final do dia”, lamenta. Ricardo Penarroias critica ainda o atraso na divulgação do caderno de encargos, prevista inicialmente para o final do mês de julho. “Ninguém sabe os motivos deste atraso e esta omissão toda preocupa-me. Não posso passar um cheque em branco de algo que não conheço”, acrescenta. O dirigente sindical aponta ainda o dedo à nomeação do novo chairman, Carlos Oliveira, e levanta o cartão vermelho ao ex-secretário de Estado de Passos Coelho. “Confesso que tenho muitas dificuldades em perceber porque é que ele veio para cá quando o seu conhecimento na aviação é limitado, ele não está ligado a esta indústria”, justifica. Ricardo Penarroias deixa ainda elogios ao atual CEO, que perdeu, desta forma, o cargo de presidente do conselho de administração da empresa. “Pode não se gostar do estilo, da maneira de estar, mas há uma coisa que é verdade: ninguém duvida das suas competências, do cargo. Os resultados estão à vista e a paz social é uma realidade, algo que não aconteceu durante anos”, conclui..TAP lucra 37,5 milhões de euros no 2.º trimestre mas não evita prejuízos de 70,7 milhões de euros até junho .Governo quer manter ativos imobiliários da TAP "na esfera pública"