Ricardo Salgado, nascido em Cascais, em junho de 1944 (tem 80 anos), é descendente de uma linhagem de financeiros que começou no seu bisavô, o patriarca José Maria do Espírito Santo Silva, um cambista rico e bem sucedido de Lisboa, no final do século XIX, filho de pais incógnitos, em bebé entregue à Igreja e aí crismado com o natural apelido Espírito Santo. A história foi confirmada há uns anos, em entrevista ao Jornal de Negócios, pelo primo direito, entretanto desavindo, José Maria Ricciardi..De nome completo, Ricardo Espírito Santo Silva Salgado, foi um dos homens mais poderosos e ricos de Portugal. Era chamado, com fascínio e algum temor, "dono disto tudo", uma alusão direta a DDT, veneno, o primeiro pesticida moderno..Hoje, é mais o devedor disto tudo. O universo BES/GES implodiu em 2014, os contribuintes foram chamados a segurar o banco (um dos maiores de Portugal e "demasiado grande para falir"), com uma fatura de encargos públicos já vai em 8,3 mil milhões de euros, segundo os cálculos mais recentes do Tribunal de Contas..É assinalável. A dívida e os prejuízos herdados do colapso do universo Espírito Santo representam 40% dos prejuízos para o erário público com operações de salvamento e apoio a todo o setor bancário, na sequência da crise financeira de 2007/2008, incluindo outros casos de polícia e judiciais, como os famigerados BPN e Banif..No processo que agora começa a ser julgado, o Ministério Público fala em muito mais, em quase 12 mil milhões de euros em "vantagens" obtidas através de "crimes", entre eles, corrupção. Mais de 60 no caso do banqueiro, segundo a acusação..Circulando entre as elites e famílias mais ricas da capital, depois de Cascais, Salgado viveu muitos anos em Lisboa, no então distinto bairro da Lapa..A sua educação esteve sempre a "walking distance" de casa. Primeiro, no Liceu Pedro Nunes, depois no Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras (atualmente, ISEG), onde tirou a licenciatura em Economia, tinha 25 anos, estávamos em 1969..Teve uma breve formação militar, sendo colocado na reserva da Marinha, o que lhe permitiu atalhar caminho para o início da sua longa, bem, mas também mal sucedida carreira profissional, como provam os anos derradeiros que culminaram no fim estrondoso do universo BES/GES..Foi com 28 anos que começou a ascensão. Entrou diretamente nos quadros do banco da família, o Banco Espírito Santo & Comercial de Lisboa (BESCL), para um lugar de destaque. Começou como economista-chefe e em poucos anos passou a chefiar a poderosa direção de crédito, o departamento onde se fazia o dinheiro. Estávamos no início dos anos 70 do século passado, antes do 25 de abril de 1974..A fuga antes de retomar o poder.A ascensão de Salgado dentro da instituição financeira seria interrompida em 1975, quando o banco foi nacionalizado..Com 30 anos, refugiado no Brasil, iniciou a reconstrução dos negócios dos Espírito Santo (o grupo, o chamado GES)..Acumulou fortuna e foi na Suíça que organizou a plataforma de regresso e tomada do poder em Portugal. Esperou pela C.E.E., pelas privatizações em 1991, que lhe permitiram reaver o seu valioso BES..Ainda não tinha 50 anos quando Salgado começou o reinado, como dono e senhor mais respeitado da banca nacional, setor que, com sabedoria reconhecida, modernizou de tal forma que facilmente ultrapassou os concorrentes em prestígio e reputação..Esteve presente nos momentos chave da economia portuguesa. Internacionalizou o BES (África, Brasil, Espanha, Suíça), participou nas reprivatizações dos gigantes nacionais, como Galp, EDP, foi o engenheiro financeiro de grandes obras públicas em Portugal, esteve na liderança no período de explosão económica que durou cerca de década e meia. Do início dos anos 90 até meados dos anos 2000..No fim da era das chamadas "vacas gordas", foi o homem que, sem disfarces, entrou no edifício do Conselho de Ministros, em outubro de 2012, numa altura crítica e caótica, quando o Governo PSD-CDS aprovou o maior pacote de austeridade da História recente do país. O ano do “enorme aumento de impostos”..O início do fim.A partir de 2008, o mundo de Salgado e da alta finança internacional haveria de desabar com estrondo. Em setembro desse ano, falia o Lehman Brothers, um dos maiores bancos do mundo, arrastando consigo bancos, seguradoras, fundos de investimento. E a certeza que de repente acabou: já não era possível continuar a ganhar e fazer negócios de valor astronómico sem assegurar garantias de rendibilidade e bases reais de capital..Salgado também terá efabulado bastante, dando a ganhar e muito a perder. Prometeu mundos e fundos, segundo as várias acusações; os que o acusam, dizem que desviou milhões em proveito próprio, extraiu valor à própria família e a milhares de aforradores de uma vida (os cerca de 2000 lesados) que confiaram ao BES poupanças que afinal não eram depósitos a prazo garantidos, mas produtos de alto risco. Perderam quase tudo..Ricardo Salgado pode ter sido até "O Último Banqueiro" na pura aceção da palavra, como titula o livro das jornalistas Maria João Babo e Maria João Gago, publicado no ano da derrocada (2014)..Salgado tem hoje uma saúde débil, uma doença neurológica incapacitante. Mas, sem a infeliz fatalidade, nada indicia que viesse a alterar o que sempre afirmou, com absoluta certeza e tenacidade, sobre o colapso do seu império: que nunca roubou ninguém, que a culpa foi do Banco de Portugal e do Banco Central Europeu, que decidiram persegui-lo e tirar-lhe os recursos normais para o BES operar..Tiram-lhe, num ápice, o tapete. Foi no verão de 2014. E o BES faliu de vez, foi “resolvido”, criando-se para o efeito, o Novo Banco..Nesse ano de "resolução", o governo vendeu ao fundo Lone Star o melhor que sobrou do BES destroçado que, muitas centenas de milhões de euros em apoios públicos depois, continua acionista de referência; estamos em 2024..Na prática, a resolução foi uma nacionalização sob o manto de um jargão europeu novo e mais suave, uma intervenção que gerou perdas pouco suaves e certamente monumentais, que continuam por saldar; atualmente, uma fatia da dívida pública "demasiado elevada" às expensas de gerações de contribuintes atuais e futuros, em nome da "estabilidade financeira"..O banco e o longo alcance do "último banqueiro" eram "too big to fail". E assim foi. Hoje, é verdade, há estabilidade financeira, mas falta saber o preço final do resgate do universo Espírito Santo.