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Desporto
18 fevereiro 2021 às 00h25

"No avião celebrámos com champanhe. Ainda hoje revejo o jogo com o Arsenal"

A viver no Brasil, o antigo avançado do Benfica recordou a noite mágica de Highbury na única eliminatória em que os dois históricos se defrontaram a nível oficial. Ainda assim, o "profeta", como era conhecido, nem considera esse o seu melhor jogo pelos encarnados, embora de vez em quando o reveja com amigos

Quis o destino que no ano em que se comemoram os 30 anos da histórica vitória do Benfica em Highbury os encarnados voltem a encontrar o Arsenal nas competições europeias. Em 1991, o confronto, naquela que foi a última edição da prova como Taça dos Campeões Europeus, valia a passagem à fase de grupos, que se disputava pela primeira vez na história. Depois de afastar os malteses do Hamrun Spartans, com um agregado de 10-0, a equipa orientada por Sven-Göran Eriksson calhou com os campeões ingleses que voltavam a disputar o prémio mais apetecido a nível de clubes depois dos cinco anos de castigo devido à tragédia de Heysel (cumprido na época anterior mas, uma vez que o Liverpool foi punido com seis épocas, Inglaterra não teve representante na Taça dos Campeões 90/91). Depois de uma igualdade a um golo na Luz, a vitória na gélida noite londrina de 6 de novembro teve contornos épicos, com o Benfica a vencer no prolongamento por 3-1, muito graças a uma exibição de grande caráter coletivo e à inspiração do "profeta" Isaías, autor de dois golos no mítico recinto dos gunners, entretanto demolido. Em dia de carnaval, o avançado brasileiro, em plena pescaria - "Estou no mar e está muito vento" -, aceitou recordar esses momentos e a sua carreira ao DN.

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Olá, Isaías. Já deve calcular que lhe estão a ligar para falar do Arsenal-Benfica de há 30 anos. Ainda se recorda dessa noite?

Sim, ainda me recordo bem. Ainda por cima, hoje há a internet e tem o vídeo no YouTube...

Na primeira mão, marcou o golo que deu vantagem ao Benfica. Como é que foi?

O golo de Lisboa foi depois de um passe do Schwarz para o meio, eu entrei e marquei de pé esquerdo, bati forte para o lado direito do Seaman, o guarda-redes.

Depois do empate da primeira mão, com que estado de espírito é que encararam a segunda mão em Londres? Convencidos que iam dar a volta à eliminatória?

Nós, os jogadores, acreditávamos que íamos conseguir. Mesmo que só tivéssemos 10% de hipóteses tínhamos de os transformar em 100 por cento, até porque nessa altura o Benfica atravessava um período difícil e esse jogo podia dar um empurrão para sairmos da crise. Tínhamos consciência de que para nós também era muito importante passar a eliminatória, havia jogadores jovens, no início de carreira, que podiam ter um futuro melhor, e a fase de grupos seria uma montra. E aconteceu. Entrámos em campo, sofremos a primeira parte quase toda, mas depois do golo do empate conseguimos levar o jogo para prolongamento, onde eles já estavam um pouco desgastados. Gastaram a energia toda no decorrer dos 90 minutos... E selámos a classificação para a fase de grupos aí, depois de eu e o Kulkov marcarmos.

Recorde então como é que fez o empate em Londres, com um tiro de pé esquerdo...

Sempre de pé esquerdo [risos]. O Neno rolou a bola para o Paulo Madeira, este passou ao Veloso que mandou a bola lá para cima, o Iuran ganhou de cabeça e eu entrei e chutei...

Nem pensou duas vezes, foi logo de primeira...

Nem tinha outra hipótese, os dois centrais vinham a fechar, a fazer um carrinho! Tentei o chute e foi golo.

Depois, no prolongamento, também começa o lance do 1-2.

Exatamente. Eu faço a jogada, passei ao Iuran que se tinha desmarcado, mas ele acabou por se atrapalhar e perder o posicionamento. Mas o Kulkov estava chegando e com a categoria que tinha foi fácil para ele marcar.

Já o terceiro foi um lance de inspiração individual, que até meteu um túnel ao defesa inglês...

É, esse foi de criatividade, de tentar a jogada. Deu certo e o mais fácil foi colocar a bola dentro da rede. Depois foi uma festa grande no balneário. Estávamos a jogar em Londres mas uns 20 por cento dos adeptos presentes eram benfiquistas. E, claro, no avião tivemos oportunidade de tomar um champanhe para celebrar.

No fim trocou de camisola com um jogador do Arsenal. Ainda se lembra com quem?

Foi a do lateral, do Lee Dixon. Ele é que me implorou para trocar e ainda hoje tenho a camisola dele guardada em casa.

Considera que esse foi o seu melhor jogo pelo Benfica?

Não, o melhor não. Essa foi uma eliminatória em que fiz três golos, o Benfica atingiu um objetivo que era quase impossível, foi uma coisa inédita, porque nunca tinha vencido em Inglaterra. Por isso, criou-se essa ideia à volta desse jogo. Ainda há o jogo de Leverkusen, jogos contra o Sporting... Mas acho que o melhor foi um frente ao FC Porto, nos oitavos de final da Taça de Portugal. Tinha vindo ao Brasil na semana anterior para resolver umas coisas, depois voltei e estava toda a gente preocupada se eu ia render ou não, Fui titular, fiz um golo e depois com um penálti resolvemos o jogo. Para nós, aí foi praticamente a final, porque depois na decisão vencemos o Boavista sem muito trabalho [5-2].

Costuma rever este jogo com o Arsenal?

De vez em quando [risos]. Às vezes aparecem aí uns amigos e vamos ver o jogo. Dá para matar umas saudades.

E para esta eliminatória, o que é que o Isaías espera? O Benfica não tem estado muito bem mas o Arsenal também não...

É verdade, mas o Arsenal já regressou às vitórias no último fim de semana e o Benfica não, por isso parte em vantagem. Mas vai ser difícil para os dois, ainda para mais sendo as duas partidas em campo neutro. Aquele que errar menos tem grandes possibilidades de ganhar o jogo. É imprevisível e o Arsenal é favorito mas o Benfica vai criar inúmeras dificuldades, até porque acredito que os jogadores vão abraçar a causa.

Foi um dos apoiantes da candidatura de João Noronha Lopes contra a atual direção. Acha que o tempo está a demonstrar que tinha razão em tomar essa opção?

Desde o momento em que apanhei o avião aqui no Brasil e viajei sete mil e setecentos quilómetros para ir apoiar o João que tinha essa convicção, que era o homem para acabar com esses quatro anos de derrotas e desgraças no Benfica. Infelizmente, a maioria dos sócios achou melhor apostar na continuidade e acredito que hoje boa parte esteja arrependido de não ter votado no João. Mas não há problema, ele continua a ser um benfiquista ferrenho, como eu sou e muitos serão, e certamente num futuro próximo terá a oportunidade de dirigir este clube. Tem de haver sangue novo e penso que o João seria a pessoa ideal. Mas 30% já foi muito bom, agora é preciso continuar a trabalhar, criticando quando há que criticar e aplaudindo quando é para aplaudir. Continuo a torcer para que o Benfica tenha bons resultados e espero que nas próximas eleições as pessoas apoiem alguém que faça o clube voltar ao patamar onde merece estar.

Voltando atrás na sua carreira, como é que surgiu a oportunidade de jogar no futebol português? Veio para o Rio Ave em 1987...

A oportunidade surgiu através de um sportinguista, morador aqui em Cabo Frio, José Vitorino Branco, português e transmontano, que me viu jogar na Cabofriense. Ele tinha negócios no futebol aí em Portugal e perguntou-me se eu não estava interessado em ir para aí. E eu disse que sim.

Na altura já era famoso pelo seu pontapé-canhão?

Sim, de certeza. Não era muito famoso, porque jogava numa equipa pequena [risos] mas já funcionava bem. Lembro-me de um jogo aqui, em 1987, em que fui o melhor em campo frente ao Flamengo...

Veio então para o Rio Ave mas a época não correu muito bem, com uma descida de divisão.

Para mim, não foi ruim, não! Chegar no Rio Ave, onde nem o treinador que era brasileiro [Mário Juliatto] me conhecia, não sabia quem eu era, onde havia uma confusão danada, mudança de treinador, muito brasileiro... Havia sempre uma desconfiança. Mas eu sempre fiz o meu trabalho, tenho a minha história. Eu dedicava-me, em cada jogo tinha de dar o litro para poder fazer a diferença. E foi assim. Teve um jogo com o Sp. Braga onde fiz um golo muito bonito, outro contra o Chaves do Raul Águas... E depois o Peres Bandeira, que era olheiro do Benfica, disse-me "Isaías, eu falei com o Benfica mas ainda é cedo". E aí surgiu o Boavista, que jogava quase sempre ao sábado, ia sempre ver os nossos jogos, através do Major [Valentim Loureiro] e do treinador, que era o Pepe. Assim começou a desenhar-se a minha ida para o Bessa.

Foi então para o Boavista.

Verdade, estive lá dois anos. Fizemos um excelente campeonato, já marquei muitos golos. Era um clube com uma estrutura melhor, que nos dava condições para fazer um bom trabalho. Tanto é que, a partir daí, o Boavista começou a ser o clube que mais jogadores mandou para o Benfica. Fui eu, o João Pinto, o Nelo, o Tavares, e, claro, o Nuno Gomes... Consegui abrir o caminho para todos esses jogadores, o que foi ótimo, até porque quase todos eles se evidenciaram. Não vou dizer que o Nelo e o Tavares conseguiram, até porque tinha um treinador maluco lá...

Vai então para o Benfica, onde vence dois campeonatos e uma Taça de Portugal. Quais são as melhores recordações que tem?

Chegar ao Benfica da forma como eu cheguei já é uma grande honra, não há muitos argumentos para acrescentar. Foi o melhor sinal de que eu era um bom profissional ou nunca o teria alcançado. Todos os momentos que passei lá foram contagiantes e não nos podemos lembrar só dos bons. Os ruins também fazem parte, tem de sofrer para se conseguir ter a alegria de conquistar. Para conseguir os objetivos, tudo na vida tem de ter sofrimento. Estamos aí a recordar os momentos bons, como esse jogo de Londres, e a verdade é que houve mais lados positivos que negativos.

Custou-lhe muito ter saído do Benfica naquela altura?

Sim, custou e muito. Mas não fui que saí, fui empurrado para fora. Aquele maluco que estava lá é que detonou o Benfica, com o apoio de mais um ou outro...

Está a falar de Artur Jorge?

Não vou nem falar o nome, vocês sabem quem ele é. Deu cabo daquela equipa, a espinha-dorsal foi toda embora... Falei para a direção: "vocês vão sofrer uma deceção e daqui a uns meses terão de mandá-lo embora, porque se não a casa vai cair". Mas não guardo mágoa de ninguém. Sinto-me honrado por ter tido a oportunidade de mostrar o meu trabalho, de representar este clube e a história que construí, sem ninguém me a ter dado, foi só com o fruto do meu trabalho. Isso ninguém me tira.

Ainda assim, essa saída deu-lhe a oportunidade de jogar na Premier League, pelo Coventry. Mas não lhe correu muito bem, não é?

É, não correu muito bem pelo facto de ter deixado uma equipa que jogava para ser campeã, que lutava pela Liga dos Campeões, para ir para uma que jogava para não descer de divisão. E o futebol inglês naquela altura era aquele futebol bruto, pega na baliza e joga na frente. E quem jogava no meio-campo ficava perdido. No primeiro ano até joguei, mas no segundo foi só problemas e eu deixei passar o tempo do contrato até voltar a Portugal para representar o Campomaiorense.

Onde passou mais dois anos.

Sim, dois anos maravilhosos, conseguimos levar o clube à final de uma Taça. Quando cheguei já havia três jornadas, o Campomaiorense estava em último e conseguimos ficar em 11º lugar, no segundo ano terminámos no 13º. Eu era um jogador diferente, tinha 36 anos e carregava aquela turma às costas [risos]. Se falar com o preparador físico da equipa, ele vai dizer quem é que estava sempre na frente! Tinha de dar o exemplo. Depois ainda vim jogar para a minha terra, mas aí já não era para fazer a diferença...

Foi só para matar o bichinho...

É, mas agora estou é matando o peixinho, para pôr na brasa daqui a bocado [risos]. Estou com um amigo aqui num barco, à pesca. É altura de aproveitar a vida, também mereço um descanso! Se pudesse estaria a voar para Itália para dar uma força à equipa mas o presidente não me mandou a passagem [risos]. Assim, tenho de me dedicar à pesca...

Ainda está a pensar em regressar ao futebol noutra função?

Para já, não vou dizer nada, o futuro o dirá. Certamente vão acontecer coisas boas ao nível do futebol lá mais para a frente.

O Isaías tem dois filhos que jogam ou jogaram futebol. Algum deles sai ao pai?

O Isaías Júnior já não joga, tem 29 anos e é professor de Educação Física. O Lucas é que está jogando aqui no Cabofriense. Tem qualidades mas ainda tem muito que trabalhar. O mais importante é que gosta, e como está com 24 anos tem mais três para mostrar o que vale.

Para finalizar, quer deixar uma mensagem aos adeptos do Benfica?

Que continuem acreditando. O Benfica é e vai ser sempre o grande Benfica, independentemente dos resultados e de quem está à frente do clube. Nós passamos e a entidade fica e essa é muito grande.