"Chegou o momento em que não pode ser o futebol primeiro e a família que se adapte"

Versão completa da entrevista a Carlos Queiroz, na qual o atual selecionador do Irão admite ser simpatizante do Benfica e garante não perder tempo a pensar num reencontro com Cristiano Ronaldo
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Depois da forma convulsa como saiu, pela segunda vez, da seleção portuguesa, após o Mundial 2010, Carlos Queiroz encontrou no Irão a sua "nova casa", onde garante ser "feliz" há sete anos, apesar de, volta e meia, surgirem ecos de que ameaça demitir-se. Em junho qualificou a seleção iraniana para o Mundial 2018. Foi o segundo apuramento consecutivo com a seleção persa - e o quarto no total da carreira do professor que revolucionou o futebol português nas décadas de 1980 e 1990. O treinador falou com o DN no Jamor - onde em 1995 ganhou uma Taça de Portugal pelo Sporting -, numa entrevista que revisita não só a extensa carreira de um homem que já treinou o Real Madrid e foi adjunto do Manchester United, mas também a experiência de vida desde Nampula.

Gostava de começar esta entrevista pela sua estadia no Irão. Está há sete anos no mesmo país. Não é muito tempo afastado da esfera mediática?
Depende da perspetiva, porque eu vivo no país. Só em Teerão há 17 jornais que tratam o desporto. Portanto o impacto mediático da minha presença no Irão é enorme, só que temos diferentes quadrantes. Eu por exemplo quando estive nos Estados Unidos a trabalhar, naturalmente que o impacto mediático tinha mais a ver com o futebol local. Ia para o México, Brasil, América do Norte, América Central... e, portanto, ali o meu nome teve uma boa projeção, depois mais tarde beneficiei disso com os convites que tive naquela zona. Depois voltei para a Europa e a minha vida mudou. O impacto mediático na Europa fica mais afastado, mas naquela zona da Ásia, que vai do Japão à Coreia, também são milhões de pessoas e como eu estou ao serviço de uma seleção que joga com o Japão ou com a Coreia, a projeção mediática continua a ser positiva, boa, porque felizmente os resultados desportivos também ajudaram bastante.

É feliz em Teerão? Ouvi dizer que recebe flores em casa.
Sim, é curioso porque o Irão tem muitas zonas desérticas, mas é o país das flores. Os iranianos não têm genericamente muitos conhecimentos de inglês. As palavras "gosto de ti" ou "tenho apreço por ti" eles traduzem-na na forma simples que conhecem que é "I love". Ora, "I love" tem um outro sentido que não é só o sentido afetivo. É frequente no Irão os homens, mesmo entre eles, oferecerem flores. As pessoas oferecem muitas flores umas às outras. Ninguém vai a casa dos outros sem ter flores, há flores por todo o lado à venda... as flores fazem parte do quotidiano.

Também aderiu a isso? Já oferece flores a outras pessoas?
Sim, também. Sempre gostei muito de flores, mas no caso presente multiplicou-se a minha apetência pelas flores, que são muito bonitas. Às vezes estava em locais públicos, e no Irão, como sabe, na forma asiática, eles cumprimentam-se com beijos; então às vezes vinham os homens a dizer "I love you", com as flores e davam-me três beijos e eu ficava um bocadinho... [risos]. Moro num prédio com os meus vizinhos e é frequente chegar depois dos jogos, às três ou quatro da manhã, e encontro o pátio do hotel cheio de flores.

Então pode dizer-se que é uma pessoa feliz a viver em Teerão?
Sim. Eu sou feliz e tenho manifestado sempre isso, em todos os locais de futebol. Nós não temos possibilidade de trabalhar na porta da nossa casa, onde vivemos, porque os campos não são aí. O sítio onde nos dão trabalho e onde confiam e onde cuidam de nós, cuidam da nossa família e confiam em nós para atingir as expectativas ou os resultados, tem que ser a nossa casa, o nosso país, a nossa terra. É uma segunda casa, mas é a nossa casa. Eu, desde o primeiro dia que saí para os Estados Unidos para o meu primeiro passo, tomei sempre uma decisão muito simples: foi fazer de cada espaço e cada local a minha própria casa. No Japão tínhamos rituais normais e tínhamos os dias em que saímos à aventura. Eu ia e entrava em restaurantes onde eles não sabiam uma palavra de inglês e nós não sabíamos uma palavra de japonês e íamos experimentar comida e entrávamos e os japoneses, que são muito tímidos, começavam logo a fazer com as mãos "não, não, isto não é para ti, estás enganado" e nós dizíamos "não, é aqui que queremos ir comer". Vinha o menu, nós olhávamos para o menu e púnhamos o dedo em cima e vinham as coisas mais rocambolescas e tínhamos de ir almoçar ou jantar a casa (risos). Nunca tive uma postura de ficar dependente do pastel de bacalhau.

Nestes sete anos, não acredito que nunca tenha recebido um convite aliciante, ou de clubes, ou de seleções...
Tive grandes e boas oportunidades a nível de seleções. Não só da Ásia, mas também de África... falo de seleções de um patamar competitivo teoricamente superior

Está a falar da Argélia?
Sim, da Argélia, da África do Sul, do Qatar... tive várias seleções que eram muito atraentes e estimulantes para mim. Mas nós no futebol muitas vezes não somos senhores das nossas decisões. Nem sempre quando as oportunidades chegam nós estamos disponíveis ou libertos para tomar essas decisões. Na transição de um Mundial para o outro eu estive liberto para tomar uma decisão e podia ter ido por um novo caminho, mas o Irão falou mais alto.

E de clubes, não teve convites?
Tive, mas foram clubes que logo à partida não mostrei grande interesse. Tive propostas e ainda hoje em dia tenho, para ir para a China, para a Europa, mas não foram países nem situações que me atraíram mais do que esse objetivo que eu tinha de classificar quatro seleções para o Campeonato do Mundo.

Volta e meia há muitas notícias de que se vai demitir ou de que vai colocar o lugar à disposição. É assim tão difícil lidar com a Federação Iraniana ou é o professor que tem um feitio difícil?
Houve de facto dois momentos; no primeiro foi na transição quando acabou o meu contrato do Brasil e eu estava a decidir se ficava ou não no Irão. Sempre coloquei as minhas negociações em futebol num nível muito simples: sempre discuti primeiro as questões técnicas, culturais, equipamentos e só no final as condições financeiras e pessoais e das minhas relações pessoais com os clubes ou as seleções. Nessa altura, depois do Brasil terminar, estava liberto em relação às negociações de contrato e uma das coisas que eu disse é que não era importante para mim discutir a oferta contratual, a minha questão é se vocês são capazes de implementar finalmente as questões estruturais de equipamento que são fundamentais para o Irão dar um passo em frente.

E implementaram?
Já chegámos lá. Foi com base nessas promessas e nesse jogo de declarações de amor, de declarações de intenção, que estava mais disponível para ir para outro projeto, porque com a minha idade e com a posição que tenho neste momento já não estou numa fase da minha vida de ter que estar a discutir o campo. Às vezes, nós treinadores temos um papel importante nessa área. Face às promessas e às garantias que me foram dadas, gerou-se esse pingue-pongue do fica, não fica. Posteriormente à Taça da Ásia na Austrália, aquelas promessas, aquelas condições não se verificavam. Foi nessa circunstância que eu conversei com o presidente e disse que não valia a pena continuar assim. Mas esse momento não foi só meu, foi também do presidente. E ele também ia pôr o lugar à disposição, também se desiludiu e queria ir embora. Essas notícias apareceram também um pouco distorcidas no final, ficando o ónus só nas minhas costas, quando no Irão a questão fundamental até foi com o presidente e não comigo. Agora estamos finalmente a viver uma fase onde as coisas começam a acontecer. O expoente máximo disso já não vai ser no meu tempo nem na preparação para o Mundial da Rússia, mas o mais importante disto é o legado técnico que fica. A par dos resultados e do sucesso que a equipa tem tido, eu agora sinto-me mais confortável que quando eu sair vai haver um Irão a.C. e um Irão d.C.: antes de Carlos e depois de Carlos.

No fundo está a fazer o que fez em Portugal nos anos 80.
E o que fiz no Real Madrid. Quando lá cheguei, o Real já tinha sido campeão europeu muitas vezes, mas não tinha muita coisa. Quando eu lá cheguei em 2002/2003, as pessoas acreditem ou não, o ginásio era dentro do balneário onde os jogadores se vestiam e tomavam banho. Havia uma parte do balneário onde estavam as máquinas de treino e eu dizia ao Emílio Butragueño e ao Jorge Valdano: "Temos que fazer isto, temos que fazer aquilo". E o Emilio dizia uma coisa muito engraçada: "Carlos, tranquilo hombre. Fomos campeões europeus sem nada disso. Temos tempo, primeiro vamos ganhar mais uam Champions". Quando cheguei ao Manchester United em 2001/2002, a equipa técnica do Manchester United era o Alex [Ferguson], era eu, um treinador de guarda-redes, o Tony, que era transversal a todas as equipas. Às vezes estava a treinar com o Tony e ele dizia "vê lá se te despachas que eu tenho de ir para os sub-20!". Tínhamos um elemento que estava só no ginásio, que era o Mick e que só fazia ginásio, nem vinha cá fora. Eu costumo dizer a brincar que eu fui para o Manchester para aprender e eu dizia ao Alex "eu vim para aqui aprender e puseste-me a trabalhar, que eu já há uns anos que não trabalhava". Eu fazia o aquecimento, a preparação física, a recuperação, porque esta era a equipa técnica. Nós, treinadores, temos uma missão a cumprir. Ganhar jogos é a primeira; a segunda é lançar as raízes do futuro e do sucesso, Eu sempre tive esta visão para mim, desde o Sporting. Ganhar jogos é a lei número um. A segunda é que o treinador que vier a seguir tem de encontrar isto melhor do que eu encontrei.

É o único treinador no ativo com quatro qualificações para Mundiais. Tendo em conta a melhoria das condições no Irão, o que vai fazer depois do Rússia 2018?
Vou para a praia! [risos] Vou pescar.

Tem alguma coisa pensada?
Não tenho. Depois da Rússia há uma coisa que tenho de fazer: uma reflexão séria sobre a minha vida. Até hoje, por causa do futebol, eu obriguei a minha família a andar sempre atrás de mim.

Mas ainda assim conheceram muita coisa, não é?
Sim, como todas as moedas, tem uma face boa e uma face menos boa. Agora chegou a hora de eu andar atrás da família. Chegou o momento em que se eu tomar decisões no futebol, não pode ser o futebol primeiro e a família que depois se adapte. Se continuar, terá de ser uma decisão equilibrada, não para cuidar deles, porque eles já se habituaram, mas para cuidar de mim. Se chegar ao pé de uma pessoa e perguntar o que é que põe primeiro, a profissão ou a família, 99 em cada 100 pessoas não tem coragem de dizer outra coisa que não seja a família. O que eu digo da minha experiência de vida é que se você quiser estar 34 anos no topo do futebol, lá em cima de onde eu vim... eu ainda hoje dizia que fiz a minha carreira em Portugal e no mundo sem ter cartões de crédito. Não vim para o futebol com um cartão de crédito ou com uma base social de apoio que me facilitasse alguma coisa. Não joguei no Benfica, não tenho apoio por ser do PS ou do PSD. Vim do Ferroviário de Nampula, que é lá muito longe e ninguém sabe onde fica. Muitas vezes tive resultados, a maior parte das vezes positivos e bons, às vezes tive momentos menos agradáveis. A diferença entre mim e um Toni, um Artur Jorge, é que eles na seleção não deixam de ser do Benfica. Nunca tive nada disso. Eu fui descalço para fonte e algumas vezes o jarro partiu-se.

Mas teve vários amigos, que até foram depor a seu favor, no caso da ADoP, por exemplo. Pinto da Costa, Alex Ferguson...
Isso é outra coisa. Amigos, graças a Deus, foi aquilo que mais conquistei no futebol.. No caso da ADoP veja quantas pessoas em Portugal conseguiriam construir a unanimidade de ter como testemunhas abonatórias no processo Luís Filipe Vieira e Pinto da Costa. Quantas conseguiriam isso? Isso é um troféu que ninguém me pode tirar. Mas é diferente o que estou a dizer. Quando eu falo de uma base social, tem a ver com os media, tem a ver com o impacto dos adeptos, que é um pouco diferente. No futebol isto também conta muito. Não tive isso e teve de ser sempre o meu trabalho, os meus resultados e a verdade que eu fui tentando impor e algumas vezes as verdades que eu calei.

Calou muitas?
Algumas. Algumas que provavelmente não devia ter calado, que me custaram.

Quer contar algumas?
Sobre o doping eu devia ter sido mais aberto e mais concreto.

Devia ter dito que era o Liedson que estava na origem da situação?
Sim, por exemplo. Não é só centrado no tema do Liedson, mas essa questão que se relacionou com o Nani e com a interpretação que a imprensa fez da lesão do Nani. Se calhar devia ter posto os pratos em cima da mesa. Outras coisas internas que às vezes se passam nas contratações, nas decisões, em que às vezes o ónus fica em cima do treinador e comigo ficou... Não estou a dizer que os outros estão certos ou errados. Nunca fui dessa ideia do "eu ganhei, nós empatámos, eles perderam". Essa nunca foi a minha filosofia de vida nem é a minha filosofia de treinador. Sou uma pessoa que acredita convictamente que nós ganhamos, nós empatamos e nós perdemos. Na esmagadora maioria dos casos não estou nada arrependido, acho que fiz o mais certo. Acima da amizade, há o respeito. É uma coisa que não se compra, que não se negoceia; quando nós ganhamos o respeito é uma coisa fantástica, muito mais do que dois ou três títulos de jornais, porque o respeito é sólido, é uma coisa que se eterniza pela sua valia. Às vezes, as outras coisas são mais superficiais: as prendas, os bónus, os títulos, as medalhas vão e vêm com a memória das pessoas.

Foi eleito rei no baile de finalistas do Liceu Gago Coutinho em Nampula. Nessa altura, achava que aos 64 anos já teria vivido em Lisboa, Nova Iorque, Joanesburgo, Lisboa, Madrid, Teerão, Manchester ou Nagoya?
Não. Nunca imaginei que isso fosse possível para quem só queria ter vindo numa determinada altura da sua vida para Portugal para jogar à bola. Naquela altura, não eram os resultados, os prémios, as recompensas que interessavam: era a paixão do jogo.

Como se deu a eleição de rei do baile?
Essa votação não teve muita credibilidade. Coincidentemente, havia mais raparigas do que rapazes e então eu beneficiei de um critério. [risos] É como fazer uma votação para o melhor jogador do mundo e entregar isso só aos jornalistas argentinos. Se isso acontecesse o Cristiano tinha menos chances.

Isso quer dizer que em novo fazia as delícias do sexo oposto?
Não, não. Eram outros argumentos [risos]. Não acho que o título tenha sido bem entregue [risos].

Nessa altura ainda ouvia os relatos do Artur Agostinho às escondidas?
Claro, isso vem desde pequenino. Juntávamo-nos nos cantos, nas ruas, cada um trazia o rádio e ouvíamos o Artur Agostinho, o Amadeu José de Freitas.

Aos 13 anos veio pela primeira vez a Portugal e umas galinhas sofreram bastante. É verdade?
[Risos] Sim, sim, é verdade. Em África, no interior, nós só comíamos carne e em Portugal comia-se mais peixe. Eu tinha que fazer lá uns truques na capoeira da avó para as galinhas ficarem mais apetitosas. Depois fui enganado, porque fui dizer à minha avó que eles estavam mortas e não havia argumento nenhum para não as comer, mas como elas apareceram mortas e eu não lhes podia dizer que tinha sido eu, eles acharam que elas tinham uma doença e enterraram as galinhas. E eu continuei a comer peixe. [risos]

E nunca se descoseu?
Não, nem pensar nisso! [risos] Digamos que foi um acidente intencional.

Segundo as suas palavras, foi um guarda-redes com pouco jeito. Percebeu que ia enveredar pelo treino já depois de ter tentado ser engenheiro civil e controlador aéreo?
Não. Nós estávamos num ambiente em que não existia uma grande noção em Moçambique do treino. Tínhamos uma noção no jogo. Nós jogávamos futebol, quando a época acabava tentávamos jogar o que fosse e daí vem a minha relação horizontal com muitas pessoas do sítio onde eu nasci porque não me limitava ao futebol; jogava basquetebol e muito mais. Queria era jogar. O nosso passatempo era o desporto, não havia televisão, por isso a ideia que nós tínhamos era o jogo, não havia o treino. Eu tinha a ideia de vir para Portugal. Estive cá aos 13 ou 14 anos e o meu pai achou que havia alguma coisa errada: eu comecei com boas notas, mas no segundo período fiquei na média e no terceiro período comecei a ter negativas. Quando comecei só a jogar à bola no campo do Sintrense comecei a perder-me um bocadinho. Aliás, não sei se comecei a perder-me ou a perceber onde estariam as prioridades na vida. Eu não queria ir passar férias. No primeiro período queria ir embora e depois rapidamente adaptei-me a isto e nas férias já não queria ir para Moçambique. Os meus pais mandaram-me um bilhete de ida e volta e eu pensei que ia mas voltava, mas não voltei. Os dois primeiros jogos que vi em Portugal, tal era a minha loucura pelo futebol, foram o Celtic-Inter de Milão no Estádio Nacional [final da Taça dos Campeões Europeus] e um Académica-V. Setúbal, final da Taça de Portugal, um jogo célebre. Nasci numa casa de jogares e treinadores e esses dois jogos foram o vírus que me deixaram embriagado de paixão pelo futebol. É o ano também do rescaldo do Mundial de 1966. Aquele resultado da Seleção do José Augusto, do Simões, do Torres, do Eusébio, marcou a minha geração. Quando o José Augusto trabalhou comigo às vezes dizia-me "epá, está calado. Tu aprendeste a jogar futebol comigo nas caricas da Coca-Cola" [risos]. A nossa Playstation eram as tampas das caricas. Fazíamos jogos com discussões sérias em que os jogadores eram as tampas da Coca-Cola ou da laranjada.

--- "Sou simpatizante do Benfica, mas o único clube pelo qual me comporto como adepto é o Manchester United. Se perdemos digo mal do Mourinho" ---

Já era benfiquista nessa altura?
Era um grande simpatizante do Benfica e fiquei, por essa escola de resultados. No Benfica esteve o Coluna, o Eusébio, depois vem o Shéu, todos de Moçambique, e portanto a minha simpatia era nessa altura o Benfica.

E ainda é?
É, mas ao longo do tempo eu vim para a Seleção nacional, fui treinar o Sporting... reconheço que ainda é o clube da minha primeira simpatia, mas foi uma coisa que profissionalmente e pessoalmente se esbateu, porque o único clube onde eu tive discussões e pelo qual quase andei à pancada era o Ferroviário. E os nossos rivais em Moçambique eram o Sporting e o Benfica. A minha simpatia pelo Benfica de Portugal não é exatamente aquilo que eu sentia pelo Ferroviário. Aqui em Portugal, você pode ser do Chaves, mas ninguém é do Chaves sem ser simpatizante do Sporting ou do Benfica. Quem era do Ferroviário não era do Benfica, eram rivais. Quando eu disse ao meu pai que o meu treinador do Ferroviário me tinha convidado para na época seguinte ir para o Sporting, o meu pai estava a comer a sopa, pousou a colher e foi-se embora, saiu de casa. Pelo silêncio, percebi logo a resposta dele.

Hoje, não tendo nenhuma ligação a um clube de Portugal, se estiver na sua casa em Teerão, se vir um jogo entre os grandes, prefere que o Benfica ganhe?
Vou ver o resultado do Manchester United. Claro que há alguns clubes que prefiro que ganhem: o Real Madrid, o Benfica, mas o único clube com o qual eu me comporto como adepto, mesmo à radical, é o Manchester United. Sou adepto, mas se perdemos, digo mal do Mourinho e de toda a gente porque fico furioso!

Começou em Portugal na área do treino nos infantis do Sport Lisboa e Olivais. Estou certo?
Exato. Nós tínhamos um centro de treino de formação nos Olivais.

Ainda se lembra daqueles miúdos? Algum deu jogador?
Dessa geração, não me lembro. Mas dos iniciados do Belenenses lembro-me que deu jogador o Jorge Baptista, que chegou a jogar no Guimarães, um médio.

No final da década de 90, o nome Carlos Queiroz começa a dizer alguma coisa às pessoas, devido aos dois Mundiais de sub-20 que conquistou. Desde que entrou na Federação até aquela noite do Estádio da Luz de 1991, em que Portugal se sagra bicampeão do Mundo sub-20, o que recorda como mais marcante?
Tenho a primeira fase de 1982 a 1984 em que estou no departamento de formação e da revista, uma área que o César Grácio e o Mirandela Costa iniciaram na égide do presidente Silva Resende. Em 1984 é quando entro como efetivo para os quadros técnicos como adjunto do José Augusto, que me convidou para ir para a Federação. Tenho muitas memórias desse tempo, mas o que eu mais recordo como nobre, e permita-me a falta de modéstia, é fazer parte da família. Não me considero pai, nem avô, mas tive a honra de fazer parte de uma família. Vou resumir isso numa expressão muito simples que era muitas vezes repetida pelo Nelo Vingada: "Pagam-nos mal, mas divertimo-nos à brava." Eu tive a sorte de viver quase a vida toda sem trabalhar, porque eu sempre fiz isto do futebol, que é aquilo que mais gosto. Eu tive a sorte na minha vida de nunca sair de casa a pensar que já eram 8.00 e estou atrasado para ir para o escritório. Não sei o que é essa ideia de que já é segunda-feira; eu sempre pensei "nunca mais é segunda-feira", porque, para mim, futebol nunca foi trabalho.

Já falou de muitas histórias daqueles miúdos dos mundiais. Como é que os pais desses miúdos encaravam essa situação de estarem muito tempo em estágio?
Foi um processo, não passou só pelos pais deles, passou também pelos dirigentes, pela imprensa... claro que os pais foram os primeiros a acreditar que aquilo que estávamos a fazer era bem feito e era o melhor para a vida dos filhos. Tive muitos pais, ao contrário do que as pessoas pensam, mesmo de nomes sonantes do futebol português, que quando eu os encontrava no Estádio Nacional chegavam ao pé de mim preocupadíssimos. Os filhos já tinham abandonado a escola, já o insucesso escolar estava estabelecido. Esses foram os primeiros confrontos que tive.

Eles culpavam-no pelos estágios e pelo insucesso escolar?
Não, não, mas foi o que me deu o primeiro impulso para abordar a federação para tratarem disso. Qual era o grau de ensino dos jogadores até à Geração de Ouro? Doutores, engenheiros? Se calhar, o abandono da escola não era uma novidade, já estava silenciosamente instalada desde o princípio do futebol profissional. Eu sou a primeira pessoa que aparece a dizer que se os jogadores não podem ir à escola, a escola tem de vir aos jogadores. Ponto final. Se você tem um pianista em casa que é um génio e ele não pode ir a uma escola, o piano tem de vir até ele. Não se podem é perder génios, foi a minha ideia de base. Se temos potencial de jogadores que podem ser os melhores do Mundo, nós temos de criar condições a nível intelectual e técnico para que essas pessoas possam ser estimuladas, possam desenvolver-se. Quais eram os primeiros jogadores a treinar nos clubes à tarde, quando vinham da escola? Eram os juniores, por volta das 18.00, 18.30. Quem era o segundo escalão a treinar, porque não havia três campos e era tudo no mesmo campo? Os juvenis, por volta das 19.30, 20.00. E a seguir? Os iniciados. Tínhamos as crianças de 12, 13 e 14 anos a treinar às 21.00, com os paizinhos no inverno ali sentados e ainda tinham de levar os miúdos para casa e fazer jantar com escola às 8.00 do dia seguinte. Como é que podia haver sucesso escolar com uma escola mal estruturada? Eu fui professor do secundário, de desporto, e tinha confrontações com colegas porque os alunos de desporto supostamente eram uns burros na opinião dos professores de matemática e de francês. Tinham de treinar, eram jogadores internacionais de basquetebol, de voleibol e outras modalidades, tinham de ir para o Sporting ou para o Benfica e no dia seguinte tinham os trabalhos de casa por fazer. Eram uns burros. Eu batalhei muito para trazer a escola para os estágios da Seleção. Foi muito difícil.

Nunca teve grandes problemas com pais de jogadores?
Não, nunca. Pelo contrário: nove em cada dez casos, os pais chegavam ao pé de mim e pediam-me para ajudar os filhos, porque viam na Seleção a última oportunidade de salvar o problema da escola. Se eles não tivessem sucesso ali, não havia retorno. Desde os pais do Figo, do Paulo Torres, todos tinham essa angústia.

Foi quase obrigado a pegar na Seleção A. Porque é que não queria essa promoção?
Porque eu tenho dois dedos de testa e percebi que o Artur Jorge tinha saído abruptamente da Seleção e a qualificação para o Campeonato da Europa estava praticamente perdida. Não era o cenário mais interessante para mim como treinador. Estávamos numa fase de renovação e uma coisa é estar a jogar para o Europeu com jogadores de 21 anos com experiência de jogar na Juventus, ou no Barcelona, ou na Fiorentina, e outra coisa é ir fazer uma qualificação para o Mundial com jogadores de 20 anos que estão no banco das equipas principais portuguesas. Havia ausência de experiência e maturidade para uma qualificação, percebi logo que ia meter ali a minha cabeça com o risco de não resultar. Entendi que ainda não estavam reunidas as condições para ter êxito. O João Rodrigues confiou em mim e só lhe posso estar grato por isso. Nas palavras dele não havia ninguém melhor do que eu podia fazer o trabalho. Lembro-me bem de ele dizer: "A Federação andou estes anos a gastar e a investir dinheiro para preparar esta geração e agora é tempo de esses jogadores irem para dentro do campo". Eu acho que tínhamos chegado lá, mas nem eu nem o João Rodrigues chegámos porque a seguir duas grandes figuras de oposição ao Dr. João Rodrigues, Lopes da Silva e Amândio de Carvalho, através do movimento das associações deitaram abaixo João Rodrigues. E depois veio o Vítor Vasques. Isso criou uma instabilidade enorme. Portanto, voltemos à decisão, penso que foi uma coisa pela qual tenho de ficar grato. Acho que fizemos o que tínhamos a fazer, acabámos o jogo de Itália com oito ou nove jogadores da seleção dos Mundiais, classificámos a equipa para os Jogos Olímpicos e tivemos os melhores resultados nos Jogos Olímpicos de uma equipa europeia na história do futebol mundial - o 4.º lugar.

No final daquele jogo em San Siro falou da porcaria que tinha de ser varrida. 20 anos depois quer explicar hoje essa frase?
Não gosto de muito de desenterrar fantasmas e de estar sempre a falar dos meus pregos. Falei dessa instabilidade negativa e das questões que nós vivemos, dez minutos depois do Dino Baggio marcar um golo em fora-de-jogo - e os golos em fora-de-jogo contra a seleção, se tivessem o mesmo impacto na sociedade portuguesa que tem um golo em fora-de-jogo do Sporting ou do Benfica, a história das seleções nacionais teria sido outra. Infelizmente os golos em fora-de-jogo contra a Seleção não têm nenhum impacto, porque até parece que as pessoas precisam disso para confirmar aquela ideia do "somos uma porcaria".

Mas, respondendo à pergunta, a porcaria era?
A dez minutos do fim, depois da expulsão do Fernando Couto e do golo [da Itália] eu digo ao Nelo assim: "Se não fossem as merdas que a gente viveu até este jogo, até onde podíamos ter chegado?" Naquele tempo não é como agora, a imprensa entrava dentro do campo e estava ali mesmo ao lado, e quando o jogo acaba eu saio e o António Esteves Martins põe-me o microfone à frente e eu, entre várias coisas, saiu-me esta barbaridade. Como não podia dizer merdas, disse "enquanto não varrermos as porcarias que existem dentro da Federação, a gente não chega a lado nenhum".

Mas está arrependido?
Não me orgulho dessa decisão, estar arrependido é outra coisa. Não é propriamente dos melhores momentos da minha vida, até porque esse comentário, a seguir ao sentimento de tristeza e de angustia que se estabelece depois de um resultado negativo, caiu naquela altura que nem uma bomba. Nesse capítulo não me sinto orgulhoso, mas "que las hay, las hay". É como se costuma dizer sobre as bruxas: "Eu não acredito em bruxas, mas que las hay, las hay."

Depois vai para o Sporting, mas falava-se também no FC Porto.
Isso já são histórias anteriores. Na altura tinha tido um convite para ir para a seleção da Arábia Saudita, mas naquela altura... aliás, a conversa antes do jogo é esta: o engenheiro Vítor Vasques - que era a pessoa que menos merecia a frase que eu disse e por isso a primeira coisa que fiz quando cheguei a Lisboa foi ir a casa dele pedir-lhe desculpa pela minha atitude, daquilo que me saiu durante o jogo - disse "Carlos, com este trabalho fantástico que estás a fazer, independentemente do resultado, antes do jogo quero que saibas que a tua renovação não está em causa e que vais continuar à frente da seleção". O FC Porto foi antes, em 1991, era o Quinito o treinador e ele saiu.

Mas porque é que não foi para o FC Porto?
Tinha contrato com a seleção nessa altura e estávamos a três meses do Mundial de juniores em 1991. Houve a oportunidade, e eu vacilei, mas os dirigentes da Federação tiveram uma grande reunião no Porto com Pinto da Costa e depois entendeu-se que a oportunidade desse convite não era a melhor.

Foi a única vez em que foi convidado pelo FC Porto?
Não, houve uma segunda vez, infelizmente um mês depois de eu ter assinado um contrato com o Metrostars. Tive a honra de o Sr. Pinto da Costa me convidar uma segunda vez, mas depois não sei o que aconteceu a esse contrato. A primeira vez que estava para ir para a América, para a seleção, não fui, optei por ficar no Sporting, isso criou alguma dificuldade e mal-estar com os dirigentes da federação dos Estados Unidos. Quando eu assinei com o Metrostars tinha uma cláusula de rescisão, foi a primeira vez que tive uma, posta e bem pesada, na altura era de mais de um milhão de dólares se eu não cumprisse o contrato. E então, um mês depois de eu assinar o contrato, aparece o FC Porto, e eu torci-me todo, mas disseram-me logo "ou pagam ou não vais".

--- "3-6? Esse empate está-me gravado" ---

Em relação ao Sporting, eu o 3-6 ainda lhe deve estar atravessado, até porque foi o João Pinto a resolver o jogo...
Esse empate está-me gravado.

E ao intervalo tirou o Paulo Torres e meteu o Capucho a defesa-esquerdo. Foi uma decisão muito polémica na altura porque muita gente achou que foi essa decisão que fez a balança pender para o Benfica, apesar de o Sporting ao intervalo estar já a perder por 3-2.
Houve uma decisão técnica, linear. Aliás, uma decisão técnica que ao longo dessa época já tinha sido uma fórmula experimentada. Tínhamo-lo feito em situações de risco.

Com o Capucho a defesa-esquerdo?
Não, espere. O Capucho a defesa-esquerdo já são as interpretações de algumas pessoas. Essa fórmula de em situações de alto risco, de ter de arriscar para o resultado, de ter de ficar a jogar com três centrais ou de abdicar de um dos jogadores da defesa, nós já a tínhamos testado com sucesso em duas ou três situações. Lembre-se que nessa altura eu estou à frente do Benfica. Antes, nas Antas frente ao FC Porto, o Sporting tem três jogadores expulsos, com o árbitro Carlos Valente - bom, aí é que não vou mesmo desenterrar fantasmas, senão tínhamos muito para falar. Eu resolvi-me comigo mesmo quando decidi ir trabalhar para o estrangeiro por não querer comer mais dessa matéria, portanto, não é agora que eu vou falar daquilo que me levou a ir trabalhar para o estrangeiro.

Mas teve muito a ver com esse jogo?
Teve muito a ver com esse jogo e com outros. Porque nós não perdemos o campeonato com o 6-3 contra o Benfica, em Alvalade. Mas eu quero ficar por aqui, é como nos casamentos "diz agora ou cala-te para sempre". Assumi na minha vida profissional, vou para o estrangeiro trabalhar, não quero trabalhar mais aqui. E fico-me por aqui que isso não são "contas do meu rosário". Quem andou por aqui, e está aqui, que resolva esses assuntos. O que eu digo claramente é que não perdemos o campeonato nesse jogo e a opção técnica que eu fiz nessa altura já tinha sido feita algumas vezes com sucesso. Nós estávamos a perder 3-2 e eu estava a duas jornadas da final do Campeonato e tinha de ganhar o jogo. Em Inglaterra o Alex dizia "é altura de fazer o gambling". Há alturas em que temos de fazer decisões do gambling, ou é tudo ou é nada. Esta fórmula já tinha sido experimentada, mas havia um jogador que tinha a responsabilidade de, nessa opção técnica, jogar contra um jogador de 36 anos chamado Veloso, e, portanto, eu tinha confiança de que esse jogador que eu meti dentro para cobrir essa posição iria cumprir. As coisas não correram bem, às vezes correm bem e outras vezes não.

Está a falar do Pacheco?
Eu deixo isso às pessoas para irem ver os factos do jogo. Nesse jogo o Veloso passou a jogar a extremo direito e tive de me socorrer do Capucho para ir assumir uma responsabilidade, porque acabou 6-3, mas podia ter acabado 16-3. E entre 16-3 e 6-3, foi melhor o segundo.Desse jogo eu faço o enfoque de duas coisas: o Benfica ganhou bem, jogou bem e o João Pinto jogou ainda melhor.

Foi o melhor jogo da vida dele?
Não sei se foi o melhor jogo da vida dele. Para mim, na seleção também jogou jogos fantásticos. Naquele jogo se ele tivesse ficado lá em casa, no Boavista ou se se tivesse mantido no Atlético de Madrid, tinha-me dado algum jeito. [Risos] Estou arrependido de o ter ido buscar à Corunha para o Mundial 1991. Devia ter continuado no Atlético de Madrid, estava lá muito bem e pelo menos não me tinha dado essa dor de cabeça. Agora, os sportinguistas sabem e muita gente sabe que não foi nesse jogo que nos perdemos o campeonato, e fico-me por aqui.

--- "Os dois jogadores que tentei levar para o Real foram o Pepe e o Luisão" ---

Há uma semelhança em duas situações; quando vai para o Sporting e depois para o Real Madrid. Em ambos os clubes vai substituir treinadores de um carisma enorme, muito queridos pelos adeptos, aconteceu isso no Sporting com o Bobby Robson e aconteceu no Real Madrid com o Vicente Del Bosque. Não acha que na segunda vez podia ter pensado que isso podia acontecer?
No Real Madrid?

Sim.
A única coisa que eu sei é que estava no escritório do Dr. Dias Ferreira quando foi a primeira abordagem do Sporting e o Sr. Robson já não era treinador do Sporting. Essa foi a informação que me chegou, que o Sporting estava sem treinador. Os sócios, gostassem ou não, é outra coisa a resolver com o Sousa Cintra. Se um clube em determinado momento deposita a confiança em nós de podermos atingir os objetivos e o sucesso que pretendem, aí acreditamos em nós e confiamos nisso ou não. Das duas vezes essa dúvida nunca aconteceu. Com o Real Madrid, então, nem pensar. Primeiro é assinar logo, não vá eles terem alguma hesitação e assinar com outro. Na fila estão 1500 treinadores prontos a assinar com um clube como o Real Madrid, portanto, o melhor é assinar logo. A questão que me põe é concreta. Apesar de eu estar a tentar colocar algum humor e tratar a questão de forma simples, é verdade. Não foi tanto a saída de uma figura carismática como o Del Bosque, foram as razões e o conflito que levaram a essa decisão [da saída].O clube também tinha acabado de ganhar a Taça dos Campeões Europeus. Só que, segundo aquilo que me foi transmitido, o presidente queria levar o Real Madrid para outro rumo. Este rumo que agora está cada vez mais consolidado. É um clube hiper-planetário, com decisões ao nível do plantel, algumas delas discutíveis. E antes de chegar lá, o Real Madrid mandou embora sete ou nove jogadores.

E depois ainda vendem o Makelelé e o Morientes à sua revelia
Isso já foi uma decisão tomada posteriormente a termos acordado o plantel.

É na altura que tenta levar o Vidigal para o Real Madrid?
O Vidigal não. Os dois jogadores que eu tentei levar para o Real Madrid eram um jogador do Marítimo chamado Pepe e o Luisão, que depois veio para o Benfica. Ainda me lembro bem dos preços deles. Houve uma diferençazinha entre aquilo que depois o Real Madrid veio a pagar por eles e aquilo que eu podia ter oferecido ao Real Madrid como opção.

Esse convite para o Real Madrid começou a ganhar forma para aí uns dez anos antes, não? Na eliminatória entre o Sporting e o Real Madrid, na altura em que o Valdano era o treinador do Real Madrid...
Exatamente, nessas duas eliminatórias. Foi o meu cartão de crédito para essa decisão do Real Madrid, do Jorge e do Florentino Pérez. Foi a observação desses jogos e depois de outros jogos que o Sporting, com aquele miúdos, foi fazendo ao longo do campeonato.

E enquanto esteve no Real Madrid, também ia às touradas com o José Peseiro e o Raul?
[Risos] O Peseiro ia mais, que ele é que é adepto disso. Eu às vezes via touradas na televisão, mas nunca foi a minha primeira opção. Mas como o Peseiro e o Raúl - que daquilo que eu vi podia ter sido um grande toureiro, no bairro até havia uns aficionados que o queriam tirar do futebol para ele ser toureiro - eram aficionados...

É capaz de contar uma história que nunca tenha revelado daquele balneário composto, entre outros, por Beckham, Ronaldo fenómeno, Figo, Roberto Carlos, Zidane.
Uma história que me intrigava era a do David Beckham e do Roberto Carlos. Às vezes depois do jogo eu estava a comer numa mesa e eles estavam noutra e passavam ali umas duas horas a conversar. Um não falava inglês, o outro não falava espanhol ou português e eu perguntava-me o que é que eles tanto falavam. Era uma coisa engraçada e pitoresca. Outra, quando cheguei ao Real Madrid, até foi no jogo da Supertaça, vejo em cima da mesa cerveja e vinho e fiquei um bocado perturbado com aquilo e chamei o médico e disse que aquilo não fazia sentido em dia de jogo. Quis proibir e proibi as bebidas alcoólicas em dia de jogos. Depois o Raúl veio falar comigo e disse: "Olha, aqui no clube há uma tradição, nós estamos habituados a que o álcool, cerveja e vinho, sejam parte das nossas refeições, mas fica tranquilo." Depois de ele falar comigo e visto que fazia parte da tradição deles eu disse "vamos fazer uma coisa, vou observar durante duas ou três semanas". A verdade é que eu nunca vi nenhum jogador a tocar na cerveja ou no vinho em dias de jogo. Às vezes depois dos jogos, alguns perguntavam-me se podiam beber um copo de vinho ou uma cerveja. O Ronaldo [o fenómeno], não, ele era mais Coca-Cola. Tive de ser eu a cortar para ele não beber tanta Coca-Cola.

Era um grupo com o que era fácil de lidar?
Quanto mais profissionais, mais fácil é. Ao contrário do que as pessoas pensam, as estrelas não são difíceis de gerir, difícil de gerir é um miúdo sem experiência profissional. Quando os jogadores sabem gerir o seu treino, o seu descanso, o seu repouso, a sua preparação psicológica e motivacional para um jogo, isso é a situação mais fácil para o treinador.

---- "Não perco tempo a pensar num reencontro com Ronaldo" ---

Quase não falámos de Cristiano Ronaldo. Quando volta para a Seleção apura a equipa para o Mundial 2010 e na África do Sul depois da eliminação com a Espanha deu-se aquela frase de Ronaldo "perguntem ao Carlos". Tendo sido uma espécie de tutor de Ronaldo em Manchester, não lhe custa não falar com ele há sete anos? Imagina o reencontro? Acha que isso vai acontecer algum dia?
Bem, não penso nisso, não me preocupo com isso. As coisas são assim, há pessoas que são mais próximas e outras menos.

Mas nunca mais voltaram a falar?
Não, se calhar nunca tivemos oportunidade de tornarmos a falar.

Mas gostava de um dia poder voltar a falar com ele?
Não tenho gostos nem paladares nenhuns a esse respeito. As coisas são assim.

Ficou muito magoado.
A minha opção não era provavelmente essa. Eu posso controlar os meus desejos e sentimentos, mas não os dos outros.

Mas na sua cabeça já alguma vez imaginou esse reencontro?
Não. Já imaginei, pode acontecer e eu espero que não, o sorteio ditar o Irão contra Portugal. Vamos ter de os pôr a correr para nos ganhar, tenho de dizer isto assim [risos]. Espero que se tiver de haver um reencontro, não seja nesse palco. Não perco tempo a pensar nisso, as coisas são o que são.

Sabe que, tendo em conta as vivências que partilharam, é difícil acreditar nisso.
Guardo das pessoas as melhores coisas e tento não me lembrar nem preocupar com as coisas menos boas. Tento guardar na minha memória as coisas boas e tudo o que fiz, eu não fiz essas coisas por ele, fiz porque era a minha convicção de que era o melhor para mim e para o clube. Fiz tudo o que estava ao meu alcance para viabilizar e concretizar o sonho dele de depois ir para o Real Madrid, que também era a minha obrigação enquanto treinador da Seleção. Essa decisão e esse acordo foi feito, como deve imaginar, em condições de privacidade. Foi na minha própria casa, no seio da minha família, eu trouxe o Alex Ferguson e o David Gill a Lisboa para eles conversarem e chegarem a um acordo para emocionalmente resolverem aquela questão. Fez-me bem sentir-me bem como treinador e como amigo de resolver uma coisa importante. E foi ali na minha sala, com a minha família, que as coisas foram resolvidas. Outras até, se calhar mais sensíveis, como foi a primeira vez que se deu aquele incidente no Mundial 2006 com o Rooney, e o Cristiano quase não queria voltar ao Manchester, havia ali uma questão de sensibilidade, acho que foi bom eu ter tido oportunidade de resolver e aproximar as pessoas. Acho que foi bom para o Cristiano, foi bom para o Manchester e foi bom para mim como treinador. Ele não me deve nada e eu não lhe devo nada.

--- "Gostava de ter trabalhado com o Rui Costa no Benfica" ---

Depois de ter voltado ao Manchester United, foi o eleito do Benfica para ser o treinador. Porque é que Alex Ferguson não o deixou sair, e qual era a sua vontade?
Antes de ir para o Manchester United, já era há 17 anos treinador principal, por isso a ida para Inglaterra foi uma questão de curiosidade, de aprendizagem, de ver o que era um clube como o Manchester United. O meu regresso já era uma questão afetiva, emocional, técnica e também do projeto que o Alex me apresentou. Ele pediu-me para ajudar a tornar o clube outra vez campeão europeu, esse era o objetivo imediato. Depois, ele estabeleceu com o clube as condições para o pós-Alex Ferguson. No meu contrato não estava a obrigação do Manchester fazer de mim o treinador principal, mas estavam as condições de acordo com a possibilidade dessa decisão ser tomada e se essa decisão não fosse tomada, qual era a compensação profissional e financeira que eu recebia.

Ou seja, se não fosse treinador principal no pós-Alex Ferguson era indemnizado?
Não era bem indemnizado, mas naquela altura essa era a visão do clube. Dali a três ou quatro anos, se os cenários mudassem, nós acordámos uma compensação para essa decisão não ser tomada. Já tinha 17 anos de treino, estava há quatro ou cinco anos com o Alex e corria o risco de comprometer a minha carreira a troco de nada, ou a troco do vazio. Esse contrato foi extraordinariamente bem conseguido, bem desenhado, eu estava tranquilo com esse acordo. Eu volto do Real Madrid e iam deixar-me sair para o Benfica? O Manchester não é um clube emergente, é um clube que tem de explicar a milhões de adeptos as suas decisões.

Mas queria ir para o Benfica?
Eu queria ir para o Benfica porque era uma oportunidade de voltar a casa. Era uma oportunidade de relançar a carreira na posição de treinador principal, e no Manchester já tinham saído vários jogadores...

Deu um grande desgosto a Rui Costa.
Tive pena. Uma das razões pelas quais abri a porta a negociar com o Benfica foi por causa do Rui, e também do Luís Filipe Vieira que conhecia há muitos anos. Acreditava que éramos duas pessoas que poderiam pensar o futebol do Benfica da mesma maneira, pela experiência internacional. Seria um Benfica mais consistente, mais ganhador, porque nessa altura o Benfica vinha de uma fase difícil. Eu achei que era a hora ideal de ir para o Benfica. Falámos da cláusula [do contrato com o Manchester United] e o Alex disse "se o Benfica pagar..."

E era muito?
Era. Não me lembro com detalhe, mas era muito para o Benfica.

Gostava que esse comboio passasse novamente, para trabalhar com Rui Costa no Benfica?
Trabalhar com o Rui Costa, sim, por uma questão afetiva, mas com o Benfica agora já não é propriamente o que eu quero. Não é que eu esteja a desprezar, se o Benfica fosse de Espanha ou da Grécia, eu era capaz de dizer já que sim, mas em Portugal... Tenho lá fora outros aliciantes, ainda que não possa dizer que desta água não beberei. Não tenho nos meus horizontes voltar a treinar em Portugal.

Mas não tem o sonho ou o objetivo de ser campeão em Portugal?
Não. O meu maior objetivo seria conseguir cinco qualificações para o Mundial. Campeões em Portugal pelo Benfica já houve muitos; treinadores com cinco qualificações para o Mundial não houve nenhum.

Tem-se falado muito de bruxaria no futebol aqui em Portugal. Viveu algum caso que pode contar, ou algum que não possa contar?
Vivi alguns, aqui em Portugal, que não posso contar por respeito às pessoas e às suas convicções, acho que é uma área em que devo manter algum sigilo e pudor. Quando me reformar, conto uma história dessa área sobre o 3-6 [Sporting-Benfica a 14 de maio de 1994].

O que lhe falta fazer no futebol e na vida?
No futebol, falta-me chegar ao objetivo de conseguir cinco qualificações para qualificar cinco seleções para Mundiais. Na vida, falta-me deixar de perder tempo com gente inútil e coisas inúteis, que não mereceram nem o meu tempo nem a minha amizade.

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