Pelo título, Cruzeiros de Inverno, será difícil ao leitor chegar ao verdadeiro tema das três novelas. No entanto, leia-se uma dúzia de páginas de cada uma e logo se perceberá que a biografia continua a seduzir Mário Cláudio como expressão literária. Não terá a complexidade e o gigantismo de Tiago Veiga – Uma Biografia, mas o leitor está perante um trio de histórias de vidas reais que serviram ao autor para percorrer um caminho inesperado e de uma forma tão elegante como trágica. Afinal, o guião das três novelas tem um mesmo desenlace: o suicídio de Carlos Relvas, de Ofélia Marques e de José Corrêa d’Oliveira.A primeira questão obrigatória a fazer é a razão para uma tão grande fixação no suicídio como tema das três novelas e Mário Cláudio não evita a resposta: “O suicídio constitui uma das expressões mais complexas, e por isso mais fascinantes, do comportamento humano. Sabe-se que a nossa espécie partilha com poucas a opção de pôr termo à própria vida e, portanto, a reflexão sobre o tema não escasseia. Desde o início dos tempos, e em múltiplos lugares, como quer que o suicídio se encare, abundam os discursos sobre ele, ora empíricos, ora filosofantes. Há quem se mate por medo à vida e quem se mate por medo à morte. Os da primeira categoria conformam o grupo mais numeroso, mas não faltam exemplos da antecipação da morte, motivada pelo pavor a que leva a consciência da finitude. Há ainda os que atentam contra si por algo como um mórbido enamoramento da morte, e os que escolhem tal saída por efeito do amor a uma vida que tão-só com o absoluto se contenta.”A resposta contém já uma amplitude de razões para este ato, por norma, desesperado. Se a opção do escritor foi a de escolher um trio de vidas que terminaram abruptamente, em três momentos do século XX – princípio, meio e fim -, será que em função da passagem do tempo a interpretação destas vidas vai sendo alterada? Para Mário Cláudio, “nenhuma morte, voluntária ou não, autoinfligida ou não, esgota a totalidade dos sentidos”, daí que ocorram “frequentes fenómenos de releitura e até de reabilitação”. No entanto, refere, “se considerarmos que o suicídio configura um tabu inerradicável, a precipitar um silenciamento que acresce ao esquecimento para que tende a morte em geral, entraremos num plano alternativo. Ou seja, deve existir a missão de devolver aos suicidas, e de momento a estes três, a identidade que o seu «gesto de desespero» desfocou ou extinguiu”.Essa missão de que o escritor se encarregou em Cruzeiros de Inverno vem, como já se referiu, do seu interesse muito constante pela biografia, porque é um género literário que consiste “na visitação de uma criatura, ou de um acontecimento, na sua desejável integridade, o que postula uma tarefa de preenchimento de lacunas. Nunca entenderemos quem somos, e daí que a fantasia nos surja como recurso mais à mão. As narrativas deste livro desenvolver-se-ão num plano «biográfico», ou seja, na plena área do fingimento das letras”.Mário Cláudio não receia que o tema seja rejeitado por alguns leitores, pelo contrário: “Na verdade, conto com a curiosidade daqueles que já perceberam que, sem amor e sem morte, a ficção literária não existe. Creio que foi Kafka quem afirmou que, se nos assistisse a mínima suspeita daquilo que andamos a fazer por cá, agiríamos como crianças de mãos dadas, a tiritar de frio no limiar do inferno. É nesse «parque infantil» que teimo em me ver como pessoa, e é dele que me interessa passar notícia.”Até que ponto a escolha de um mesmo final para as três novelas dificulta a vida ao escritor e por que escolheu estes três protagonistas, pergunta-se. Quanto ao mesmo final: “Qualquer autor, ao defrontar-se com a ideia da morte, e não raro com a tentação de a abraçar, alinha com as suas personagens, mais ou menos imaginárias. A escrita, registo da precariedade, abre a porta a diversas congeminações.” Quanto às três figuras: “Os três heróis vieram ter comigo à semelhança do que me costuma suceder, mas neste caso um a um, e em várias fases do meu percurso. Congregaram-se num grupo coeso, justificado pelas circunstâncias de haverem nascido em anos sucessivos e de significativamente se autoliquidarem no inverno.”Para o escritor, nenhum dos protagonistas supera os outros dois e garante que “todos mereceram o mesmo esforço de compreensão”. Já no que respeita à investigação, foi Carlos Relvas o mais complexo em construir: “Por falta de documentação e pela conjura em calar os rastos, coisa que não se desgarra do poder político-económico, apareceu-me como o mais órfão de análise e como alguém cujas pegadas se tornaram objeto de maior apagamento.” Segundo o autor, o relevo que dá a este trio de protagonistas não será repetido por outros biógrafos e justifica-o assim: “Mais ou menos conhecidos na respetiva época, fico com a certeza de que na retaguarda dos presentes suicidas se adensa uma legião que jamais achará os seus cronistas.”Após trezentas páginas de literatura, resta a questão sobre se o suicídio se mantém como solução? Mário Cláudio não hesita na resposta: “Só eles, os suicidas, serão capazes de responder à pergunta, se as mesas de pé-de-galo se atreverem a falar.” .CRUZEIROS DE INVERNOMário CláudioD.Quixote309 páginas Outras novidades literáriasPROVA DE VIDAApós se ver a capa desta investigação não se duvida em a dar como fundamental pois trata-se de, como diz o subtítulo, A face pouco conhecida da expansão portuguesa: a presença das mulheres nas naus e caravelas. E assim é, pois rareiam estudos com esta envergadura sobre um assunto que pouco terá a ver com a espuma dos dias mas antes ocupado em descobrir testemunhos sobre uma componente nas viagens marítimos dos Descobrimentos, tema a que poucos historiadores deram mais importância do que a de um rodapé. Outro destaque será dado a partir deste ensaio, em que se entende que embarcavam muito mais passageiras do que se pensava, no entanto o seu registo era escamoteado. .MULHERES A BORDO!Mariana Caldeira GonçalvesParsifal157 páginas NO PAÍS DE SALAZAREsta investigação sustenta-se em oito livros escritos por mulheres que visitaram Portugal entre as décadas de 1930 e 1960. O mais conhecido é Férias com Salazar de Christine Garnier, livro muitas vezes demasiado menorizado face à dificuldade de o fazer. Também o Letter from Portugal da norte-americana Mary McCarthy oferece uma análise na maior parte das vezes extremamente objetiva, em muito devido à rebeldia da autora. Uma das conclusões de Sónia Serrano sobre estas viajantes é bastante curiosa: “Um país que tinha mais em comum com o Oriente e com África do que com o continente onde se situava.” .MULHERES VIAJANTESSónia SerranoTinta da China159 páginas