Na sequência do seu filme anterior, Lumière - A Aventura Começa (2017), o novo Lumière - A Aventura Continua! é o resultado do trabalho e, por assim dizer, da aventura do próprio Instituto Lumière, preservando e divulgando os filmes dos irmãos Lumière. Não será também o resultado de uma aventura muito pessoal?Sim. Digamos que, para falar desde já sobre isso, passando a outras questões, por vezes as pessoas perguntam-me: “Então, não querias ser cineasta?” Quando se é um jovem cinéfilo queremos fazer cinema... O certo é que a minha vida conduziu-me a outros caminhos, amando, admirando e mostrando os filmes dos outros. Em cada ano, com as equipas de Cannes, vemos mais de dois mil filmes (2800 longas-metragens para a edição deste ano) e é preciso escolher - faço juízos de valor, seleciono. Com Lumière é diferente - era preciso encontrar um conceito e também uma maneira de mostrar os filmes. Claro que me considero o realizador destes filmes, mas na verdade sou o único realizador do mundo que pode dizer “vocês vão ver uma coisa extraordinária”, porque são os filmes de Lumière que são extraordinários! . Em qualquer caso, há todo um trabalho pedagógico nessa amostragem da obra dos Lumière. Isso está no primeiro filme, mas neste segundo talvez ainda mais, fazendo sentir ao espetador o que estava ali a acontecer - era, realmente, a primeira vez que se enquadrava de uma determinada maneira, que se procurava uma determinada duração, etc. Como lhe parece que tudo isso pode ser recebido agora, no nosso presente, neste momento da história do cinema? Ou, pura e simplesmente, da história?Foi por isso que coloquei no início aquela citação de Agnès Varda: “As personagens dos filmes Lumière não são os nossos pais, os nossos avós ou os nossos antepassados - somos nós.” Penso que recebemos agora estes filmes como foram recebidos na sua época, excetuando o efeito de surpresa. Em boa verdade, os Lumière são formalistas. Não é possível contar os filmes Lumière - é preciso vê-los, porque são uma forma, têm um estilo, são realmente cinematográficos. Aliás, o lugar dos Lumière na história do cinema é bizarro. Não foram sobretudo inventores, porque existiu Edison e outros. Também não foram exatamente cineastas, porque aconteceu Méliès. Por isso digo no filme que não se trata de colocar o documentário contra a ficção. E digo que Lumière é Rossellini e Méliès é Fellini. O que não é contraditório: é a soma de uma coisa e outra que faz o cinema. Daí que não faça sentido dizer que este é um cinema primitivo, um pouco à maneira da lenda segundo a qual Lumière teria dito que “o cinema é uma arte sem futuro”. Primeiro, na altura não se falava de “arte”; depois, não há a certeza de que ele o tenha dito...... mesmo se Godard o citou em 1963, no seu filme O Desprezo.Aliás, todo a gente o citou! O que ele terá dito é antes qualquer coisa como: quem poderia adivinhar que o cinematógrafo ia tornar-se no cinema? Ou ainda, perguntamos agora: como seria possível adivinhar estes extraordinários 130 anos? Estamos mesmo a preparar uma montagem para o Festival Lumière que começa com uma pergunta: “Sem futuro?” Era preciso recolocar Lumière no interior da história do cinema, o que fiz com o primeiro filme, sendo este um pouco mais melancólico e filosófico, com uma visão mais próxima do cinema, e não tanto da sua invenção. . Trata-se, portanto, de refletir o próprio momento da história do cinema?2025 é diferente de 2017: há uma nova crise do cinema, tivemos a covid, nasceram as plataformas. E como acontece quando se perde alguma coisa, ou sentimos a ameaça da sua perda, aí prestamos atenção. Por isso digo que é preciso cuidar do cinema, porque cuidar do cinema é cuidar do mundo inteiro. E é, talvez, também um sinal dos tempos dizer que o cinema é um instrumento de paz e uma arte ética: o cinema assina as suas imagens, assume a responsabilidade das imagens. Hoje em dia há imagens por todo o lado, imagens de pessoas decapitadas, de mortos, sem qualquer responsabilidade... O cinema sempre nos ensinou uma determinada dignidade.E esse cuidar do cinema, o que é? O que se pode fazer?É preciso transmiti-lo, ensiná-lo - com pedagogia, de facto, para que as gerações mais novas o reaprendam. Esse é, aliás, um ponto essencial do trabalho que desenvolvemos em Lyon, através da revalorização do grande ecrã. O grande ecrã não é este telemóvel... São duas horas no escuro. Temos os alunos das escolas a assistir, agitam-se, fazem disparates... mas o filme começa e tudo pára! E há um que diz: “Cala-te, estou a ver isto!” Ensinamos-lhes a ver o preto e branco, a viver a solidão coletiva. E há também as legendas, a importância da leitura. Enfim, tudo isto envolve qualquer coisa de combativo: defender o cinema é defender a cultura. Afinal, não se fala da morte da literatura, da música ou da pintura, mas é um facto que sempre se falou da morte do cinema porque o cinema é um bebé frágil - é preciso continuar a prestar-lhe atenção. . Nessa imensidão de problemas, qual é o lugar, “bom” ou “mau”, ocupado pela televisão?É outra coisa. Temos a televisão, as plataformas, Netflix & Cª., as séries (algumas extraordinárias)... tenho tudo aqui no meu telemóvel, mas o cinema não é isso. E é aí que regressamos à segunda invenção de Lumière: a primeira é técnica, a segunda é filosófica, ou seja, o ecrã. Ou ainda: a sala de cinema. E quanto mais há imagens por todo o lado, incluindo a inteligência artificial, tanto mais o cinema conserva a sua singularidade, a sua força, a sua identidade e também a sua sensibilidade. Portanto, a televisão não é uma inimiga - é outra coisa. Falando de música, por exemplo: eu sou o maior colecionador de França (enfim, pelo menos de Lyon!) de discos de Bruce Springsteen, mas um concerto de Bruce Springsteen é outra coisa. Ver um filme numa sala de cinema é um ato social que a tecnologia não consegue substituir.Quando vemos os pequenos filmes Lumière, podemos resumi-los através de uma sinopse, mas é um facto que um filme está longe de se reduzir à sua sinopse. Mesmo quando há uma história que podemos contar (por exemplo, em L’Arroseur Arrosé, com o jardineiro e a mangueira que não funciona...), o que nos mobiliza é o acontecimento, quer dizer, algo que é indissociável do grande ecrã.E mais ainda: é a aura de tudo isso, quer dizer, o acontecimento íntimo. E depois digo: eu lembro-me. Lembro-me de quê? Lembro-me do cinema. Aliás, o cinema teve sempre um lado melancólico. Sacha Guitry dizia: “No teatro, representamos. No cinema, já representámos.” Quando um filme chega, já aconteceu, está ontologicamente ligado ao passado, ao nosso próprio passado - logo, ao desaparecimento e à morte. E, apesar disso, o cinema é uma festa, e foi uma festa desde o princípio. . Será também por isso que faz sentido dizer que o Instituto Lumière é uma entidade a meio caminho entre uma cinemateca e um festival?Hoje em dia, sim, porque temos o Festival Lumière. O instituto nasceu como uma cinemateca, mas sempre organizámos muitos eventos em Lyon. Digamos que é um pouco como um restaurante: é preciso que a ementa seja boa, mas a atmosfera também é muito importante. Há uma dimensão festiva em tudo isso: no interior da cinefilia há famílias, clãs, grupos e seitas [riso]... mas está tudo bem. O cinema como paixão é também uma maneira de pertencermos ao mundo - mesmo quando estou só numa sala de cinema, pertenço ao mundo.Numa nota talvez mais pessimista, não lhe parece que podemos perguntar se esse sentimento de pertença não se está a perder, sobretudo nos jovens?A minha resposta é: sim e não. Está a perder-se globalmente, na sociedade - assistimos ao triunfo de um capitalismo que é também um certo fascismo do espírito. Seja como for, em Lyon e, de um modo geral, em França temos muitos jovens que nos acompanham e não sou pessimista. É preciso inventar uma nova linguagem. Há tempos, em Lyon, numa conferência sobre a história do cinema, as cópias restauradas, etc., defendi a ideia de que a vitória de todos nós, cinéfilos, não pode ser a derrota da cinefilia. Porquê? Porque se o cinema está em todo o lado, é como se não estivesse em lugar algum... Ora, onde está o cinema? Para mim, está nas salas, está nos festivais e está com os artistas - de repente, Paul Thomas Anderson faz um filme e aí está o cinema! O cinema será salvo, como sempre, pelos filmes, pelo seu desejo..Lumière na era digital