Prépublicação. Viver pelo fio da espada: Violência e atrocidades

O historiador britânico Guy de la Bédoyère escreveu Glaudius: Viver, lutar e morrer no Exército Romano (Crítica), um livro que revela como funcionava a máquina militar tanto da República Romana como do Império que a sucedeu. Eficaz, mas brutal. Aqui ficam dois excertos.

"Os soldados passaram pelo fio da espada
todos os homens que encontraram e, com cadáveres,
bloquearam as estreitas ruas, inundando a cidade
com tanto sangue que muitos dos incêndios foram extintos."

Josefo descreve a queda
de Jerusalém às mãos
do exército de Tito, no ano 70.

Embora, pelo menos em teoria, as guerras romanas fossem travadas por sol- dados sujeitos a uma disciplina rigorosa, muitas vezes, estes exibiam uma brutalidade gratuita, como já se terá tornado evidente em algumas das páginas anteriores deste livro. Esta brutalidade era a tónica dominante, tanto dos romanos como dos seus inimigos. «Uma vez iniciada a matança, é difícil pará-la», afirma Tácito, numa admissão categórica de uma verdade desagradável. As guerras na Antiguidade não eram para medrosos. Tratava-se de combates corpo a corpo, à queima-roupa, com espadas, punhais e lanças, o que poderia implicar desde massacrar um exército romano rival, exterminar uma força de bárbaros ou assassinar mulheres e crianças nas suas casas e nas ruas das suas cidades ou aldeias. Foi dito que o imperador Probo pagou um aureus de ouro por cada cabeça de um bárbaro decapitado que lhe trouxessem. Os historiadores romanos exultavam com estas histórias, e os soldados romanos ficavam extasiados quando saíam vencedores. Fazia tudo parte do conceito romano de virtus, que combinava coragem honrosa, virilidade e heroísmo, tudo permeado por uma veneração quase religiosa pela violência.

Não há dúvida de que esta brutalidade extrema estava enraizada na sociedade romana e na sua arte de fazer a guerra. Não se tratava de nenhum traço particularmente invulgar para os padrões da época, mas os romanos eram excecionalmente diligentes no uso da violência para conseguirem o que queriam e agirem ao serviço do Estado para alcançarem os seus objetivos de conquista. Também é verdade que os povos contra os quais lutavam se mostravam, por vezes, não menos violentos à sua própria maneira. Os romanos, porém, encontravam-se geralmente mais bem equipados e treinados, e eram assaz persistentes.

O mundo dos romanos era um lugar onde a vida valia pouco, embora ninguém se tivesse dado ao trabalho de ponderar nisto e atribuir-lhe um preço. A morte podia sobrevir de forma rápida, na ponta de uma lança ou de uma espada, ou de forma lenta, por inanição durante um cerco, ou em resultado de tortura ou de ferimentos devastadores. Na era republicana, o poder militar sobre a Itália, a Sicília e, depois, sobre os territórios mais além havia sido conquistado a um custo enorme, tanto para os romanos como para os seus inimigos, acabando por ditar o rumo da história romana posterior. Em 255 a.C., durante a Primeira Guerra Púnica, o cônsul Marco Atílio Régulo foi derrotado pelos cartagineses e escapou com pouco mais de quinhentos dos seus soldados. Da força inicial de 15 mil homens, apenas dois mil sobreviveram à batalha. Esta catástrofe foi apenas uma das mais dispendiosas cabeças de ponte que permitiram a Roma alcançar a dominação mundial. Algumas sociedades mostrar-se-iam tão horrorizadas com as suas perdas que teriam decidido acabar de imediato com a guerra. Mas aos romanos dava-lhes ainda mais determinação para prosseguir.

As atrocidades cometidas pelo exército romano durante a era dos imperadores remontavam a uma longa tradição. Políbio não usa de eufemismos ao descrever os soldados romanos em ação sob o comando de Cipião (mais tarde apelidado de Africano), na Hispânia, durante a Segunda Guerra Púnica. Em 209 a.C., Cipião tinha apenas 28 anos, mas estava a forjar para si uma reputação de líder militar de absoluta impiedade. O alvo era Cartagena (Nova Cartago). Assim que chegaram ao seu destino, Cipião disse aos seus homens para «exterminarem todas as formas de vida que encontrassem, sem poupar ninguém». Políbio explica que o objetivo era infundir terror, e descreve como, numa cidade conquistada pelos romanos, «muitas vezes é possível ver não só cadáveres de seres humanos, mas também cães esquartejados em dois e membros retalhados de outros animais». Como se isto não fosse já suficientemente macabro, Políbio menciona que a destruição de Cartagena foi ainda mais brutal do que o habitual por causa da sua vasta população. Cipião viria a conquistar a admiração de todos graças à subsequente derrota dos cartagineses em Zama, que pôs fim à guerra. Ninguém o considerou um criminoso de guerra, simplesmente porque esse conceito não existia. Era um herói, um modelo a seguir.

"As guerras na Antiguidade não eram para medrosos. Tratava-se de combates corpo a corpo, à queima-roupa, com espadas, punhais e lanças", Guy de la Bédoyère

Apenas alguns anos antes, em 212 a.C., a grande cidade grega de Siracusa, na Sicília, caíra nas mãos de uma força romana no final de um longo cerco. Siracusa havia sido defendida com engenhosas máquinas e mecanismos defensivos inventados pelo brilhante engenheiro e matemático Arquimedes. O comandante romano Marco Cláudio Marcelo ficou tão impressionado que ordenou que a vida de Arquimedes fosse poupada. Enquanto a cidade caía, Arquimedes estava tão absorvido a desenhar diagramas no pó do chão da sua casa, que, quando um soldado irrompeu pela porta à procura de algum espólio e perguntou-lhe quem ele era, Arquimedes respondeu: «Por favor, não perturbes [o meu trabalho].» O soldado, não fazendo ideia de quem ali estava, trespassou-o com a sua espada, mas, provavelmente, tê-lo-ia feito de qualquer forma, mesmo que soubesse quem ele era. Este exemplo de violência gratuita ceifou a vida a um dos maiores génios do mundo antigo, para grande tristeza de Marcelo. No entanto, como Valério Máximo afirma, tudo isto era apenas uma consequência da queda de Siracusa, que havia sido a razão pela qual Marcelo decidira salvar Arquimedes; mas foi também esse mesmo contexto que conduziu à sua morte.

Durante a Segunda Guerra Macedónica (200-196 a.C.), Filipe V da Macedónia e as suas forças testemunharam todo o horror que o gládio romano era capaz de desencadear. Segundo Lívio, os cadáveres de gregos e de ilírios foram «desmembrados [...], sendo os braços decepados juntamente com os ombros, as cabeças separadas do corpo pelo pescoço decepado, as vísceras expostas e outras feridas repugnantes». Não é de admirar que houvesse uma atmosfera de «consternação generalizada»; o próprio Filipe ficou em pânico face à perspetiva de uma batalha contra os soldados romanos equipados com uma arma tão letal. Se isto pode parecer um exagero, a prova de quão brutais poderiam ser os soldados desta guerra proveio de escavações arqueológicas efetuadas em Valência, num local que remonta à captura da cidade pelas tropas de Pompeu, em 75 a.C., contra o governador rebelde Sertório. Alguns dos esqueletos encontrados mostram que os membros das vítimas tinham sido amputados, como havia acontecido em Cartagena. O esqueleto de um homem adulto mostra que este havia sido empalado através do reto por um pilo romano, tendo a arma atravessado o tronco inteiro até ao pescoço. Os seus macabros restos mortais provam que os relatos mais vívidos de historiadores antigos não se reduziam a meras descrições retóricas e gratuitas de atos de brutalidade. Em 82 a.C., Cornélio Cetego, que combatia sob as ordens do ditador Sila, conseguiu persuadir cinco mil homens a sair para o exterior da cidade de Palestrina, na Itália, e a depor as suas armas com a promessa de lhes poupar a vida. Os homens saíram, entregaram as armas e renderam-se. Sila deu então ordens às suas tropas para que os matassem a todos no local. Foram assassinados 4700 homens, e Sila fez questão de que esse facto se tornasse do conhecimento público para que ninguém se esquecesse. Esse foi apenas um dos muitos episódios de toda uma lista de violência que ordenou aos seus soldados que perpetrassem, incluindo a chacina de cidadãos pacíficos, por causa da sua riqueza, e de mulheres, «como se a matança de homens não fosse suficiente para ele».

Por vezes, os soldados romanos eram pagos na mesma moeda. Nem todos os civis se deixavam aterrorizar e subjugar. Em 76 a.C., a cidade romana de Lauro foi saqueada durante a guerra civil na Hispânia entre Sertório e os apoiantes de Sila. Quando um dos soldados de Sertório, já com a cidade conquistada, insultou uma mulher e tentou violá-la, ela arrancou-lhe os olhos; mas, em vez de a castigar, Sertório ordenou que toda uma coorte dos seus homens fosse executada por alegadamente ter cometido atos de «tal brutalidade».

Era muito provável que um soldado, mesmo de alta patente, também acabasse por ser vítima de violência por parte da população civil em tempos de paz. Pollenzo, no norte da Itália, foi palco de um terrível motim durante o reinado de Tibério (14-37). A turbamulta queria que um centurião primus pilus desembolsasse o dinheiro necessário para organizar um espetáculo de gladiadores. Aparentemente, o centurião não concordou, uma vez que a multidão o matou e recusou-se a entregar o seu corpo «até que a sua violência tivesse conseguido extorquir aos seus herdeiros o dinheiro necessário para um espetáculo gladiatório», segundo relata Suetónio. Tibério teve de enviar duas coortes de soldados para impor a lei marcial em Pollenzo, tendo sido aprisionadas muitas pessoas, incluindo os conselheiros municipais. Basta olhar as esculturas militares romanas para ver a glorificação explícita da brutalidade e da violência. Públio Flavoleio Cordo, um soldado da Legio XIIII Gemina, em Mainz, partiu para o outro mundo aos 43 anos, armado com o seu gládio, o seu pilum e o seu punhal pugio12. O mesmo pode ser dito dos auxiliares, talvez de forma ainda mais enfática. Longino era um soldado de cavalaria trácio, estacionado na Britânia logo após a invasão ocorrida no ano 43; morreu alguns anos mais tarde, na sua base em Colchester, que era, na altura, uma fortaleza legionária onde estava aquartelada a Legio XX e respetivas forças auxiliares. Longino foi cremado e homenageado com uma grande lápide que o representa montado no cavalo ataviado com a sumptuosa parafernália decorativa que as forças auxiliares da cavalaria tanto apreciavam. Por baixo do cavalo, um bárbaro acobardado treme de medo, subjugado e humilhado enquanto Longino e o seu cavalo o espezinham numa bravata ostensiva.

Longino não foi um caso isolado. Caio Românio Capito, um soldado de cavalaria pertencente a uma unidade de nóricos estacionada em Mainz, na Germânia, em meados do século i a.C., morreu aos 40 anos, após dezanove anos de serviço militar. É retratado montado a cavalo a esmagar um bárbaro e a apontar-lhe uma lança enquanto um servo ao seu lado lhe entrega outras armas14. Longino e Capito eram auxiliares provinciais e não romanos por descendência. Tinham-se juntado ao mundo romano, instigados pelo seu ardor pela luta. Não muitos anos antes, os seus antepassados haviam sido os mesmos «bárbaros» que eles aniquilavam agora com deleite.

As formas de se vangloriar e de brutalizar o inimigo eram múltiplas e variadas. O retrato póstumo de Longino talvez possa ser considerado um modelo genérico, uma espécie de jactância metafórica e não tanto uma representação das suas façanhas pessoais. Outras unidades militares recorreram a imagens semelhantes. Uma pedra inscrita e esculpida proveniente da Muralha Antonina, na Britânia, mostra Vitória a coroar o estandarte da insígnia da águia da Legio XX, enquanto, no lado oposto, vemos um prisioneiro bárbaro ajoelhado e com as mãos atadas.

César na Gália

Aconquista da Gália por Júlio César, na década de 50 a.C., é uma das campanhas militares mais célebres de todos os tempos. Foi também uma das mais ferozes. Os seus soldados, sempre leais ao seu comandante, faziam tudo ao seu alcance para defenderem os seus interesses. Em 52 a.C., sitiaram a cidade de Bourges, um bastião da tribo dos bitúriges. Tanto os romanos como os seus inimigos demonstraram uma coragem notável no calor da batalha. César ficou muito impressionado com o engenho dos gauleses, que estavam determinados a destruir as torres e as rampas de madeira romanas recorrendo ao fogo. Um gaulês que se encontrava ocupado a atirar pedaços de gordura e pez para o fogo iniciado pelos seus camaradas foi atingido por um pilo disparado de uma catapulta escorpião romana que o matou instantaneamente. Sem hesitar sequer, «um dos companheiros ao seu lado passou por cima do seu corpo prostrado e prosseguiu com o trabalho iniciado», relata César. Para sua grande surpresa, um terceiro homem assumiu esse posto quando o segundo foi morto da mesma forma, e depois um quarto. E assim continuou, até que as chamas que consumiam a rampa foram extintas. Trata-se de um comentário interessante sobre aquilo com que os romanos por vezes se viam confrontados, e César faz questão de salientar que não podia deixar de incluir esse incidente no seu relato.

Mais tarde, consciente de como era vital penetrar na cidade porque o seu trem de abastecimento estava a ser ameaçado pelo líder gaulês Vercingétorix, César desferiu um ataque repentino durante um pesado aguaceiro que distraiu os guardas. Após o cerco e o recente massacre em Cenabum, os seus soldados tinham o sangue a ferver-lhes nas veias. Segundo César, uma vez no interior da cidade, «ninguém foi poupado, nem idosos, nem mulheres nem crianças». Dos 40 mil habitantes, apenas cerca de oitocentos conseguiram escapar e juntar-se a Vercingétorix.

Em 50 a.C., os homens de César estavam ocupados a sitiar a cidade de Uxellodunum, um povoado fortificado no topo de uma colina perto da atual povoação de Vayrac, no sudoeste de França. Os habitantes demonstraram uma coragem e força excecionais enquanto resistiam, mas foram forçados a render-se quando os romanos lhes cortaram o abastecimento de água, escavando o subsolo para desviar as águas das nascentes. Com a intenção de desencorajar todas as outras povoações a resistir da mesma forma, César impôs uma punição, instruindo os seus homens para cortarem as mãos de qualquer gaulês que tivesse lutado durante o cerco.

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