Pedro Cabrita Reis apresenta-se em exposição retrospetiva, de que também é curador, patente nos oito pavilhões da Mitra, em Lisboa. -- Foto: REINALDO RODRIGUES/GLOBAL IMAGENS
Pedro Cabrita Reis apresenta-se em exposição retrospetiva, de que também é curador, patente nos oito pavilhões da Mitra, em Lisboa. -- Foto: REINALDO RODRIGUES/GLOBAL IMAGENS

Pedro Cabrita Reis: “A arte tem o destino ético da liberdade”

Aos 15 anos, já sabia que seria artista plástico. Com o 25 de Abril, que viveu aos 17 anos, reafirmou essa vontade e saiu de casa, a caminho do mundo. Nos pavilhões da Mitra, até 28 de Julho, a exposição 'Atelier' dá-nos a ver mais de 50 anos de trabalho de Pedro Cabrita Reis.
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O fato de linho, impecável de corte, com o colete disposto sobre camisa e suspensórios, constrói a imagem do dandy. Mas esse é apenas o décor pessoal de Pedro Cabrita Reis, artista plástico, que, na substância, navega na inquietação estética e existencial com o desassombro de quem combina o linho e os melhores charutos com a filiação clubística no velho e muito operário Clube Oriental de Lisboa, sedeado bem perto do lugar onde instalou o seu atelier.

A partir de 19 de Maio, nos oito pavilhões da Mitra, em Lisboa (nada mais, nada menos do que 3000 metros quadrados), o artista apresenta-se em exposição retrospetiva, de que também é curador, acompanhada por um catálogo, apoiado pela Fundação EDP, com design de Pedro Falcão e textos de Carlos Vidal, Dalila Pinto de Almeida, João Pinharanda e do próprio. Intitulada Atelier, pode ser vista de 5.ª feira a domingo, entre as 14.00 e as 18.00, e é de acesso gratuito.

Nome grande das Artes Plásticas a partir da década de 1980, Cabrita Reis tem obras suas nas coleções de muitos museus nacionais e internacionais, entre os quais Gulbenkian, Tate Modern The Arts Club of Chicago, a Hamburger Kunsthalle, Serralves, MAAT, S.M.A.K, Culturgest, Pompidou, Culturgest, o CAC Málaga, Kunst Museum Winterthur, Museo Jumex ou Museo Reina Sofia, para além de estar representado em numerosas coleções particulares. Entre as suas intervenções mais recentes, realce para a obra Les Trois Grâces, no Jardim das Tulherias, em Paris, a convite do Museu do Louvre, no âmbito da Temporada Cruzada Portugal-França. Também em 2022, Cabrita Reis voltou a estar presente em Veneza, por ocasião da 59.ª Bienal, apresentando Field, uma obra de grandes dimensões concebida para a Chiesa di San Fantin.

O que é esta exposição, intitulada Atelier, onde expõe 1500 obras, de várias épocas, em oito pavilhões?

Chama-se Atelier porque é formada apenas por obras do meu acervo pessoal. Acresce a esta razão o facto de eu ter organizado e montado esta exposição como se fosse um atelier, que é um lugar de criação, em permanente transformação, com avanços e paragens, com quadros encostados à parede, uns por cima dos outros e esculturas sei lá onde. 

Quase uma oficina…

É uma oficina, com uma espécie de caos original. Quis trazer esse ambiente para a exposição. Quero que as pessoas, ao passear por estes oito pavilhões, sintam que não estão num museu. Não há legendas, por exemplo. Não tenho qualquer espécie de ambição didáctica.

Assume a curadoria. Como é ser curador da sua própria obra?

Sempre que pude escolher os curadores, acabei por selecionar pessoas com quem tinha uma afinidade pessoal, para além da questão profissional e estética. O que faz um curador? Analisa a obra do artista e faz uma proposta que traga ao público uma narrativa – pode ser histórica, disciplinar, filosófico-política, o que se quiser. Ora eu, que sou curador desta minha exposição, não podia fazer outra coisa senão o que eu quero e o que sou: isto é, partilhar com os visitantes esta recusa da pedagogia. O importante é que cada um construa aqui a sua própria percepção do trabalho de um tal Pedro Cabrita Reis, que tem umas coisas nas paredes, ali para Lisboa oriental, num sítio chamado Mitra. Nesta exposição, não há professores. O que há são obras de arte, que falam entre elas no silêncio e dão ao público o que este quiser tirar delas. Isto começa no ponto zero e acaba no ponto infinito no final da exposição.

Isso é muito generoso.

Se há coisa que a arte é é ser generosa porque ela dá-se a si mesma para construir um mundo diferente, sem exigir nada em troca. É preciso é saber olhar, ver e, por que não, ouvir.

Como é fazer isso num tempo em que as pessoas são constantemente bombardeadas com informação díspar, com várias formas e suportes, mas também com muito ruído?

Por isso, é que é ainda mais necessário fazer este trabalho. Mais do que informação, temos ruído, esquecimento, enganos. A informação pressupõe discernimento crítico sobre o seu próprio conteúdo. É propaganda e ruído, com a intenção de levar as pessoas a fazerem isto ou aquilo. A arte, pelo contrário, tem a possibilidade de construir liberdade. Tem esse destino ético. Numa exposição de arte, a única navegação que se exige é o prazer, o encanto, a perplexidade e sempre, mas sempre, a pergunta: o que é e porquê. 

A inquietação como ferramenta artística

A arte pode ser o antídoto contra esse ruído?

Em vez de antídoto, eu diria de forma mais radical, uma recusa. O antídoto pressupõe a existência de uma doença. As pessoas não estão doentes, podem é ser aliciadas para outras formas de ver o mundo. A arte não é uma terapia, ao contrário do que se disse. Dessa recusa do ruído nasce uma clarificação pessoal e uma necessidade das coisas serem mudadas. 

Voltamos à exposição…

Ainda não saímos dela.

Aqui há trabalhos de um Pedro muito jovem…

Desde muito cedo, que tive a clareza de perceber que era este o meu caminho. Não há uma idade certa para se chegar à arte – para dar um exemplo histórico, conhecido de toda a gente, o Van Gogh começou muito tarde na sua vida. Eu sempre quis isto, não tive qualquer outra intenção. Já passei por muitas fases, mas mantenho a inquietação. Recuso a deixar-me ir, um artista não pode baixar os braços, não pode acomodar-se. A inquietação é uma das ferramentas da prática artística – se deixa de a ter, o artista entrega-se. Não precisamos de artistas que se entreguem. A sociedade precisa de artistas que reflitam, que com a informação do passado construam uma ideia de futuro, que se materializa em obra de arte. Depois, esta sai do atelier para o domínio comum. Aí, a sociedade constrói uma ideia de si própria. Quando olhamos para uma sociedade, aferimos os Shakespeares, os Ticianos, os Stockhausen porque é, a partir da criação artística, da música ao Cinema, da Literatura às Artes Plásticas, que percebemos o que somos, quem fomos e porque nos transformámos.

Li uma entrevista sua, em que diz que ser um jovem artista no 25 de Abril, como foi o seu caso, foi ter um vazio de referências nacionais. Era uma página em branco?

Eu faço sempre a comparação com o caso espanhol. Os artistas espanhóis têm uma espécie de enquadramento histórico, que é um mapa de referências constituído por Velásquez, El Greco, Goya, Picasso. Nós nunca tivemos isso. Temos os painéis de São Vicente, o Grão Vasco, mais recentemente, Amadeo de Souza-Cardoso, mas não é comparável. Não vale a pena lamentarmos. É o que é. Temos outras coisas.

Mas essas referências todas, no caso espanhol ou noutros, não podem ser inibidoras?

Só é inibidor para quem não tenha a coragem de os afrontar. Mas a arte não é um produto nacional, ou confinado aos territórios políticos construídos ao longo da História, a arte é transnacional e global. Sinto-me bem porque o Goya é meu, o Rembrandft é meu, o Matisse também. É aí que cada artista encontra as referências e as luzes para que o seu trabalho possa continuar. 

Hoje, essa situação mudou muito porque há maior facilidade em viajar…

No meu tempo não se viajava. Eu vivi a minha adolescência com livros, editados ainda na época do Estado Novo, com estampas a preto e branco. Imagine-se ver Velásquez ou Rembrandt a preto e branco.

O acesso à exposição de Pedro Cabrita Reis é gratuito. De quinta-feira a domingo, entre as 14.00 e as 18.00. -- Foto: REINALDO RODRIGUES/GLOBAL IMAGENS

“O 25 de Abril foi uma avalanche de prazer e força”

E como foi ter 18 anos no 25 de Abril?

As coisas mudaram muito, em avalanche. Quando se tem 17 ou 18 anos, essa avalanche de coisas bonitas (em oposição às coisas hediondas que aconteciam no Estado Novo) foi avassaladora.

Já estava nas Belas-Artes?

Tinha entrado em 1973 e, com a revolução, a Escola esvaziou-se. Já não tinha muitos alunos porque era um território um bocado esquecido, com uns cursos considerados esquisitos. Os pais não deixavam as filhas ir para Belas-Artes porque havia lá uns gajos nus a servir de modelos. Nos anos 80, quando eu e alguns amigos meus começámos a ter muita projeção mediática, é que começou a aparecer muita gente para se matricular em Belas-Artes. De repente, os pais descobriam que aquilo até podia dar dinheiro porque havia uns rapazes que pareciam rock stars, que iam a restaurantes caros e às discotecas da moda. De repente, as Belas-Artes ficaram cheias de gente. Os tempos mudam e ainda bem que é assim. 

Perdeu-se essa alegria dos anos 80?

Há muitas alegrias para cada momento histórico. Nos anos 80, houve essa euforia e fizemos muita coisa porque o contexto político era diferente. Estávamos a consolidar a Democracia num país que estivera afogado numa ditadura fascista durante 50 anos. E a sociedade agarrou isso com as duas mãos, de uma maneira que dificilmente poderia ser analisada por um sociólogo. Foi uma avalanche de amor, prazer, de força, de mudança. A História vivia-se na rua, nos cafés, nos encontros e nos desencontros. 

Não estamos novamente mais fechados?

Não nos estamos a fechar, estamos a ser convencidos, na nossa preguiça, a fazê-lo. Somos os mesmos. A única coisa que mudou foi a nossa disponibilidade para não termos certezas. É sempre bom termos um pensamento que se transforma a cada momento, ter dúvidas, inquietações. As revoluções fizeram-se sempre com as minorias esclarecidas. A sociedade tem sempre esta vocação para se transformar, o ciclo pode ser mais largo, mais curto, a transformação pode ser mais mais radical ou apenas subjacente. A Revolução soviética não foi igual à francesa. A chinesa também não. Todos os dias há pessoas a viver momentos de transformação, mas a questão que se coloca sempre é a de Caim e Abel. Todos os dias enfrentamos o combate entre o bem e o mal, entre a negrura e luz. O que decides? Virar as costas e fingir que nada se passa ou decides agir e dizes vamos lá? O artista está sempre do lado do vamos lá, mesmo que não saia à rua. O artista é um território de transformação e, se quiseres, podes dizer mesmo que o Cabrita disse que é um território de revolução.

Todos? Há aqueles que, a partir de determinado momento, reproduzem a fórmula de sucesso.

É natural. Temos que lhes perguntar.

Sendo curador de si mesmo, como é que escolheu as 1500 obras aqui presentes?

A tentação era pôr tudo na parede mas não se pode pôr tudo na parede porque não há espaço para isso: Para além disso, elas próprias criam um processo de seleção. Uma 413 ao lado da 237 chega à conclusão que é melhor ir falar com a 514. As obras sabem o lugar que ocupam e falam umas com as outras. Antes de mais, temos de partir do princípio de que tudo é igualmente bom porque tudo é igualmente teu. Temos obras que remetem para a História da Pintura, como aquela que remete para Velásquez e a outra que trata o tema São Jorge e o dragão. E, de repente, vamos pôr isto a falar com uma aparente ausência de sentido ou de imagem. A escolha das obras tem a ver com inclusão e ruptura: inclusão de sentidos e ruptura de comunicação. A ideia é criar um terreno que esteja sempre a palpitar, esperando que esse sussurro seja entendido pelas pessoas que visitam. Um som como as folhas das árvores.

Escolheu Marvila para instalar o seu atelier. Mas é natural do bairro de Campo de Ourique?

Nasci na Rua Tenente Ferreira Durão, Campo de Ourique, numa casa que mais tarde teve uma galeria de arte, o que não deixa de ter graça. Ali vivi até aos 17 anos, saí de casa entre o 25 de Abril e o primeiro de Maio, por uma circunstância muito simples: os meus pais eram pessoas muito atentas e cuidadosas, mas tinham vivido toda a vida em ditadura, não eram sequer de esquerda. Tinham uma noção vaga de justiça e liberdade. No dia 25 de Abril, não me deixaram sair de casa porque tinham muito medo. Foi uma questão de 24 horas. Saí de casa no dia 26 de Abril, fui viver para casa de amigos até que, no primeiro de Maio, fui ao quartel da Força Aérea, onde me alistara como voluntário.

Como é que os seus pais encaravam a sua opção pela Artes?

Foram sempre de grande compreensão. Não me recordo de ouvir algum comentário do género já que gostas tanto de Arte, porque não vais para Arquitecto. Na sua simplicidade e modéstia, compreenderam.

E Marvila, como é que lhe acontece?

Vim para aqui em 2006. Eu gostava desta zona da cidade e precisava de um espaço grande. Fiquei encantado. Esta parte de Lisboa, a par com a de Alcântara, constituía uma pequena cintura industrial, com uma cultura operária forte. Fiquei bastante contente de poder fazer a exposição também aqui, neste espaço da Mitra, cheio de História. Eu já tinha um apoio da Câmara Municipal de Lisboa e da Associação de Turismo de Lisboa e vim falar com a Santa Casa da Misericórdia no sentido de ver o que é que eles podiam fazer. Mostraram-me isto e fiquei fascinado. 

A luz é extraordinária.

Uma das coisas que decidi, para além de não incluir legendas, foi não ter luz artificial. Esta exposição está aberta de quinta a domingo apenas entre as 14 e as 18 horas, o que no arco temporal de Maio a Julho permite ter sempre sol. Encanta-me a ideia de se ver as pinturas como elas se viam antigamente. Quando chegava ao final do dia, fechava-se o museu e as pessoas iam para casa. Ainda por cima, tem uma luz que vem do zénite: a luz desce direitinha do céu para cima da arte do Pedro Cabrita Reis. 

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