Juan Fernández y Krohn: uma faca contra o Papa
Ilustração Vítor Higgs

Juan Fernández y Krohn: uma faca contra o Papa

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A baioneta de 37 centímetros, com uma lâmina de 25 centímetros, está hoje guardada numa vitrine do Museu da Polícia Judiciária, ao lado dos despojos bombistas das FP-25. O processo judicial, esse, foi transitoriamente para a Torre do Tombo, em finais de Outubro de 2022, e daí seguirá em breve para o Arquivo Distrital de Santarém. Quanto a ele, vive há mais de 30 anos em Bruxelas, onde se desloca quase diariamente à Biblioteca Real com um laptop debaixo do braço, para escrever no seu blogue diatribes anticomunistas ou textos de louvor a Pinochet e a Videla. Conhecem-no bem por lá. Alguns dos frequentadores mais assíduos, sabendo das suas inclinações político-religiosas, tratam-no amigavelmente por “Torquemada”, perguntam-lhe como vai a saúde.   

Juan Fernández y Krohn, o homem que, às 22h40 do dia 12 de Maio de 1982, tentou agredir ou até matar o Papa no santuário de Fátima, no decurso de uma visita de João Paulo II  a Portugal, tem dito reiteradas vezes que não está arrependido do seu gesto e que ele até obteve o efeito desejado: chamar a atenção do mundo para os desmandos do Concílio Vaticano II, responsável por “uma Igreja muito progressista, muito de esquerda”, e para o maléfico “star power” de Karol Wojtiła, que Krohn nunca reconheceu como Sumo Pontífice da Igreja Católica, Apostólica, Romana. Afirma agora nunca ter querido matá-lo, mas apenas, e em nome das suas “convicções profundas”, praticar “um acto com repercussão mundial”. “Aquilo não foi um crime, foi um acto violento. Foi um acto incorrecto, um acto politicamente incorrecto e fora dos critérios ou normas da democracia e da ideologia em vigor da democracia e dos direitos do homem”, disse o ex-sacerdote à jornalista Rita Marrafa de Carvalho numa entrevista concedida à RTP, em 2/11/2022. Anos antes, em 27/4/2010, afirmara a outra repórter da televisão pública, Rosário Salgueiro, que se inspirara no atentado contra Anwar al Sadat, morto em 6 de Outubro de 1981 por elementos da Jihad Islâmica. Ao assistir ao assassinato do presidente egípcio, e vendo o “espírito de sacrifício” da religião islâmica, perguntou-se porque não poderia existir a mesma atitude no catolicismo, sobretudo por parte daqueles que, como ele, entendiam que a Igreja estava a ser “vítima de uma demolição” e que a “honra de Nossa Senhora” fora violada pelo Papa polaco, do qual chegou a afirmar ter mantido ligações secretas ao KGB.  

Meu dito, meu feito. Poucos dias antes do 13 de Maio de 1982, comprou uma baioneta de uma Mauser no marché aux puces da Porta de Clignancourt, em Paris, e, no dia 11 de Maio, pelas 10 da manhã, apanhou na Gare de Austerlitz o comboio até Fátima. O bilhete, note-se, havia sido adquirido dois meses antes, na estação de S. Lazare, sinal de que premeditara tudo. Tinha estado em Fátima muitos anos antes, em 1972, e agora, ao regressar ao santuário, procurou alojamento num endereço dado por um sacerdote tradicionalista francês. Numa livraria religiosa, comprou um livro sobre o padre Maximiliano Kolbe, por quem tinha especial devoção, e três postais em branco. Num deles, escreveu: “Fátima é incompatível com a forma de diálogo polaco”. No outro, “Nossa Senhora disse: se a Humanidade não se converter, a Rússia espalhará os seus erros pelo mundo: comunismo, Pax, Znak”. E no terceiro, enfim, reproduziu em latim uma frase do Livro do Apocalipse: “Um segundo Anjo continuou: caiu, caiu Babilónia a Grande, que a todas as nações deu a beber o vinho da sua fornicação”. Foi à estação dos correios de Fátima, escreveu uma carta para alguns amigos polacos residentes em França, na qual, sem fazer qualquer referência ao atentado, lhes explicava as suas discordâncias face a Wojtiła.  

Depois, dirigiu-se à esplanada do santuário, eram umas 15h30 da tarde. Vestido de preto e de cabeção, conseguiu passar os cordões de vigilância, esteve junto de um grupo de freirinhas que lhe deram de comer e de beber, até lhe ofereceram uma cadeira para que descansasse. Trocou duas palavras com um militar na reserva, repatriado de Timor, que criticava a acção aí desenvolvida pelos Padres Brancos e, por pouco, não foi ultrapassado por um grupo de cadetes da Academia, que conseguiu contornar. Colocado na fila da frente, rezou, meditou, acompanhou os cânticos em português (Caminhamos para o Vosso Altar…), aguardou o homem de branco. Enquanto esperava pelo Papa, ia pedindo à Virgem que lhe desse um sinal que o seu lhe gesto desagradava, mas, para agravar as coisas, da intervenção de João Paulo II não veio qualquer palavra sobre o comunismo ou sequer sobre a Rússia, ao contrário do que Nossa Senhora pedira; menos ainda qualquer revelação sobre o terceiro segredo, o qual, na singular perspectiva de Krohn, iria pôr a nu os pontificados de João XXIII e de Paulo VI e a sua “maldita obra de destruição”.  

Foi-se aproximando aos poucos e, mais perto do anel de segurança máxima, enquanto o coro entoava Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós pecadores!, acercou-se de João Paulo II, retirou a baioneta de uma pasta preta, onde a tinha embrulhada num pulôver e num cachecol, tentou desferir o golpe. Não se sabe ao certo se teria intenção de matar, coisa que numas entrevistas negou, noutras admitiu sem problemas. Em declarações à revista Tiempos de Hoy, transcritas pelo historiador José de Carvalho, afirma que “queria matá-lo, mas não sou um assassino”, acrescentando que jamais usaria armas de fogo com esse intuito e “muito menos iria usá-las no Santuário de Fátima, o Santuário da Virgem, que é o coração da Cristandade. Não queria profanar o santuário, nem ferir ninguém, só pretendia eliminar o Papa”, gesto que classificou de “profético”, comparando-se ao centurião romano que trespassou o corpo de Cristo com uma lança: “eu estava a cumprir essa missão. Eu sou o centurião romano” (cf. José de Carvalho, João Paulo II e Portugal, Lucerna, 2014, p. 47).

Não foi esse o entendimento do comissário Azevedo, o qual, ao vê-lo na iminência de se acercar perigosamente do Santo Padre, passou-lhe uma violenta rasteira e atirou-o para trás, indo Krohn parar ao corpulento regaço do agente Moura, segurança pessoal do primeiro-ministro, o qual, em conjunto com o citado Azevedo e o chefe Ramalhete, lhe torceu e imobilizou os braços com certa veemência, puxando-lhe a batina. No calor da refrega, a pasta preta e um terço castanho caíram pelo chão, soltando-se o cabeção eclesiástico do aguerrido sacerdote. Processou-se tudo numa questão de segundos e a uma velocidade tal que, à distância, as câmaras da RTP nem conseguiram captar a cena por inteiro. Dos arquivos só restam hoje imagens do after, um homem de olhar ausente e traje desalinhado, rodeado de polícias de bigode e ar façanhudo, esses sim os centuriões daquela jornada. 

Ao ser detido, Krohn terá bradado, segundo o próprio, “Morte ao comunismo! Abaixo o Concílio Vaticano II!”. Ao Papa segredaram que a algazarra se devera a um sacerdote que se sentira indisposto e por isso Wojtiła deteve-se e abençoou-o com o sinal da cruz. Krohn diria mais tarde que ficou fulminado pelo olhar do pontífice, ainda que, na sua autobiografia, garanta que não perdeu o fôlego, gritando a plenos pulmões: “Acuso-te de destruíres a Igreja, de traíres a Cristandade, a Polónia e o Solidariedade.  Viva Portugal católico, morte ao comunismo, abaixo o Concílio Vaticano II!”. Nos vídeos, não há registo disso, como não há registo de que tenha dito duas vezes, ao passar pelo cardeal Casaroli, o artífice da Ostpolitik, “Casaroli, assassino, traidor!” 

Segundo o relato de Krohn, foi conduzido à Casa de Retiros de Nossa Senhora do Carmo e aí abordado por um prelado português em fúria, que lhe queria rasgar a sotaina, aos gritos: “Tu não és padre! Tu não és digno de usares a sotaina!”, e também pelo corpulento Paul Marcinkus, “o gorila de Wojtiła”, que lhe perguntou porque fizera aquilo (sobre este ponto, referindo as presenças de Mons. Ferreira de Melo e de Mons. Marcinkus, cf. J. Geraldes Freire, João Paulo II, Peregrino de Fátima: Documentário Descritivo da Visita a Portugal, Santuário de Fátima, 1983, p. 72). O Papa, entretanto, regressara já aos seus aposentos, onde, à velha maneira eclesial portuguesa, tinham colocado três cobertores e um aquecedor eléctrico, para o caso de vir frio; na manhã seguinte, ao almoço, peixe cozido, bifes de várias carnes, acompanhados de arroz e espinafres (cf. Paulo Aido, O Peregrino de Fátima. Os Bastidores das Viagens de João Paulo II ao Nosso País, Prime Books, 2008). 

Pouco depois, o padre Vítor Feytor Pinto, vogal da Comissão Nacional para a Visita do Papa, teve um breve encontro com a imprensa, a quem transmitiu o pouco que até então se sabia. Levado para o posto da PSP de Fátima, Krohn foi aí interrogado durante três horas, e, cerca das três e trinta da manhã de dia 13, foi transferido para Lisboa, para as instalações da PJ na Gomes Freire. Pôde enfim dormir o sono dos justos, ciente da missão cumprida. “A melhor noite de sono da minha vida. Estava muito cansado e dormi como um bebé”, dirá, anos depois. 

Quanto à polícia portuguesa, boas recordações: “não me posso queixar, podia ter sido tudo muito pior. A Polícia Judiciária respeitou-me”. O mesmo não diria da prisão de Vale de Judeus, onde cumpriu pena, e que qualifica como “um inferno horrível”, mas, uma vez mais, não por causa dos portugueses, mas de outros reclusos espanhóis. Aí conheceu “pessoas de honra e de dignidade” e não guarda qualquer rancor a Portugal e ao seu povo. 

Juan María Fernández y Krohn nasceu em Madrid no dia 24 de Junho de 1949 (há quem fale em 1948 ou 1950), e é filho de uma família de classe média de simpatias direitistas. Seu pai, engenheiro aeronáutico da Força Aérea espanhola, era natural de uma aldeia perto de Jaén, na Andaluzia, a qual, segundo Krohn, fora palco dos desmandos dos rojos durante a Guerra Civil espanhola, que aí mataram sacerdotes, incendiaram igrejas, mortificaram os crentes. Sua mãe nascera em Madrid e era filha de um armador naval vindo da Noruega, Johan Krohn, que se fixara em Sevilha e, depois, na capital espanhola, onde chegou a decano da colónia norueguesa aí residente. Com três irmãs e um irmão, que também seguiu a via do sacerdócio, Juan pouco ou nada os menciona na sua autobiografia, a qual é um documento de invulgar interesse para compreendermos o seu percurso, a cada dia mais radical e agreste. 

A dado passo dessa obra, Juan María revela um facto a que não se tem dado o devido relevo, o abuso sofrido, aos 10 anos de idade, na aldeia natal de seu pai: “aconteceu-me algo tão grave na minha vida que não quero passar em silêncio. Amigos muito mais precoces do que eu roubaram-me a inocência, fazendo-me descobrir de maneira atroz, odiosa, brutal, os segredos da vida. Foi uma espécie de violação moral, espiritual. Foi também, muito provavelmente, o dia mais triste da minha vida. Ficou-me uma profunda amargura, mas também uma justa contrapartida de misericórdia divina, uma profunda estima pela virtude da pureza, que entretanto eu iria ferir mais tarde, e da inocência admirável das crianças”: cf. Padre Krohn, Acuso o Papa. Em Defesa do Terceiro Segredo de Fátima. O Atentado, Edição do Autor, 1982, p. 25).   

Em Madrid, estudou, com boas classificações, nas Escolas Pías de San Fernando do bairro de Argüelles, no coração da capital espanhola, onde tinha missa diária, exercícios espirituais e castigos corporais, os quais, segundo ele, não o marcaram por aí além. Enquanto isso, assistia com pesar aos avanços do século: a invasão da Hungria, em 1956; a vinda de Eisenhower a Madrid, em 1959, reveladora do isolamento espanhol; o crescendo de secularismo, patente na perda progressiva da afluência às procissões da Semana Santa; o magistério do cardeal Tarancón, uma das suas bêtes noires. No Verão de 1965, passaria pela OJE, a organização das juventudes espanholas, e, dois anos depois, presenciou com horror a “epidemia de peste do Maio de 68”. Em 1966, no Verão, fez uma longa viagem de barco perlo norte da Europa, na companhia do tio, comandante do navio; em Liverpool, em Glasgow, em Copenhaga e na Suécia pôde aperceber-se do flagelo dos Beatles e dos “efeitos corruptores que a “beatlemania” tinha produzido na juventude desses países”, podridão moral que o Concílio Vaticano acolhera e a que dera alento. O desprezo pelo rock não se estendia, porém, ao mundo do futebol, onde Krohn era um fervoroso adepto do Real Madrid e da Selecção de Espanha. No campo íntimo, dirá que, entre 1967 e o Outono de 1974, viveu “mergulhado num banho febril impureza - masturbações e mesmo pensamentos incestuosos”. 

Matriculou-se em Economia, na Universidade Complutense, quando tinha 17 anos. Já então mostrava inclinações definidas, destacando-se como figadal anticomunista e militante “febril” da Frente de Estudiantes Sindicalistas, falangista e católica, por onde passaram também José María Aznar e o actor Juan Diego. Figura conhecida nos meios universitários do seu tempo, devido à sua “militância ardente, mas não violenta”, como dirá o El País, de 14/5/1982, concluiu Económicas com elevadas notas, acabando também por licenciar-se em Direito. Mas, apesar de ter ingressado na Escola Oficial de Periodismo de Madrid, não prosseguiu os estudos de jornalismo. 

Em Setembro de 1971, foi acometido de uma grave depressão nervosa, cujos sinais já se haviam manifestado tempos antes. Os pais levaram-no a um psiquiatra, andou medicado vários meses, datando daí a sua aversão visceral aos métodos da psiquiatria e, sobretudo, da psicanálise de Freud. Por essa altura, foi com uns amigos a El Palmar de Troya, na Andaluzia, onde Clemente Domínguez, um profissional de seguros de 23 anos, garantia ter visto a Virgem Maria e dezenas de santos, o que o levaria mais tarde, em Agosto de 1978, logo após a morte de Paulo VI, a proclamar-se papa com o nome de Gregório XVII e a fundar a Igreja Palmariana, que canonizou, entre outros, José María Escrivá de Balaguer, Francisco Franco, José António Primo de Rivera, Luis Carrero Blanco e Cristóvão Colombo (na década de 1990, Domínguez foi acusado de abuso sexual por vários sacerdotes e freiras da sua Ordem, crimes que acabou por reconhecer e dos quais pediu perdão em 1997; faleceu em 2005, aos 58 anos, poucos dias antes de João Paulo II). Além de Clemente Domínguez, Krohn conheceria também, por essa altura, uma vidente andaluza, esposa de um advogado de Sevilha, que Juan María garante ter visto em transe místico, a espumar sangue pela boca.     

Foi nessa época que conheceu também os brasileiros ultraconservadores do TEP - Trabalho, Família e Propriedade e que começou a dar-se com alguns clérigos e leigos integristas da América Latina, com os quais foi em peregrinação a lugares de aparições marianas, como Garabandal, San Damiano, em Itália, Kerizinen, em França, ou Fátima, naturalmente. Em 1973, a queda de Allende e a subida ao poder de Pinochet seriam “uma das maiores alegrias da minha vida”. Com a Espanha em ebulição, regozijou com o facto de um grupo de extrema-direita ter atacado com violência os quadros de Picasso exibidos numa galeria de arte em Madrid, mas ficou de rastos com o atentado contra Carrero Blanco e com a presença de sacerdotes progressistas entre os implicados no “processo dos 101”. Como se não bastasse, assistiria com horror à legalização do Partido Comunista de Santiago Carrillo, com o beneplácito do novo rei Juan Carlos. 

A cada dia ficava mais radical e contra mundum, detestando o Concílio, o Papa, a democracia, o modernismo. Numa viagem a Paris, percorreu as igrejas e os monumentos da Cidade-Luz, mas recusou-se a visitar a Torre Eiffel, símbolo das tragédias do progresso. Com um amigo, andaria de Fiat 600 pela velha França, em busca das igrejas e dos mosteiros da Idade Média. Falava, já então, do “carácter substancialmente anti-religioso da Revolução Francesa” e era um leitor devoto de Joseph de Maistre.  

Em 9 de Novembro de 1974, deslocou-se pela primeira vez a Écône, no cantão suíço de Valais, onde, pouco antes, o arcebispo Marcel Lefébvre havia fundado a Fraternidade Sacerdotal de São Pio X. Será justamente Lefébvre a ordená-lo sacerdote da Fraternidade, tendo Juan Krohn celebrado a sua primeira missa no Hotel Meliá Castilla, em Madrid, na presença do próprio arcebispo - e, note-se, numa sala alugada pelo pai do novel sacerdote. Na missa inaugural, rezou por três intenções: a memória dos caídos pela fé “na nossa cruzada de 1936”; a memória do cardeal Segura; e o antimodernismo. 

Depois disso, passou uma larga temporada na Argentina, foi a seguir para o Brasil, esteve na Colômbia e no México, sempre ligado à Fraternidade de São Pio X, da qual seria responsável por duas comunidades, uma na região de Paris, em Pontoise, outra em Ruão. Escreveu então um texto muito crítico de Charles Maurras, o “apóstata”, distanciou-se de São Tomás de Aquino, elegeu como figuras de devoção Joaquim de Fiore e Savonarola. Era acérrimo inimigo do diálogo cristão-marxista, de quaisquer entendimentos com os países do Leste comunista, da diplomacia dos direitos humanos do Presidente Carter, dos acordos de Helsínquia, de tudo, enfim, o que lhe cheirasse a transigência e a compromisso. Profundamente militarista (“sempre tive uma grande admiração pelo verdadeiro espírito militar”), orgulhava-se de ser filho de um oficial da Força Aérea, de ter passado a juventude em residências para militares, de ter andado na tropa, dos seus interesses pelas Cruzadas e pelas antigas ordens de cavalaria, com destaque para os Templários. Foi deles que se lembrou, bem como de Gregório VII e da Ordem de Calatrava, quando, vestido de sotaina, se envolveu ao murro com um jovem punk que, no comboio para Suresnes, se recusara a pagar o respectivo bilhete, acontecimento que teve em Krohn o efeito de uma epifania.      

Em 1979, acabou expulso da Fraternidade de Lefébvre, alegadamente por ter “sinais de instabilidade mental” e por criticar a excessiva tibieza do arcebispo no confronto com João Paulo II. Juntou-se então a uma comunidade sedevacantista, os radicais dos radicais, que defendem que a Santa Sé está vaga e que, desde João XXIII, pelo menos, todos os papas são, na realidade, uns impostores. 

Viajou até à Polónia em Julho de 1981, tentando avistar-se em Gdansk com Lech Walesa, mas achou o movimento Solidariedade demasiado marcado pelo desprezível “espírito do Maio de 68”. Por essa altura, começou a planear matar o Papa João Paulo II, chegando a pensar fazê-lo em Roma, nas cerimónias da Semana Santa. Meses depois, comprou em Paris um sabre-baioneta da Primeira Guerra Mundial (o Laboratório da Polícia Científica da PJ concluiu que o sabre tinha inscrito, em caracteres tailandeses, a data de 2445 do calendário budista - 1902 da era cristã -, data do fabrico pelas forças armadas do Sião, e que tinha um “apreciável poder de corte”). Afiou a espada, fez uns exercícios com ela, arma, ensaiou ao espelho os golpes que contava dar no Santo Padre e, depois, veio para Portugal. Durante o dia 12 de Maio, fez um reconhecimento exaustivo do santuário de Fátima, de onde, confessa, não esperava sair vivo: “Estava cheio de fiéis. Fátima é um centro comercial à custa das aparições. Fiz o reconhecimento do lugar durante o dia todo. Estava nervoso, não sou de mármore, mas sem perder o controle. Fiz isso com intencionalidade suicida”, dirá ao El País, de 27/10/2020.

Um ano antes, na Praça de São Pedro, João Paulo II sofrera uma grave tentativa de assassinato às mãos do turco Mehmet Ali Agca, fugido de uma prisão de Istambul, onde cumpria pena por ter matado o jornalista de esquerda e activista dos direitos humanos Abdi Ipekçi, editor-chefe de um dos principais diários do país, o Milliyet. Agora, era a vez de Juan María Krohn. O então secretário de João Paulo II, Santisław Dziwisz, hoje arcebispo emérito de Cracóvia, garante que Wojtiła chegou a ser ferido e, quando chegaram à noite à Casa de Nossa Senhora do Carmo, havia vestígios de sangue nas vestes papais, algo que Krohn já negou com veemência. Entrevistado em 2010 pela RTP, Manuel Ramalhete, o chefe da polícia que imobilizou Krohn, diz que o sangue no local foi de um colega seu quando este desarmou o padre e lhe tirou o sabre, mas uma “coisa insignificante”. Krohn, ao invés, garante que o sangue era seu, que ficara ligeiramente ferido quando o derrubaram, mantendo-se, pois, o mistério de saber se o sangue derramado em Fátima, naquela véspera de 13 de Maio, era do Santo Padre, do sacerdote que o tentou matar ou do agente da polícia que impediu tal feito. 

O caso “emocionou profundamente o país e não só os católicos”, afirmou Mário Soares nas suas memórias. Do lado de lá do Atlântico, Ronald Reagan diria que “graças a Deus, não aconteceu nada ao Papa” e o primeiro-ministro Pinto Balsemão fez uma comunicação ao país em que manifestou “a total repulsa e a consternação do governo português” pelo inaudito desconchavo. O ministro da Administração Interna, Ângelo Correia, não se mostrava convencido com a tese de que Krohn actuara sozinho e aventou a hipótese de um complô internacional homicida, enquanto um jornal católico de Seia assegurava que, na carteira do padre, tinham sido encontrados centenas de dólares e de marcos, a paga do seu hediondo crime. À porta da Gomes Freire, o repórter da RTP definiu Krohn como um “fanático conservador oposicionista da acção liberal empreendida pelo Sumo Pontífice”, ao passo que o Voz de Fátima, na sua edição de 13/6/1982, descreveu-o como “um pobre sacerdote espanhol toldado por um fanatismo incompreensível”. Na Alemanha, em Munique, o Deutsche Nationale Zeitung garantia que havia fortes suspeitas de que Moscovo estava por detrás do atentado e, no mesmo sentido, a Mensagem de Fátima, em artigo de M. Dias Coelho, referia que Krohn era o homem ideal para os que tinham armado Ali Agca. No triunfo das polícias, houve, como sempre, disputas corporativas, com o ministro Ângelo Correia a felicitar a acção dos homens da PSP, mas o jornal Il Tempo, de Roma, a atribuir o êxito da neutralização de Krohn ao comandante Camillo Cibin, chefe do Serviço de Vigilância do Vaticano, uma falsidade que ainda consta da entrada deste na Wikipédia italiana. 

Antes sequer da visita de João Paulo II, havia temores sobre um eventual atentado, a ponto de, como nos conta o jesuíta Fernando Leite, uma criança ter enviado para o Secretariado Nacional da Cruzada Eucarística, de Braga, uma pungente carta em que dizia: “passei pela igreja e pedi ao Senhor para que o Papa não fosse ferido em Portugal”. Leite relata ainda o caso de uma senhora solteira, de meia-idade, que perguntou ao seu confessor se poderia oferecer a sua vida para que o Santo Padre não fosse atingido por qualquer atentado enquanto estivesse em solo pátrio, tendo o sacerdote afirmado, bonacheirão, que não era necessário tal sacrifício, “tão amigo e favorável era o ambiente de Portugal para o Vigário de Cristo” (cf. Fernando Leite, O Papa em Portugal, Apostolado da Oração, 1982, pp. 141-145).  

No dia 20 de Outubro de 1983, uma multidão numerosa reuniu-se à porta do Tribunal de Ourém para assistir à primeira sessão do julgamento do padre espanhol. Centenas de pessoas, um festival, cumprindo a boa e velha tradição medieva dos pelourinhos e das execuções públicas, a qual, infelizmente, tem vindo a perder-se muito no nosso país: fruto da urbanização do país e dos novos divertimentos proporcionados pela Internet e pelas redes sociais, o fenómeno dos populares justiceiros à porta de tribunais encontra-se hoje em franco declínio, sendo substituído por uma outra realidade, bem menos expressiva e eloquente, a dos “lesados”, ou seja, gente com interesse pessoal e directo no tema sub juditio e no desfecho da causa, sem a genuinidade justicialista dos velhos tempos. Como é da praxe, os jornalistas entrevistaram alguns dos presentes à porta do Tribunal Judicial de Ourém, tomando a temperatura aos ânimos, captando o que dizia a vox populi, cujo veredicto oscilou entre “é um fanático, um fanático”, “é maluco, ou estava drogado ou era maluco com certeza” e, enfim, “aquilo era cortar-lhe o pescoço e mandá-lo ao fundo do mar”. Outros opinaram que o acto de Krohn “não foi só uma provocação ao Santo Padre e à Igreja portuguesa e à Igreja do mundo, como aos portugueses” e uma portuguesa mais cordata, ouvida pela RTP, sustentaria que “uma pessoa tão culta, como ele é, acho que ele não tinha nada que agir daquela maneira”. O arguido, de seu lado, não desiludiu, apresentando-se in court com bíblica barba e os pés descalços, vestido de sotaina verde com o símbolo vermelho do profeta Ezequiel, cingida por uma faixa vermelha, em jeito de homenagem a todos quantos “se bateram contra o comunismo”. A dada altura, terá mesmo puxado de um isqueiro para tentar queimar um poster vermelho com a figura de João Paulo II ao lado de uma foice e de um martelo. Quando ouviu a sentença, desatou aos gritos “Fantoche! Comunista! Assassino!”, o que lhe valeu mais três meses de cadeia e uns quantos dias de multa. 

Vinha acusado da prática de três crimes - ofensa a chefe de Estado estrangeiro, tentativa de homicídio qualificado e posse de arma proibida - e o colectivo dos juízes, integrado pelos magistrados Políbio Flor, António dos Santos Cabral e Joaquim Soares Rebelo, condenou-o a seis anos e meio de prisão efectiva. Foi defendido por um simpático advogado octogenário, o dr. José Maria Lopes Perdigão, a quem Krohn proibiu que explorasse uma linha de defesa com base na sua insanidade mental. O arguido, de resto, tomou nas mãos o seu caso, optando por sustentar, numa abordagem kamikaze, que o tribunal não tinha competência para o julgar. Contou com três testemunhas vindas de França, que atestaram o seu bom carácter, mas a Fraternidade do arcebispo Lefébvre afastou-se prudentemente dele, e “lamentou o incrível comportamento de um dos seus antigos sacerdotes, condenando este fanatismo obcecado”.  

Na Penitenciária de Lisboa, sempre que passava pelos corredores, era chamado de “assassino!” e, segundo conta, chegou a ser violentamente agredido e a correr perigo de vida. Na véspera de Ano Novo de 1984, já em Alcoentre, seria punido e proibido de sair para a ceia, já que, considerando-se um preso político, se recusara fazer trabalho prisional. Cumpriu metade da pena: obteve a liberdade condicional em 21 de Novembro de 1985 e a definitiva, com expulsão do país, em 21 de Maio de 1989. Garante que, poucos dias antes de ser libertado, foi contactado por um enviado do Patriarca de Lisboa, propondo-lhe ser reintegrado no sacerdócio, o que recusou, história que, no entanto, parece pouco credível, já que, segundo os cânones 1331 e 1370, § 1º, do Código de Direito Canónico, por ter usado de força contra o Papa foi automaticamente excomungado, sem necessidade sequer de julgamento, e perdeu os direitos de receber ou conferir sacramentos. Após ter saído da prisão, deambulou dois meses pela Europa, acabando por se fixar na Bélgica. 

Escreveu um livro autobiográfico sobre o atentado, por cá publicado com o título Acuso o Papa, traduzido por Metzner Leone, prolífico jornalista e autor dos anos 1940-1950, que no pós-25 de Abril se destacou pela autoria de polémicas obras contra o novo regime, e prefaciado por Paradela de Abreu, um dos líderes do Movimento Maria da Fonte, que no Verão Quente de 1975 incendiou diversas sedes e centros de trabalho do PCP no norte do país.  Poucos dias depois de Krohn ser preso, Paradela de Abreu desafiara-o a escrever aquele depoimento e, aos jornalistas, disse que a obra de Krohn versava o terceiro segredo de Fátima e, mais precisamente, a ameaça de uma guerra nuclear desencadeada pela União Soviética, risco que bem justificava que o Papa Wojtiła revelasse o segredo oculto, preparando o Ocidente para a decisiva batalha contra o mal vermelho. 

Em resultado do atentado contra o Papa, os pais de Juan Krohn, que vieram a Lisboa no dia seguinte ao incidente de Fátima e que com ele ainda estiveram na Judiciária, deixaram de lhe falar. Uma das suas grandes mágoas, diz, é o pai ter morrido sem se terem reconciliado. Segundo a imprensa, quando ainda estava preso iniciou um relacionamento amoroso com Maria Judite Lorena, uma portuguesa de 43 anos, divorciada, mãe de dois filhos, membro dos Adventistas do Sétimo Dia. Terão pensado casar na cadeia de Vale de Judeus, que Maria Judite frequentava por ter um filho aí preso, mas a fuga de informação e a publicidade gerada, que consideraram contrária ao “sentido altamente espiritual do enlace”, levou-os a desistir do intento. Ele, por seu turno, distanciou-se da Igreja, abandonou o sacerdócio, casou civilmente (diz-se que com uma jornalista portuguesa que cobriu o seu caso), divorciou-se, teve um filho de um relacionamento com uma belga flamenga, de quem se separou também. 

Entretanto, na Universidade Livre de Bruxelas, concluiu um mestrado sobre história do cristianismo, o qual considera um “papel sem valor” já que lhe abriu poucas ou nenhumas perspectivas profissionais. Com o diploma de Direito, mas omitindo os antecedentes criminais (teve também, parece, um processo por falsificação de documentos), conseguiu inscrever-se na ordem dos advogados de Bruxelas, mas acabou expulso não muito depois: na sequência de comentários anti-semitas feitos num diário flamengo, abriram-lhe um processo disciplinar e, em sua defesa, o antigo sacerdote não achou melhor do que agredir o decano dos causídicos bruxelenses. 

Tendo dificuldades em pagar até o aluguer do seu quarto, acumulou uma série de trabalhos precários, como contabilista, empregado de limpezas, jornaleiro numa plantação de verduras bio, mecânico de bicicletas. Em 1996, foi acusado de incendiar uma sede do Herri Batasuna e, no dia 16 de Maio de 2000, aquando de uma visita dos reis de Espanha a Bruxelas, furou o cordão de segurança e, talvez por engano, desatou a correr em direcção aos monarcas belgas, mas foi interceptado a tempo pela polícia e retirado do recinto, aos gritos de que ele não matara o Papa, mas Juan Carlos liquidara o irmão a tiro, o que lhe valeu ser condenado a cinco anos de prisão. Em 2019, os tribunais belgas deram provimento a um recurso seu e permitiram que voltasse a frequentar a Biblioteca Real de Bruxelas, de onde havia sido expulso por alegados assédios sexuais nas suas instalações. Hoje, ao que parece, vive em condições espartanas num quarto de estudante da Universidade Livre de Bruxelas e prepara ou já concluiu um doutoramento sobre o escritor Francisco Umbral, enquanto se mantém um activo bloguista (“a Internet foi para mim uma autêntica revolução, mudou a minha vida”, diz, rendido aos encantos do modernismo e do progresso), além de autor de livros panfletários sobre a memória da Guerra Civil ou obras autobiográficas, como Krohn, o padre papacida - Confissão e Apologia

Regressou a Fátima em 1993, num périplo que qualifica de “turismo religioso”, facto tanto mais singular quanto, do mesmo passo, diz ser agnóstico (mas não ateu), e refere que, na sequência do atentado contra o Papa, se afastou “desse mundo de crenças que herdei da minha educação clerical católica romana”. Não sou crente”, garantiu, ainda que noutras entrevistas afirme que continua a ser católico e que declinou mesmo vários convites de amigos belgas e holandeses para se converter ao protestantismo. Assevera, de igual modo, que Roger Garaudy o desafiou a converter-se ao islamismo, proposta que rejeitou com um argumento curioso: “sou de uma família cujas raízes católicas se perdem na noite dos tempos. Tive, inclusive, mártires durante a guerra” (El Mundo, de 19/10/2008). Continua a entender que foi condenado por razões políticas, que pagou pelo seu “rótulo de extrema-direita” e pelo timing do seu julgamento, ainda muito próximo dos calores esquerdistas da Revolução de Abril. Não se mostra arrependido, mas diz que não voltaria a repetir o gesto de Fátima. 

Santos Cabral, um dos juízes que o condenou, considerou há pouco que o processo de Juan María Krohn foi “o julgamento mais importante em termos internacionais que se efectivou no nosso país” e, não por acaso, nas II Jornadas de Direito Criminal da Comarca de Santarém, realizadas por ocasião dos 40 anos do atentado, em Outubro de 2022, o caso foi alvo de uma exposição documental e recordado amiúde, até com depoimentos de clérigos, como Luciano Guerra, que na altura não se apercebeu do incidente, mas qualifica Krohn como “tresloucado”, e de Serafim Ferreira e Silva, que diz ter visto “um burburinho, uma agitação”, mas nada mais do que isso (cf. Jornal da Madeira, de 22/10/2022). 

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Espírito atormentado, fruto de vicissitudes íntimas que somente adivinhamos, filho de uma combinação explosiva entre a memória traumática da Guerra Civil espanhola e do catolicismo integrista francês, Krohn tem revelado, em entrevistas, um grande orgulho no seu filho, Niels Manuel, o qual, segundo ele, conhece a atribulada trajectória de vida do pai, mas não o recrimina por isso (em contrapartida, Krohn prometeu-lhe nunca mais se meter em sarilhos). Talvez o rapaz, hoje um homem feito, com mais de 30 anos, seja a melhor obra que Juan María fez nesta terra, onde tem deixado uma pesada marca, para os seus semelhantes e sobretudo para ele próprio. O seu aparatoso gesto, com que quis impressionar o mundo, nem sequer é hoje mencionado nas grandes biografias de João Paulo II. 

Prova de vida (44) faz parte de uma série de perfis 

Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.

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