José Cid: um génio do bom de mau
Já era tempo, mais do que tempo, de pararem com essa bambochata do “Elton John português”, pois o José Cid tem o seu valor próprio e autónomo, ancorado ou melhor estribado num milhar de músicas de antologia que já venderam para cima de três milhões de discos, que lhe renderam mais de 40 discos de ouro, prata ou bronze, que estiveram nos tops de vendas da Suécia, da África do Sul ou da Austrália e que, sobretudo, acima de tudo, ressoam nos corações nostálgicos deste país que é o nosso, seja o das gerações mais antigas, que o aclamaram na sua ascensão fulgurante, seja os dos moços mais novos, que o acompanham no planalto onde hoje se encontra, e que agora se reparte entre o circuito da emigração, queimas das fitas, bailaricos de província, festas de empresas e shows televisivos de domingo à tarde.
Nada disso deslustra, como é óbvio, o muito talento e a não menor garra deste compositor e intérprete nado à Chamusca, que nos deu cousas sagradas como uma Anita-que-não-era-bonita, uma macaca com cara de sacana (e que comia bananas debaixo da cama), uma cabana de praia num canavial uivante, uma criança de tranças pretas que caçava borboletas e que depois fica muito velhinha ou, enfim, um cigarrito fumado na 42nd Street, debaixo da neve de New York City (e com referência a Sunset Boulevard, que só por acaso fica na Califórnia, a 3.396 quilómetros de distância). Depois, como é sabido, o artista fez-se fotografar em pêlo, ou pêlos, armado em macaco, todo gorilão, com um disco de oiro a cobrir-lhe as partes (gagas) e desde então, digamos, o bom-gosto em Portugal nunca mais foi tema sério.
É bom, é mau, pior que péssimo? É o que temos. Cid faz parte de nós, acompanhamo-lo desde crianças, temos assistido com gosto e fascínio às transformações históricas do seu capachinho, que ao início era negro brilhante, asa de corvo, e hoje está mais acinzentado e grisalho, mercê do avançar das idades, as nossas e a dele (“o cabelo é meu… fui eu que o paguei”, disse o bicho ao Unas). Quanto à cena do Elton John, o próprio já teve ocasião de esclarecer que “se o Elton John tivesse nascido na Chamusca, não teria tanto êxito como eu”, o que só em parte é verdade, pois o Elton John nasceu num subúrbio de Londres-norte chamado Pinner, o qual, não sendo bem a Chamusca, anda lá muito perto. Questão essa sim intrigante – e peço que vejam o vídeo, disponível no canal YouTube – é a de saber se aquele senhor cadavérico que aparece no Festival da Canção de 1968, a entoar uma miséria chamada “Balada para D. Inês”, será mesmo, ou não, o celebrado cançonetista José Cid, pois mais parece um agente funerário ou um mediador de seguros, magro e esquálido, de olhar tristíssimo. Talvez por isso, Simone sentiu-se mal a meio da transmissão televisiva do Festival, desmaiou fora de palco, até foi obrigada a receber tratamento médico – e Cid ficou em terceiro, atrás de Carlos Mendes e de Tonicha.
Antes disso, teve ensejo de nascer na Chamusca, como se disse, a 1 de Fevereiro de 1942 (82 anos, portanto), o mesmo dia em que a Marinha dos EUA atacou os japoneses nos célebres “Marshall-Gilberts raids”, das ilhas do mesmo nome, que o infame Vidkun Quisling tomou posse como primeiro-ministro da Noruega ou que os nazis mudaram os seus códigos secretos navais do sistema “Hydra” para o “Triton”, mais lixado de decifrar, tudo coisas que mostram bem até que ponto o nosso Cid é antigo, quase pré-histórico. O próprio, de resto, não desdenha o epíteto de “dinossauro”, que indiscutivelmente o é, e ainda bem.
Hoje, José Albano Cid de Ferreira Tavares poderia ser apenas, e tão-só, o lídimo descendente do 1.º barão do Cruzeiro e do 1.º visconde dos Lagos, pois é filho – o terceiro, único varão – de Francisco Albano Coutinho Ferreira Tavares, lavrador, proprietário e empresário, e de Fernanda Salter Cid Freire Gameiro, doméstica. Nasceu e passou a infância no Ribatejo, onde seu pai tinha uma fábrica de concentrados, ousamos dizer que de tomate. Muitos anos depois, e com ponta de imodéstia, escreveria a cançoneta “Menino Prodígio”, lembrando aos incautos a sua precocidade sonora: seu avô tocava guitarra, acompanhando o mítico Augusto Hilário, e o neto, aos quatro anitos, já se ajeitava ao piano, apesar de jamais ter tido formação musical e de nunca, até hoje, ter sabido ler uma simples pauta. Teve somente meia-dúzia de aulas com uma professora particular, isto quando não andava embeiçado pela sua preceptora francesa, mulher lindíssima, Monique Gerard, que arribou à Chamusca, arrasando-a, no ano de 1948.
Com oito primaveritas, foi mandado para o colégio jesuíta Nun’Álvares, em Santo Tirso, onde passou um frio do caraças e, ainda assim, ganhou premonitórios prémios de canto coral. Depois, aos 12 anos, deu entrada no Colégio Nacional da Anadia, a dois passos de casa, pois os pais haviam-se mudado em 1953 para Mogofores, para a velha quinta da família paterna, onde Cid ainda reside. Durante a adolescência, desligou-se da Igreja, mantendo-se até hoje crente num singular transcendente, sob a forma do antigo deus Endovélico, ao qual presta culto no Monte da Lua, Sintra, ou em São Salvador do Mundo, São João da Pesqueira (já agora: acredita também na reencarnação das almas e diz que, numa existência anterior, terá sido um pássaro – apostamos em papagaio).
Aos 14, foi estudar para Coimbra, para o antigo Colégio de Camões, onde esteve até completar o liceu. Foi feliz aí, até porque integrou então a sua primeira banda, Os Babies, que tocava covers em festas de garagem. Cid, porém, só actuava ao piano, não cantava, já que o vocalista do grupo, Igrejas Bastos, achava que ele tinha voz de menina, o que veio a infirmar-se numa festa no Hotel da Urgeiriça em que, estando Bastos doente, Cid cantou e encantou a numerosa plateia. Não muito depois, Bastos veio para Lisboa, tomando Cid a liderança daquela que diz ser a primeira banda de rock português, cujos trinados importados da América (Bill Haley, Chuck Berry, etc.), nem sempre eram apreciados pelos ouvidos vetustos das elites beirãs, mais habituadas a valsas e a paso dobles, como se verificou no primeiro concerto que Os Babies deram, na casa de chá do Jardim da Manga, Coimbra. Aos 17 anos, compôs a sua primeira música, intitulada “Andorinha”, que nunca chegou a gravar, e ainda bem, pois era abaixo de péssima, e da qual hoje só recorda breves versos, assaz fatídicos: “A andorinha chegou ao pôr do Sol, mas não trazia saudades de ti…”
A par da música, o desporto: por volta do 7.º ano do liceu, entregou-se ao hóquei em patins, praticado no rinque da Curia, e aí conheceu uma futura estrela da bola, António José Conceição Oliveira, “Toni”, à época cognominado “A Locomotiva de Mogofores” (confessou Cid que, quando ambos eram miúdos, e à falta de namoradas, faziam sexo com abóboras, coisa telúrica, portanto, mas também bastante porca). Apesar do desporto, a música acabou por triunfar, até porque, como Cid dirá numa das suas canções mais conhecidas, tinha nascido para ela. O pai, porém, queria-o doutor ou engenheiro e, em consonância, matriculou-o em 1960 em Direito, que o pequeno José frequentou durante quatro anos, muito a espaços, tendo feito duas cadeiras ao todo. Em contrapartida, envolveu-se a fundo no Orfeon Académico, ao lado de José Niza, Daniel Proença de Carvalho, Rui Ressurreição e outros. Graças a isso, tocou várias vezes em Salamanca e, numa dessas ocasiões, visitou com os colegas um prostíbulo da cidade, cuja patroa, ao contemplar a chegada dos estudantes de Coimbra, trajados de negro, anunciou às suas meninas: “Mira, mira, que vienen los curas!”
O seu coração, contudo, já estava ocupado. Mesmo não correspondido, José Albano Cid nutria à época uma paixão louca por Marilyn Monroe. Apreciava-lhe as formas, sobretudo as do rabo, forrou o seu quarto de estudante de posters e fotos dela e, muitos anos depois, compôs “O Andar de Marilyn”, em cujo teledisco Cristina Ferreira encarnou a infausta diva, ainda que a milhas do mito.
Em 1963, José Cid abandonou o Orfeon Académico de Coimbra e, em 31 de Agosto desse ano, casou na Igreja de Santo António, no Estoril, com Emília Infante da Câmara Pedroso, menina de famílias abastadas que, por isso e mais, foi muito aprovada pelos pais do noivo. O casamento, contudo, revelou-se tempestuoso e culminou em traumatizante divórcio, poucos anos depois. Enquanto isso, Cid e Emília foram viver na casa dos pais desta, no Estoril, e ele inscreveu-se no Instituto Nacional de Educação Física (INEF), onde foi um aluno excelente e quase concluiu o curso, além de ter sido campeão universitário de triplo salto e de ténis de mesa.
A música, safada, acabaria por se intrometer de novo no seu caminho: no INEF, tocava piano nas aulas de ginástica rítmica e os professores e os colegas gostavam tanto do que ouviam que um deles, João Mounier, disse-lhe que o seu irmão, Michel Silveira (Miguel Artur Silveira), andava à procura de um teclista para a sua banda, o Conjunto Mistério, que actuava para os lados do Estoril. Não sem resistências de alguns membros dos Mistério, Cid passou a integrar o grupo, que, em 1967, decide mudar de nome para Quarteto 1111 (o número de telefone da casa de Michel Silveira, para facilitar os contactos das fãs). Na sua formação inicial, o Quarteto 1111 tinha José Cid como teclista e vocalista, Michel Silveira na bateria, António Moniz Pereira como guitarrista e Jorge Moniz Pereira como baixista. É difícil exagerar a sua importância na história da música portuguesa: mesclando rock anglo-saxónico, ouvido na rádio Caroline, música tradicional portuguesa e até sonoridades árabes, o Quarteto 1111 deu à luz, em 1967, o seu primeiro EP, “A Lenda D’El-Rei D. Sebastião”, que é “até hoje a música mais premiada de Portugal”, afiança o site do cantor. Foi também, aliás, a primeira música portuguesa a passar no mítico Em Órbita, que Cândido Mota levava aos microfones do Rádio Clube Português. Não muito depois, em 1969, o Lado B do EP Nas Terras do Fim do Mundo – mais concretamente, a música “Bissaide” – fez parte do genérico do mítico Zip-Zip. Triunfos que não salvariam Cid de cumprir o serviço militar em 1968, com dois anos passados no Exército, em Mafra, onde conheceu e privou de perto com Adriano Correia de Oliveira, seu amigo para a vida, e mais outros dois na Força Aérea, no Centro de Formação Militar e Técnica, à Ota. Aí, leccionou ginástica e, até 1972, foi oficial miliciano da Força Aérea, mas garante não guardar “terror ou traumas da tropa”. Ainda assim, não gostou nada, mesmo nadinha, que Manuel Freire tivesse lembrado o seu passado militar (“um oficial de educação física da Força Aérea”) quando, em 2009, a Sociedade Portuguesa de Autores lhe atribuiu um prémio de carreira.
Num exercício nem sempre fácil, conseguiu conciliar a música e a tropa: de manhã, dava aulas de ginástica na Ota; às tardes, ensaiava na garagem dos manos Mounier, em Alapraia, São Pedro do Estoril; e, aos fins-de-semana, actuava onde calhasse com o Quarteto 1111. Em 1973, a convite de um amigo da Chamusca, Carlos Amaral Neto, foi tocar em Angola, na Fazenda Tabi, num dos piores cenários de guerra, mas garante não ter tido medo. Seguindo o exemplo de Zeca e Adriano, impôs só tocar para soldados, recusando-se a entreter os oficiais do quadro.
Entretanto, em 1968, sofreu um aparatoso acidente de viação na Estrada Marginal, frente ao Hotel de Carcavelos, após o Volkswagen Carocha em que seguia com quatro amigos ter sido abalroado por outro, guiado por uns americanos bêbados que, para cúmulo, ainda se puseram a rir do desastre. Em resultado disso, Cid perdeu o olho esquerdo e, salvo raras excepções, até hoje aparece em público sempre de óculos escuros ou fumados, convertidos em sua imagem de marca.
Nada disso o impediu, felizmente, de prosseguir a sua pujante carreira: em 1970, o Quarteto 1111 lança o seu primeiro álbum, que Cid e António Moniz Pereira quiseram não conceptual, mas biconceptual, seja lá isso o que for. O certo é que, por causa de uma das suas músicas, “Lenda de Nambuangongo”, de pendor anticolonial, esteve proibido de entrar em Angola durante dois anos, e que outras das faixas do disco é, nem mais, nem menos, do que a primeira versão de “Trova do Vento que Passa”, de Adriano Correia de Oliveira. Será já com Tozé Brito (vindo dos portuenses Pop Five Music Incorporated, para onde entraria Miguel Graça Moura) que o grupo actua na histórica edição de 1971 do Festival de Vilar de Mouros, ao qual afluíram mais de 30 mil espectadores, entre os quais hippies vindos dos quatro cantos da Europa, naquele que foi considerado o “Woodstock português” e que contou com o próprio do Elton John, que Júlio Isidro foi buscar a Pedras Rubras e levou até ao Minho, numa viagem que classifica de “uma aventura absolutamente extraordinária” (José Cid, em contrapartida, recorda os descarados assédios de Elton a tudo quanto fosse homem ou moço que passasse pelos bastidores: “estava sempre no engate e nós tínhamos que ter muito cuidado com ele. Era muito atiradiço!”). Talvez inebriado pela atmosfera envolvente, Cid fumou aí uma das suas primeiras ganzas, talvez a primeira, mas não ganhou o hábito, preferindo outro vício, o do açúcar, sendo doido por doces.
Em Novembro de 1971, participou no World Popular Song Festival, de Tóquio (com o tema “Ficou para Tia”), regressando ao Japão no ano seguinte. Entretanto, lançara o seu primeiro álbum a solo, José Cid, de Maio de 1971, Com Canções Como Dom Fulano”, Lisboa Ano 3000” E Não Convém”. Data de então a sua colaboração com Natália Correia, ou vice-versa (são delas as letras de “Corpo Abolido” e “História Verdadeira do Natal”, entre outros), que o cantor gosta de recordar, até para chatear aqueles que, à esquerda, criticam algumas das suas posições políticas (fez campanhas do PPD/PSD, da AD, de Cavaco, mas já disse que não recusaria um convite para ir cantar ao Avante!). A esses, aos da “pseudoesquerda festivaleira”, faz questão de lembrar que teve muitas músicas censuradas pela ditadura, que era amigo de Adriano, e que até compôs uma paródia a Salazar, ainda nos tempos do Estado Novo (“No Tempo Em Que O Toninho Lanchava Com Os Amigos na Pastelaria de S. Bento”). No pós-25 de Abril, como muitos, namoriscou o revolucionário (“Quadras Populares”, por exemplo). E, em, 1975, largou os Green Windows, que ajudara a fundar em 1972, e abalançou-se a uma carreira a solo, que prosseguiu ao mesmo tempo que, em 1977, fundou o grupo Cid, Scarpa, Carrapa & Nabo, com Guilherme Inês, José Moz Carrapa e Zé Nabo. No ano seguinte, lançou o álbum que, muito provavelmente, mais o orgulha, “10.000 Anos Depois Entre Vénus e Marte”, incursão pelo rock progressivo ou, no caso, pelo rock espacial, com forte influência dos Moddy Blues e dos Pink Floyd, e um enredo de ficção científica em cenário pós-apocalíptico: dez mil anos depois da autodestruição da Humanidade, um homem e uma mulher viajam de regresso à Terra para a repovoar, envolvendo-se com um antigo cantor icónico, um ex-treinador de futebol e meia-dúzia de abóboras. O disco, diz-se, tornou-se objecto de culto, pois ele há gente para tudo, e no Japão, parece, chegam a dar fortunas, cinco mil euros ou mais, por um exemplar da peça, que em Portugal, desgraçadamente, vendeu cerca de mil cópias, miséria. Depois ou antes disso, um vendaval de power ballads que, por uma estranha metafísica, ou talvez toque de mágico, se hospedam no ouvido e dele não saem o dia inteiro: “A Rosa Que Te Dei” (escrita para Amália, que esta nunca cantou), “Ontem, Hoje e Amanhã”, “Vinte Anos”, “Morrer de Amor por Ti”, “Na Cabana Junto à Praia” (inspirado no filme “Verão 68”, com Richard Burton), “Verdes Trigais em Flor”, “Cai Neve em Nova York”, “Vem Viver a Vida Amor”, “Minha Música”, “Um Grande, Grande Amor”, “Junto à Lareira”, “A Anita Não é Bonita”, “Romântico mas não Trôpego” e, claro, “Como o Macaco Gosta de Bananas”. Ou, já agora, “Amar como Jesus Amou”, composta, segundo ele, porque precisava de comprar um carro novo.
Qual Carmelinda Pereira dos festivais da canção, José Cid participou, directamente ou por interposta pessoa, e com êxito variável, nas edições de 1968 (com “Balada para Dona Inês”, já citada), de 1974 (com o portentoso “A Rosa Que Te Dei”, e, integrado nos Green Windows, com “No Dia em que o Rei Fez Anos”, outro colosso, e “Imagens”), de 1978 (com quatro temas, nenhum memorável), de 1980 (“Um Grande, Grande Amor”, o do Aufidézin-goodbye, sétimo lugar na Haia), de 1981 (“Morrer de Amor por Ti”, vencido pelo “Playback” de Paião), de 1984 (“A Padeirinha de Aljubarrota”, com a Banda Tribo, juntando elementos da sua família), de 1988 (“Cai Neve em Nova York”, na voz do sobrinho José Gonçalo), de 1989 (como convidado, apresentando um medley dos seus sucessos), de 1993 (“O Poeta, o Pintor e o Músico”, em dueto com o seu protégé Paulo Bragança, andrógino hoje semi-recluso na Irlanda), de 1995 (o étnico “Plural”, cantado por Teresa Brito, irmã de Tozé), de 1996 (“Ganhámos o Céu”, ficando em 4.º), de 1997 (“Canção Urgente”, 6.º lugar), de 1998 (“Se Eu Te Pudesse Abraçar”, 12.º lugar em Birmingham), de 2007 (como produtor de “Na Ilha dos Sonhos”, 7.º lugar), de 2010 (um novo medley de baladas famosas) e de 2018 (“O Som da Guitarra É a Alma de Um Povo”, 7.º lugar). Contas feitas, são dezasseis as vezes que Cid se apresentou ao Festival, com duas idas à Eurovisão, uma em sétimo e outro em 12.º lugar. Palmarés decepcionante e poucochinho, nada elucidativo da eloquência de um artista que, como muitos, quase todos, conheceu altos e baixos, sendo resgatado do deserto em 2004, graças a um anúncio de uma marca de chás gelados em que aparecia dizendo, muito jovem, “Olá malta! Tudo bem? Tá-se?”, o que lhe valeu ser conhecido pelas gerações mais novas, que até aí vilmente o ignoravam, mas que desde então passaram a cultuá-lo como a um velho deus pagão, que indiscutivelmente o é.
Em 2006, duas actuações de casa cheia no renovado Maxime, em Lisboa, marcaram o seu come back, prolongado em festas académicas e num grande concerto no Campo Pequeno, 2007, e culminado na recepção do prémio de consagração de carreira pela SPA, em 2009. Nos concertos, predominam os êxitos antigos, da época de ouro dos anos 70-80, a prova provada de que o seu mercado é o do revivalismo. E a presença de abundantes tias nas plateias e nos camarotes permite afirmar, sem sombra de dúvida, que, entre outros feitos, José Cid inaugurou em Portugal um género novo, o kitsch chic (ou beto-horrível), onde até hoje permanece inigualado. A 4 de Fevereiro de 2022, dia do seu 80.º aniversário, foi feito Comendador da Ordem do Infante D. Henrique, tributo republicano a um monárquico do coração, mas de feição liberal e, por isso, não adepto dos actuais pretendentes à Coroa ou partidário do PPM. Tem por sonho um regime idêntico aos do norte da Europa, “aquilo que Sá Carneiro não teve coragem de assumir, embora fosse casado com uma sueca.” Lamenta o regicídio do “genial” D. Carlos I e as ditaduras de Salazar e Marcello, dizendo que, com Sócrates, estivemos à beira de as repetir. Considera que “o 25 de Abril é um projecto adiado” e nunca votou em legislativas ou em presidenciais, mas, ao lado do juiz Rui Rangel, apoiou e até compôs o hino do Nós, Cidadãos, partido que teve 0,40% nas legislativas de 2015, 0,24% nas autárquicas de 2017 e uns promissores 1,05% nas europeias de 2019. Nos idos anos 1980, por se ter recusado a apoiar a candidatura presidencial de Soares Carneiro, dado o passado deste na guerra de África, escapou por um triz de apanhar o Cessna que, ao princípio da noite de 4 de Dezembro de 1980, vitimou Sá Carneiro et all. para os lados de Camarate. Segundo ele, foi o seu pai que, a partir dos céus, o aconselhou a não embarcar na avioneta funesta, ainda que ele, muito imodesto, diga que, se acaso tivesse ido, não teria morrido na tragédia, pois nunca se imaginou falecer num desastre aéreo (fica assim por explicar o pânico medonho que tem de voar).
José Cid não está esquecido nem precisa de prova de vida, somos nós que devemos lembrá-lo, agora e sempre, ontem, hoje e amanhã, pois, além de vários prodígios do horripilante (v.g., os coros femininos de “Desencontro” e “Morrer de Amor por Ti”, ou a letra de “Favas Com Xóriço”), ele fez de nós o que fomos, e por isso somos, sempre seremos. Gostemos ou não, morreremos todos com a certeza de que muitas das suas músicas irão sobreviver-nos, o que para uns será conforto, para outros vil desastre. Em todo o caso, sendo Cid tão grande, tão gigante, tão História de Portugal Contemporâneo, não havia necessidade nenhuma, absolutamente nenhuma, de ser também tão truculento, tão cáustico para tanta gente. Entre as vítimas, Rui Veloso (“se o Rui Veloso é o pai do rock português, eu sou a mãe”, “tem um ego de merda”), Tony Carreira (“qualquer peidinho que ele dê é logo capa de revista”), Mariza (“não tem criatividade nenhuma”), José Saramago (disse que nunca conseguiu ler um livro do Nobel até ao fim), Marco Paulo (“O Marco Paulo vende em Portugal o sublixo da música mundial”, “ele não tem o mínimo conhecimento de música e com certeza vai acabar muito cedo”), Ary dos Santos (que diz ter tido ciúmes da sua relação com Natália Correia), Ivete Sangalo (“Odete sem Galo”), Roberto Carlos (“canto cinquenta mil vezes mais e melhor do que ele”), Madonna (“não canta nada”, “o último álbum da Madonna é um cagalhão”), Miguel Ríos e Johnny Halliday (“ao pé de mim, eles são uma merda”), Julio Iglesias (“canta mal em inglês”), Justin Bieber (“não canta um caraças”), Britney Spears (“outro fiasco”), Michael Jackson (“um imbecil, um complexado, um gajo esquisitíssimo”), Miguel Esteves Cardoso (“eu ainda me escondi com um disco. A ti, se calhar, bastava uma caneta”) e até Amália Rodrigues, imagine-se, recentemente farpeada: “Amália nunca foi muito à bola comigo”; “não lidava bem com o êxito dos outros”. Numa entrevista ao Jornal de Leiria, em 2011, foi ao cúmulo de afirmar que “a única mulher indispensável na minha vida é a mulher a dias.”
Quanto à vida pessoal: tem uma única filha, Ana Sofia, da qual esteve afastado entre 1994 e 2005, por causa do seu vício da droga e de burlas feitas para o satisfazer (Ana, que vive hoje em Cascais, é poetisa e faz reiki para doentes com cancro terminal) e, dela, um único neto, Francisco. Depois de se divorciar de Emília, a primeira mulher, voltou a casar em 1976, desta feita com Maria Armanda Monteiro Ricardo, já falecida, que o acompanhou, e bem, nos coros dos Green Windows. Separaram-se em 1988. Dois anos depois, casou pela terceira vez com a empresária nortenha Ana Maria Tavares, “Nani”, da qual se divorciou em 2003, mas reconciliou em 2005, para se separar em definitivo em 2007. Em 2013, casou pela quarta e espera-se que última vez com Maria-Gabriela Carrascalão, antiga Miss Timor, bisneta da última rainha do Reino de Venilale e cunhada de José Ramos-Horta, que conhecera em 1983, em Melbourne, e com a qual teve uma história noveleira revelada por Miguel Gonçalves no livro José Cid. O Lado B de um Provocador, de 2015: fruto de um relacionamento tórrido, mas efémero, Cid engravidou Gabriela, que teve um bebé rapaz, José Cid Manuel Carrascalão, falecido prematuramente, com poucas horas de vida; na altura, Gabriela tentou contactar o autor de “Uh! Au! Lobo Mau” (1987), ligou para a sua casa em Mogofores, deixou recado, sem sucesso. Anos volvidos, voltaram a encontrar-se, e só então ela pode contar-lhe o sucedido. Casaram então às Caraíbas, em Setembro de 2013, e vivem hoje juntos na Quinta do Cruzeiro, levando uma existência pacata: acordam por volta das 11 da manhã, vão tomar o café no snack-bar fronteiro à quinta, dão um passeio a pé com os cães e almoçam num restaurante das redondezas. Depois dormem a sesta, durante uma hora ou duas, a seguir ele vai para o estúdio, compor ou divagar, ela dedica-se à pintura, depois ingerem um jantar ligeiro e passam o serão na cama, a ver filmes até altas horas da madrugada, quiçá com uma lareira por perto, quem sabe se com um canavial ao fundo. Nas provas de hipismo, onde outrora foi campeão, José Cid salta agora na categoria de veteranos. E, de quando em vez, vai à Chamusca, matar saudades. Aquelas que um dia teremos dele, e do seu ego desmesurado, cujas patetices patéticas tendemos a perdoar-lhe, pois, ao longo de décadas, deu-nos muito e tanto, tantíssimo, sendo oásis de alegria em nossas vidas cinzentas. Um génio do bom de mau.