Dizemos dos grandes criadores da história da arte que nos deixaram um legado de peso. É uma boa metáfora que, em qualquer caso, por vezes faz sentido também em sentido literal. Assim acontece com Helmut Newton: o livro Helmut Newton. Legacy, agora lançado pela editora Taschen, pesa nada mais nada menos que três quilos (aliás, 3,04 kg, de acordo com os dados da sua ficha oficial)..Em formato 24 x 34 cm, além de algumas centenas de fotografias, o livro propõe textos históricos e analíticos em três línguas (inglês, francês e alemão), da autoria de Philippe Garner, especialista britânico em história da fotografia, e Matthias Harder, atuai diretor da Fundação Helmut Newton, em Berlim. Ao longo de 424 páginas, aqui encontramos um magnífico resumo do legado de um dos grandes criadores de imagens do século XX. Redescobrimo-lo, antes de tudo mais, como um dos fotógrafos mais inovadores - e também mais influentes - na área da moda, a par de Irving Penn e Richard Avedon, da mesma geração, ou, mais recentemente, Annie Leibovitz e Steven Klein. Todos, explicitamente ou não, são herdeiros de figuras tutelares como Cecil Beaton, porventura mais conhecido ou, pelo menos, mais citado por causa do guarda-roupa que concebeu para Audrey Hepburn no filme My Fair Lady (1964), de George Cukor..Aliás, vale a pena recordar que a trajetória criativa de Newton nunca foi estranha a uma apaixonada cinefilia. E não só por causa da longa lista de atores e atrizes que retratou ao longo de várias décadas - de um dos mais lendários portfolios de Catherine Deneuve, em 1976, símbolo exemplar da própria transfiguração do conceito de erotismo nessa década, até retratos de Monica Bellucci ou Jude Law, já no século XXI. Também porque concebeu e produziu muitas das suas fotografias como derivações, ora simbólicas, ora irónicas, de variadíssimas referências do mundo do cinema e da literatura mais popular. Ele mesmo o disse numa entrevista de 1989 à revista suíça Schweizer Illustrierte: "A minha fotografia é como o cinema noir, ou como os livros de pulp fiction"..Talvez possamos dizer que o legado de Newton - superando o caráter efémero da moda que fotografou e, de algum modo, ajudou a conceber - é o de alguém que, à sua maneira, foi um invulgar contador de histórias. Num dos textos do livro ("Decadência elegante e provocação subtil"), Philippe Garner chama a atenção para isso mesmo, lembrando que não basta evocar o contraste entre os modelos "vestidos" e "despidos" (utilizando, aliás, uma designação usada pelo próprio Newton para uma série de imagens produzidas para a edição francesa da revista Vogue no começo da década de 1980). Será necessário olhar com atenção e disponibilidade para o facto de haver nas suas fotografias um permanente ziguezague entre o óbvio que reconhecemos e o assumido artifício, tão metódico quanto festivo, das respetivas encenações..É, certamente, discutível que haja um destino a assombrar o nascimento de cada ser humano. Seja como for, não há dúvida que, em termos históricos, as origens de Helmut Newton são essenciais para enquadrar a sua odisseia pessoal. Nasceu em Berlim, a 31 de outubro de 1920, de seu nome verdadeiro Helmut Neuländer, numa família de raízes judaicas. Como ele próprio referiu em declarações evocadas no documentário Helmut Newton: The Bad and the Beautiful (2020), de Gero von Bohem (estreado entre nós nos canais TVCine, com o título Helmut Newton: Perversão e Beleza), a sua adolescência envolveu uma perturbante iniciação ao universo das imagens: em contexto de ascensão do nacional-socialismo, foram "tempos assustadores" em que viveu "rodeado de imagens nazis"..Saiu da Alemanha em 1938. Dois anos antes, iniciara-se no mundo profissional da fotografia como assistente de Yva (pseudónimo de Elsie Neuländer Simon), fotógrafa da República de Weimar que viria a morrer num campo de concentração. As atribulações da guerra e do pós-guerra levaram-no até à Austrália, onde se casou com a atriz June Brunell, nome artístico de June Browne - agora June Newton, viria a construir uma carreira como fotógrafa, menos conhecida, mas de talento igualmente invulgar, adotando o nome de Alice Springs (cidade no centro do território australiano)..As encomendas que Newton começou a receber das edições australiana e britânica da revista Vogue acabaram por conduzi-lo ao centro, de uma só vez financeiro e simbólico, da moda, isto é, Paris. A partir de meados da década de 1960, a sua produção começa a definir um tom ou, se quisermos, um "estilo" em que os artifícios técnicos e o espaço fechado do estúdio são quase sempre dispensados. Nesta perspetiva, as marcas muito pessoais do olhar de Newton não são estranhas a uma conjuntura artística e editorial em que se destacam nomes como os já citados ou ainda duas fotógrafas americanas, Marilyn Stafford e Nina Leen (de origem britânica e russa, respetivamente), a primeira no jornal The Observer, a segunda na revista Life..Na prática, estamos perante fotografias de rua (ou de interiores que não foram concebidos como estúdios) em que, curiosamente, ainda não há um "star system" a funcionar: a fama, e também a moda, das "supermodels" só se consolidaria como fenómeno artístico e comercial cerca de duas décadas mais tarde - algumas das melhores imagens de Linda Evangelista, por exemplo, viriam a ser assinadas por Newton..Nesses primeiros tempos da Vogue (e outras revistas como a Elle ou a Harper"s Bazaar), Newton ainda não fotografava "vedetas", mas figuras mais ou menos anónimas de cenas em que o rigor da encenação não excluía a integração de elementos de natureza realista. Mais tarde, numa entrevista que o casal Newton deu à revista Newsweek (28 set. 1998), June caracterizava o trabalho do marido de forma didática: "Helmut é um grande manipulador. Sabe exatamente aquilo que quer e é incansável no seu impulso para que isso que quer fique nas imagens. Adora a teatralidade da fotografia. Os modelos transformam-se nas suas criaturas, são as suas personagens.".Com o sucesso profissional, Newton começou a inventariar o seu trabalho, isto é, a publicar os primeiros álbuns: White Women (1976), Sleepless Nights (1978) e Big Nudes (1981) são edições de grande impacto que estão devidamente representadas neste Legacy..Andy Warhol, em 1974, é uma das primeiras "stars" fotografadas por Newton, afinal abrindo um capítulo "masculino" que desmente, ponto por ponto, a ideia mecânica de que ele foi apenas um "fotógrafo de mulheres". Claro que o universo feminino pontua todas as nuances do seu universo figurativo: aqui encontramos retratos admiráveis de Claudia Schiffer, Jerry Hall, Jodie Foster, Madonna ou Sigourney Weaver (que Newton considerava um dos seus mais fascinantes modelos). Ao mesmo tempo, esta é também uma galeria que integra poses originais, discutindo as próprias "imagens de marca" dos fotografados, de David Bowie, David Hockney, Mick Jagger, Ben Kingsley, Arthur Miller, Jack Nicholson e Gianni Versace (naquele que é, por certo, um dos nus mais desconcertantes e, à sua maneira, sarcásticos de todo o livro)..No limite, Newton sempre observou as suas "personagens" (para usarmos a palavra de June Newton) como seres cuja complexidade a fotografia procura, não explicar, mas pressentir, nessa medida distanciando-se das lógicas de género, profissão ou mitologia. Terá sido por isso que foi escolhido para capa do livro o espantoso retrato de Debra Winger, realizado em Los Angeles, em 1983, "roubando" um cliché (o olhar duro com a ponta de cigarro no canto da boca) tradicionalmente masculino..Por alguma razão, Newton publicou em 1992 o livro Polaroids (também aqui representado por diversos exemplos), recolhendo muitas das imagens instantâneas registadas ao longo de sessões fotográfica de várias décadas. Na sua fragilidade, as polaroids permitem também desmistificar o labor do fotógrafo e a sua perfeição ideal ou idealizada. Talvez que, em alguns casos, o projeto fotográfico tenha encontrado a sua expressão mais forte, não na imagem definitiva, mas na "imperfeição" da polaroid..Para que o legado do fotógrafo pudesse ter uma casa própria, em outubro de 2003 Newton criou uma instituição vocacionada para a preservação e difusão do seu trabalho, e também do de sua mulher: a Fundação Helmut Newton está numa zona central de Berlim, próximo do Jardim Zoológico (e também do Zoo Palast, sala que, durante várias décadas, foi o lugar principal do Festival de Cinema de Berlim)..Com uma atividade que há muito excede a amostragem da obra do casal Newton, a fundação abriu no ano seguinte, mas o seu criador já não assistiu à inauguração. No dia 23 de janeiro de 2004, em Los Angeles, quando conduzia o seu automóvel, pouco depois de ter saído do Hotel Chateau Marmont (cenário de alguns dos seus mais célebres portfolios), Newton sofreu um violento ataque cardíaco, vindo a falecer nesse mesmo dia - contava 83 anos..dnot@dn.pt