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Galopim de Carvalho: o avô dos dinossáurios

António Galopim de Carvalho gosta de ser retratado como um “geólogo todo-o-terreno” ou um académico “fora de portas”. Deu aulas durante décadas, mas não aprecia o “mundo demasiado elitista” da universidade. Tornou-se conhecido do grande público não tanto por causa das pedras, mas antes dos dinossauros.
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Com a cabeça pequenina
Do corpo muito afastada,
Fui herbívoro e comilão.
De barriga avantajada,
Tive vida descansada
E não sofri do coração.
Pescoço e rabo comprido
Como muitos primos meus.
Hoje estou convertido
Em atracção de museus.

Os versinhos supra são do Professor António Galopim de Carvalho, ou 
antes eram, já que o autor, entretanto, decidiu dedicá-los ao apatossáurio, o qual, caso não saibam, foi bicho que pesava para cima de 35 toneladas, às vezes até 40. Quanto às quadras, integram a obra Dinossáurios em Verso, publicada em 2023, com ilustrações de Francisco Bilou e estrofes do catedrático, que este ofereceu a alguns amigos de longa data, o paquicefalossáurio, o iguanadote, o estegossáurio, o avimimo, o t-rex e o anquilossáurio, entre outros.

Quem assim age e verseja, com 92 anos de existência, merece o nosso respeito, quando não admiração. No extremo, poderá até dizer-se que, ao fim de tantas décadas, o “avô dos dinossauros” converteu-se num, já que nasceu nem o Estado Novo existia e hoje ainda cá anda, cheio de vida e projectos. Assim, até dá gosto o Jurássico.

António Marcos Galopim de Carvalho viu a luz em Évora, em 11 de Agosto de 1931, sendo filho de Mário Alcino Pacheco de Carvalho e de Adília do Carmo Galopim de Carvalho e, logo, irmão de Francisco José, imperador canoro dos anos 50, 60 e 70, a inesquecível voz de “Olhos Castanhos”, entre outros sucessos. Em Fora de Portas. Memórias e Reflexões, de 2008, escreveu Galopim, com justificado orgulho: “nas minhas raízes não houve doutores, engenheiros, almirantes ou generais, nem sequer um sargento.” Mas houve um pai, a quem ele uma vez disse, terminada a tropa, “– Vou continuar a estudar. Vou para Lisboa. Arranjo emprego que me permita ir às aulas”, e que lhe respondeu: “– E nós vamos ajudar-te naquilo que pudermos.” E houve um pai que todas as noites, depois do jantar, lia aos filhos, durante meia-hora, trechos dos livros que tinha na sua pequena biblioteca ou que requisitava na Sociedade Harmonia Eborense, como A Toutinegra do Moinho, de Émile Richebourg, A Execução dos Távoras, de César da Silva, três grossos volumes de A Revolução Francesa, ou o Guerra e Paz, de Leão Tolstói. É espantoso saber que, oitenta anos depois, António Galopim de Carvalho ainda se lembra dos nomes dos títulos e dos autores que o marcaram, a prova provada da funda impressão que tiveram no seu espírito aquelas leituras que o seu pai fazia todas noites.

Na sua genealogia plebeia houve dois corticeiros, um sapateiro, um curtidor de peles, dois caiadores, um capador, um açougueiro, mostra da diversidade dos ofícios do antigamente, que cada qual abraçava para a vida inteira, com denodo e brio. A sua tia Rosalina, irmã da avó materna, fazia queijos de ovelha com as filhas e tinha uma venda de hortaliças; Zezinho, o marido dela, tio de Galopim, tinha a alcunha de Zé dos Cabanejos, pois fazia cestos e canastras ou cabanejos. De todo esse ramo da família, só o seu pai estudou, tendo concluído o 5.º ano do liceu, que nesse tempo era garantia de ascensão à burguesia ou, se quisermos, à pequena classe média. Na adolescência, em plena Grande Guerra, Mário Alcino alistou-se como voluntário na Marinha, entrando como segundo-grumete na fragata Dom Fernando II e Glória. Porém, nunca saiu da barra, nem sequer aprendeu a nadar, e uma apendicite aguda levá-lo-ia ao Hospital da Marinha, onde esteve internado durante mais de um ano e foi sujeito a diversas intervenções cirúrgicas.

Depois, fez-se empregado de escritório, primeiro como simples escriturário numa fábrica de cortiça e, a seguir, com muito trabalho e estudo, como chefe de secção da Companhia Alentejana de Seguros – A Pátria. Em conformidade, trajava de forma aprumada, de fato completo, camisa e gravata ou laço, chapéu de feltro e polainitos sobre os sapatos pretos bem engraxados, recorda o seu filho, lembrando também o papel que Mário Alcino teve na vida da Sociedade Harmonia, ou vice-versa: passava lá todos os serões, a jogar bilhar até à meia-noite, hora em que regressava a casa, onde Adília o aguardava, a costurar; foi campeão de bilhar em muitos torneios realizados na Harmonia, frequentava a respectiva biblioteca, apetrechada de livros e de jornais, com destaque para as folhas da terra (Notícias de Évora, Democracia do Sul e A Defesa), e aos domingos de manhã fazia a escrita da Sociedade, na qualidade de guarda-livros, o que lhe trazia um pequeno vencimento, “suplemento precioso na economia da casa”, diz Galopim, acrescentando o que suspeitávamos: a Sociedade Harmonia era um mundo de homens, só frequentado por mulheres nas noites de baile ou nas matinés dançantes, e o seu pai, obviamente, pouco ou nada ajudava na lida da casa. 

Em vários livros, Galopim de Carvalho tem evocado as suas raízes trastaganas, inclusive num domínio que lhe é caro e gostoso, o da culinária e da gastronomia, com obras saborosas que mesclam receitas de cozinha e estórias de delícia: …Com poejos e outras ervas, de 2001, Açordas, migas e conversas, de 2018, ou Com coentros e conversas à mistura, de 2019. Fala com indisfarçável nostalgia da sua terra natal, quer no seu livro de memórias, atrás citado, quer no fabuloso Évora, anos 30 e 40 (Âncora, 2021), roteiro sentimental por lugares como a mercearia do Anselmo, a drogaria do Serrano, a livraria do Carapinha, entre tantos outros, um retrato bem revelador da extraordinária riqueza e variedade do comércio local das cidades e vilas portuguesas de meados do século XX.

De permeio, evocações comoventes, como a das crianças a brincarem à apanhada nas noites cálidas na Porta Nova, da “menina” Anselmo, do coronel Camões, dos banhos no Degebe ou dos festejos do São João, coisas que não impedem Galopim de ver também os aspectos sombrios da sua infância e juventude, desde logo quanto à pobreza e à desigualdade gritantes, patentes nolatifúndio e no poderio dos terratenentes, glosados numa das coplas da revista musical “Palhas e Moinhos”, em dois actos, da autoria de João Vasconcelos e Sá, levada à cena no Garcia de Resende, em 1939: 

Que seria de vós, Murteiras e Rosados
Alves, Potes, Calhaus, sem porcos nem montados?
Que seria de vós, Piteiras e Fernandes,
Se os porcos que criais não se fizessem grandes?
E que seríeis, vós, Queirogas, Ervideiras,
Sem paios, salsichões, chouriços, farinheiras

Galopim não conheceu a pobreza, mas cresceu num ambiente frugal e poupado, onde tudo quanto se vestia era feito em casa – ceroulas, camisas, fatos, roupas de cama e mesa – e, como ele recorda, “um fato que o pai deixasse de vestir era desmanchado, virado do avesso e feito de novo para o filho mais 
velho, aproveitando as mesmas entretelas e os mesmos forros e chumaços.” Pertencente a uma família remediada, que ainda assim possuía uma criadita de servir, adolescente e semianalfabeta, o jovem António nunca franqueou as portas do Clube ou do Grémio da Lavoura, os pontos de encontro das elites eborenses, e os seus amigos eram os rapazes vizinhos, da sua criação, ou homens mais velhos que o autorizavam a tratá-los por tu, como o Barrão, caixeiro da mercearia do Anselmo, o Tonica Patinhas, dono de um talho existente ao cimo da Rua de Aviz, ou o Celestino, também talhante, além do João Patinhas, primo do Tonica e pai de um grande pegador de touros com o mesmo nome (o próprio Galopim, imagine-se, frequentou uma escola de toureio, mas depois deixou-se disso e hoje, em nome dos animais, odeia as touradas e a caça). Entre os seus contemporâneos, Lima de Freitas, Mário Ruivo, Fernando Bragança Gil, Júlio Roberto, Henrique Leonor Pina, Marcolino Gramacho, com quem Galopim de Carvalho, já no final da adolescência, discutia filosofia ou o que ia aprendendo nos livros da Biblioteca Cosmos ou nos Cadernos de Informação Cultural, de Agostinho da Silva. 

Quando tinha dez, onze anos, a tia Cecília foi viver para casa de seus pais. Era dezassete anos mais velha do que a sua irmã, mãe de Galopim, e acabara de enviuvar de um operário corticeiro, homem de taberna, que sempre lhe dera arrelias e maus-tratos. Ficou lá para sempre, ajudando a criar os seis filhos de Adília e de Mário Alcino, que faleceram novos, ela em 1966, com 66 anos, ele dois anos depois, com 68 anos. A tia ficou, os sobrinhos arranjaram-lhe uma casa nova, mais pequena, onde morou até morrer. Meter os velhos num lar era coisa que nem se pensava. “Entrei tarde e mal preparado para a escola oficial”, diz o cientista, que fez a 1.ª e a 2.ª classes em casa, com a mãe, recitando horas a fio a Cartilha Maternal, de João de Deus, enquanto ela costurava. Logo no primeiro dia de aulas, na escola oficial de São Mamede, meteu-se em trabalhos, foi castigado, apanhou seis reguadas, e assim prosseguiu às mãos do professor Pires, de alcunha “O Terrível”. Depois, foi seguindo pelos estudos fora, sem especial brilho ou destaque, e cumpriu os deveres da Mocidade Portuguesa, até que, no primeiro período do 5.º ano, no Liceu André de Gouveia, teve uma bênção inaudita, daquelas que mudam uma vida: após ter dado meia-dúzia de aulas, o professor de Ciências caiu doente e retirou-se por motivos de saúde. Em sua  substituição, vindo do Liceu Gil Vicente, de Lisboa, entrou à liça um mestre de  excepção, o Dr. Cassiano Vilhena. Galopim de Carvalho considera que ele foi o docente que mais influência teve na sua vida profissional, o homem que lhe desvendou a cristalografia morfológica, entre outros mistérios, e que apadrinhou a colecção de pedras que Galopim, em conjunto com Mário Cascalho, foi formando com desvelo e cuidado, e na qual se incluíam coisas lindas como a volframite da Borralha, a magnetite do Marão, a galena de Terramonte, as pirites de São Domingos e de Aljustrel, os mármores de Vila Viçosa, os basaltos de Lisboa. “Com o professor Cassiano as rochas deixaram de ser as pedras inertes, sem história, e os respectivos exemplares, arrumados em tabuleiros e armários de serviço às aulas, passaram a ser vistos como documentos da evolução do nosso planeta. Com ele aprendi o significado dos fósseis no conhecimento da história da vida e que as diferentes paisagens, na sua imensa biodiversidade, têm por suporte o solo e que este não é mais do que a capa superficial das rochas, alterada pelos agentes atmosféricos, capa essa necessária à fixação das plantas.” Um episódio maravilhoso: décadas volvidas, finais dos anos 70, quando ensinava num colégio de Lisboa, leccionando Geologia ao Ano Propedêutico para complementar a sua magra reforma do ensino oficial, o professor Cassiano tinha o hábito de passar pela Faculdade de Ciências, à Rua da Escola Politécnica, para conversar com o antigo aluno, agora catedrático, que o actualizava nas matérias e na bibliografia (“– É bonito ter sido teu professor e estar agora a aprender contigo. É reconfortante. Que mais pode aspirar um velho professor?” – dizia ele).

António Galopim de Carvalho viu o mar pela primeira vez aos 15 anos, em Carcavelos, onde quase morreu afogado. Antes disso, pôde deslumbrar-se com o Mar da Palha, quando conheceu Lisboa, aos 15 anos, numa excursão liceal. Ficou maravilhado com a dimensão e o colorido dos prédios, a largueza das avenidas, o trânsito trepidante, os eléctricos amarelos, os anúncios luminosos do Rossio, com destaque para o da Água das Lombadas. Na Sociedade de Geografia, percorreu as vitrinas com objectos das nossas colónias e, na Rotunda, foi até junto da estátua do marquês, para olhar para cima, abismado com a altura do monumento, a mesma sensação que teria, muitos anos depois, quando contemplou os arranha-céus de Manhattan. Feita a tropa, já casado, um padre ofereceu-se para o meter nos quadros da PIDE, com uma cunha do coronel Homero de Matos, e o seu pai quis empregá-lo na seguradora A Pátria, para que lhe seguisse as pisadas, mas o jovem António, receoso de vir a tornar-se um “manga-de-alpaca”, afirmou que 
queria ir para Lisboa e prosseguir os estudos. Foi então que o seu pai lhe disse, como atrás se referiu, que o apoiaria em tudo quanto pudesse – e assim foi. Instalou-se na capital, numa águas-furtadas na Rua Cecílio de Sousa, a dois passos da Faculdade. Estudante-trabalhador, empregou-se como vendedor de uma firma que representava as máquinas de escrever Alba, as máquinas registadoras Sweda e as policopiadoras Plentograph. Ganhava 500 escudos, 2,5 euros aos dias de hoje. Nos primeiros tempos, inexperiente naquele negócio e algo perdido na grande urbe, houve meses em que não conseguia vender máquina alguma, até porque, como veio a perceber, o seu chefe fechava os negócios nas suas costas, abichando a comissão que lhe era devida. Acumulou a actividade de vendedor de máquinas com a de delegado de propaganda médica, por 600 escudos mensais, o que o fez conhecer alguns clínicos de poucos escrúpulos, mas, graças a outro golpe de sorte – a juntar à dos pais que teve e à da acção do professor Cassiano –, obteve, no último ano da licenciatura, uma bolsa da Fundação Gulbenkian, no valor de 500 escudos, a qual, em conjunto 
com o ordenado da mulher e da ajuda dos pais, lhe permitiu continuar a estudar sem sobressaltos de maior.

Na companhia de Isabel, vivia numa “parte de casa”na Cecílio de Sousa, com duas divisões – uma para dormir, outra para trabalhar –, estudava e cavaqueava nas pastelarias da zona, a Alsaciana e a Cister, abertas até de madrugada, ia buscar o jantar à cantina da Associação de Estudantes, de marmita na mão. Mais tarde, o casal mudou-se para uma casa mais espaçosa, num prédio dos anos 40 na Rua Nova de São Mamede, com vista para a Rua do Salitre. Concluída a licenciatura, foi convidado a ficar na Faculdade, como 
segundo assistente da disciplina de Mineralogia e Geologia Gerais, o que, confessa, representou “um grande salto na nossa qualidade de vida”, pois passou a ganhar um vencimento de 3.200$00 e, com ele, pôde arrendar um andar de três assoalhadas na Amadora, por 850$00/mês. Uma lição para o presente, que 
se diz, e bem, mais meritocrático e mais democrático, mas onde, sem casas para os jovens das classes médias, não há “elevador social” que valha. Depois, Paris. Em 1960, com uma bolsa do Instituto de Alta Cultura,rumou até ao Museu de História Natural da Cidade-Luz com o objectivo de proceder, e cita-se, ao “estudo paleontológico de um conjunto de invertebrados fósseis do phylum Bryozoa, vulgo, briozoários, recolhidos em Portugal nos terrenos datados do Pliocénico inferior, com idades compreendidas entre, 
aproximadamente, 5,3 e 3,4 milhões de anos, na região de Carnide, na vizinhança de Pombal.”

Em 1968, concluiu o doutoramento de 3.º ciclo, em Sedimentologia, com uma tese sobre a Ponte de Sor, que mereceu a “mention la plus Honorable”. Regressou a Lisboa, deu aulas na Faculdade de Ciências, e em 1974 foi surpreendido pela revolução, como muitos outros. No dia 25 de Abril, estava aprazado receber das mãos do reitor Veríssimo Serrão o anel de pedra azulceleste, cor de Ciências, com as insígnias da Universidade, cerimónia que, como é óbvio, foi adiada (também como é óbvio, o geólogo Galopim descreve a pedra como “uma espinela sintética a fingir água-marinha” e acrescenta que, além das insígnias universitárias, o anel tinha “um martelo, uma trilobite e um dinossáurio gravados no ouro”). Ciente da importância histórica da jornada, passou o dia a gravar em cassetes tudo o que dava na rádio, desde os 
comunicados do MFA às marchas militares, passando pelas músicas do Zeca, do José Mário Branco, do Luís Cília, entre muitos outros. Às tantas, como já não tinha mais fitas disponíveis, gravou por cima das cassetes de Daphnis et Chloé, de Ravel, da Missa n.º 1, de Bruckner, das Quatro Estações, de Vivaldi, assim o justificava aquele dia, inicial e limpo. Correu à rua, a buscar jornais e a comprar cassetes novas, e continuou pelo dia fora, a gravar e a registar tudo, com o auxílio do filho mais velho, Nuno, então com sete anos, enquanto o Rui, mais novito, cinco anos, fazia naves e bases espaciais no meio de um mar de peças 
Lego espalhadas pelo chão. No 1.º de Maio, vemo-lo com Isabel, ambos trajados de vermelho e de cravos na mão, ao lado de um soldado sorridente, esperançoso no futuro. 

António Galopim de Carvalho gosta de ser retratado como um “geólogo todo-o-terreno” ou, como já o descreveram, um académico “fora de portas e para o público em geral.” Deu aulas durante décadas, de 1961 a 2001, mas não aprecia o “mundo demasiado elitista” da universidade portuguesa. Tornou-se 
conhecido do grande público – e converteu-se numa figura nacional de primeiro plano – não tanto por causa das pedras, mas antes dos dinossauros. Desde logo, na qualidade de director do Museu de História Natural, onde esteve vários anos, foi o responsável principal pela exposição “Dinossáurios Regressam em 
Lisboa”, patente nesse Museu entre Dezembro de 1992 e Fevereiro de 1993, naquele que foi, diz Galopim com orgulho, “o acontecimento museológico desde sempre mais falado e com maior afluência de público registada em Portugal.” Na verdade, foi a loucura na Politécnica: 346.694 visitantes em apenas onze semanas, houve dias em que acorreram mais de 8.000 estudantes, trazidos em dezenas de autocarros que entupiram o Príncipe Real, filas com duas a três horas de espera; pela madrugada fora, chegavam excursões do Algarve (às duas da manhã), carrinhas de Sesimbra, com mulheres de pescadores (às quatro da manhã), pelas seis da manhã servia-se chocolate e bolachas aos últimos visitantes, tudo coisas nunca vistas. 1993 era, em definitivo, o ano dos dinossáurios: em Janeiro, a expo na Politécnica e, em Outubro, a estreia de Jurassic Park, com lotações esgotadíssimas nos cinemas do país. No meio do frenesim, um sábio pequeno e frágil, o mestre Yoda dos dinossáurios, António Marcos Galopim de Carvalho, catedrático de Ciências, 
que um dia, já casado, dissera ao pai que queria estudar em Lisboa, assim driblando o que o destino lhe traçara, uma vida a vender seguros por terras do Alentejo. 

Travou-se então a histórica batalha de Carenque, onde, em 1986, dois discípulos seus, Carlos Coke e Paulo Branquinho, tinham descoberto um conjunto de pegadas de dinossauros no fundo de uma pedreira abandonada. Tratava-se, dizem os especialistas, de uma importantíssima jazida paleontológica, com cerca de 200 pegadas, na qual se destacava um trilho com 132 metros de comprimento no troço visível, formado por marcas subcirculares com 50 a 60 centímetros atribuídas a um dinossáurio bípede, talvez Valentim 
Loureiro. Era, nem mais nem menos, o mais longo trilho contínuo da Europa (de um dinossáurio bípede, bem entendido) e, como se não bastasse, havia também pegadas tridáctilas atribuíveis a terópodes, isto é, a carnívoros, parte delas também em trilhos. Quer dizer, naquele lugar de Sintra, freguesia de Belas, que os humanos converteram em lixeira, tinha havido muita e muita bicheza a trilhar, isto por alturas do Cretácico Superior (melhor dito, do Cenomaniano Médio Superior), portanto há coisa de 90 a 95 milhões de anos. 
Depois, apareceu Mário Soares. Foi, de facto, no decurso de uma das suas “presidências abertas” que 
Soares se deslocou à jazida de Pego Longo. Estava-se a 10 de Fevereiro de 1993, no auge da loucura pré-histórica, e o cenário, descrito por Galopim, foi o seguinte: com a demora do almoço presidencial, ocorrido à Amadora, a comitiva chegou com considerável atraso ao local do achado. Chovia a cântaros, tudo enlameado. Lá no fundo da pedreira, centenas de crianças das escolas da região, transidas de frio, coitaditas, formavam um cordão humano em defesa das pegadas. “Soares, vem cá abaixo!”, gritava-lhe a miudagem, na companhia das stôras. “Cá acima, cá acima, cá acima!”, respondia-lhes o Presidente, evitando a lama. Com esse gesto, que antecipou um outro, este em Fevereiro de 1995, na defesa das gravuras do Côa (“As gravuras não sabem nadar!”), Soares dava um impulso essencial à campanha pela preservação das pegadas de Carenque, que o Governo e a Brisa queriam eviscerar com vista à construção de uma potente 
estrada, a CREL. Além da sua presença à frente de uma numerosa e encharcada comitiva, com Galopim em destaque, o Presidente afirmou-se disposto a contribuir com 400 escudos para a salvação das pegadas, a quantia que o ministro Ferreira do Amaral dizia que cada português teria de pagar se acaso o traçado da CREL fosse alterado por causa dos restos dos dinossáurios (“os dinossauros têm um preço”, estimado “entre um Futre e um Futre e meio.”) Galopim de Carvalho tornou-se o rosto mais visível desta cruzada, que 
descreveu num livro de 1994, expressivamente intitulado Dinossáurios e a Batalha de Carenque. Desdobrou-se então em aparições mediáticas, escreveu a tudo quanto era entidade (o secretário de Estado da Cultura, Santana Lopes, nem respondeu), foi recebido por João César das Neves, assessor de Cavaco, 
mobilizou autarcas, cientistas, jornalistas, fazedores de opinião, granjeou o apoio da Associação Olho Vivo, da Liga para a Protecção da Natureza, da Federação Portuguesa das Associações e Sociedades Científicas, encabeçou uma petição com 24 mil assinaturas e, no final, prevaleceu o bom senso: as pegadas foram salvas e acabaram mesmo sendo classificadas, pelo Decreto n.º 19/97, de 5 de Maio, como Monumento Natural. Abriram-se dois túneis na CREL, sob a grande laje que contém os trilhos, obra que custou cerca de oito milhões de euros. Para a cerimónia de inauguração, o governo de Cavaco Silva fez questão de convidar Galopim, num outro gesto prenhe de simbolismo, que o catedrático de Geologia faz questão de sublinhar com agrado no seu livro de memórias. 

Para o sucesso alcançado contribuiu também, sem margem para dúvida, a “dinomania” que então se vivia, fruto da exposição dos dinossáurios robotizados na Politécnica, do filme de Spielberg e, claro, do merchandising oportunista. Os mais desatentos à alta cultura devem ser lembrados que Quim Barreiros assinou a música e a letra marotas de “Meu Dinossauro” (“Meu dinossauro companheiro inseparável / Gostam de ti mesmo que não tenhas osso / A tua cauda, tuas patas, teu tronco / Mas o que nós gostamos mais / É da cabeça e do pescoço”) e que os Pop Kids editaram o álbum “Pop Jurássico”, onde, além do célebre “Dinolândia”, constavam prodígios como “Família Rex”, “Amor Dinossauro”ou “Broncossauro, o Avô Inventor”. Por todo o país, mas em especial na Região Oeste, sucederam-se as exposições de bichos pré-históricos e, logo a seguir ao êxito da Politécnica, o Jardim Zoológico de Lisboa inaugurou uma outra mostra, igualmente monstra. Lamentavelmente, e logo no ano mágico de 1993, Portugal perderia um exemplar de espécie raríssima, o Dino Meira, falecido em 11 de Novembro desse ano, e que começara a carreira na música, note-se, como acompanhante à viola de Francisco José, irmão do António Galopim de Carvalho. (hoje, em matéria de dinos, e como é sabido, sobram apenas Dino Alves, estilista, e Dino d’Santiago, cantor.)

Nos idos anos 90, e sempre avessos a modismos e excitações colectivas, distanciaram-se da “dinomania” – ou, melhor dito, criticaram asperamente a construção dos túneis para salvaguarda das pegadas de Carenque – José Pacheco Pereira e Miguel Sousa Tavares, este último com afirmações que Galopim 
considerou falsas e inverídicas e recorrendo a um “humor sarcástico, desajustado e desnecessário, que magoa e não lhe fica bem.” O facto, contudo, é que, como sempre sucede, passada a polémica e a politiquice, nada se fez em defesa da jazida, considerada “única no mundo”. Em 2001, a autarquia 
sintrense, sob a presidência de Edite Estrela, aprovou o projecto de um museu e de um centro de interpretação, mas, depois, tudo caiu no esquecimento, no abandono, na negligência, pese os múltiplos e infatigáveis esforços de Galopim e de outros, que chegaram, inclusive, a meter em tribunal o Instituto de 
Conservação da Natureza e das Florestas e a Câmara Municipal de Sintra. 

Muitas escolas, muito alarido, muitas músicas, muitos bonecos de plástico – mas, passada a onda, impôs-se a lusa sina e a jazida, claro, regressou ao estado em que estava e está, isto é, o de lixeira. Quanto a ele, Galopim, não desistiu da sua dama (e doutras, já agora, como a das pegadas da Pedreira do Galinha, em Ourém-Torres Novas). Nasceu, como ele próprio diz, no tempo do “preço da borrega”, que os lavradores 
concupiscentes pagavam às mães das raparigas do povo a troco da sua virgindade, e hoje vive num país democrático e livre, inquestionavelmente mais igualitário, mas nem por isso imune a tragédias e males antigos, como o da incúria na preservação do património, de que o caso de Pego Longo é só um triste exemplo, entre tantos outros. Evitou, e bem, envolver-se em excesso na política e, ao que se sabe, nesse domínio participou apenas no “Cidadãos por Lisboa” de Helena Roseta, nas autárquicas de 2009. Em matéria religiosa, afirma-se agnóstico, desdenhando os príncipes da Igreja.

No mais, continua a opinar sobre temas variados, com destaque para as alterações climáticas (ainda 
há pouco, disse em entrevista, “haverá um dia em que um copo de água valerá mais do que um diamante”, Comunidade Cultura e Arte, de 3/1/2024), ou a escrever nos jornais em defesa do tesouro de Pego Longo, num esforço cívico e científico que lhe valeu ser agraciado, em 1994, com o grau de Grande Oficial da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada, e receber, nesse mesmo ano, o Prémio Bordalo, na categoria “Ciências”, além de ter duas escolas baptizadas com o seu nome (uma, em Queluz/Sintra, em 1999, outra em Évora, em 2014), de conquistar a Medalha de Mérito Científico da Câmara Municipal de Lisboa, em 2016 e, mais recentemente, em Janeiro de 2023, de ter sido condecorado com as insígnias de Grande Oficial da Ordem da Instrução Pública.

Entrevistado em 2021, quando perfez 90 anos, disse que a idade não lhe pesava, excepto a entrar e a sair dos táxis, afirmando ainda, em registo encantador, “mantenho a criança que fui, o adolescente, o homem adulto e o homem idoso que sou. Mantenho isso tudo presente em mim”. Na companhia da mulher, de dois filhos e três netos, continua a publicar livros atrás de livros e é muito activo no Facebook, onde tem milhares de seguidores. “Tenho uma vida bastante feliz”, dizia, e estamos em crer que assim se mantém, e ainda bem, tendo afirmado recentemente “não tenho mágoas, feliz na profissão e na família, morro de papinho cheio.” (Diário de Notícias, de 31/1/2023). 

Em suma, e em síntese, que Nosso Senhor bem o guarde, porque este bem o merece.

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