Fausto Giaccone: A reforma agrária vista por um italiano
Talvez fosse daquela luz única, que, no final de agosto, transforma os céus do Sul num cenário arrebatador, ou da fala, mais cantada do que dita, dos camponeses alentejanos. O certo é que, aos 32 anos, Fausto Giaccone, italiano nascido na Toscana em plena IIª Guerra Mundial, mas criado em Palermo, aterrou no Portugal do PREC e tomou-se de amores pela população do Couço (tecnicamente situado no concelho ribatejano de Coruche, mas alentejano pela cultura e pelo modo de estar), que vivia o empolgamento da reforma agrária. Não foi um fogo fátuo. Dura até hoje, a tal ponto que, segundo me conta o fotojornalista, hoje com 81 anos, continua a conversar no Messenger com alguns dos seus fotografados de então. Ou com o filho do capitão Rodrigues, oficial dos comandos então destacado no Couço (e fotografado por Giaccone), que veio do Porto para assistir à inauguração da exposição, O Povo no Panteão, esta 3ª feira, precisamente no Panteão Nacional, em Lisboa.
Tudo começou em Lisboa e na margem sul do Tejo (sobretudo em Almada, nos estaleiros da Lisnave), mas o jovem fotojornalista freelance procurava algo mais do que comícios, manifestações e contramanifestações, que, por essa altura, se sucediam a um ritmo trepidante. Enquanto outros repórteres nacionais e estrangeiros se concentravam na capital, na órbita de protagonistas como o primeiro-ministro Vasco Gonçalves, Álvaro Cunhal ou Otelo Saraiva de Carvalho, Fausto Giaccone preferiu procurar acontecimentos diferentes, numa realidade que, apesar de rural, não era menos politizada. Foi assim parar ao Couço, na zona limítrofe entre os distritos de Santarém e de Évora. E o que viveu aproximou-se da epifania.
“Perdi o 25 de Abril porque estava fora da Europa, mas em agosto de 1975, estando a trabalhar para vários jornais de esquerda como Il Manifesto, não adiei mais a vinda a Portugal. Em boa hora, porque era o final da festa iniciada a 25 de Abril.” Fausto, que estudara Arquitetura em Roma, iniciou-se na fotografia em 1968, o ano de todos os protestos estudantis e operários em França e Itália. Então com 25 anos, ficou imbuído desse espírito de utopia, que, acredita, também alimentou a revolução portuguesa.
O Alentejo e o Ribatejo
“Quando cá cheguei - conta-nos - senti que estavam cá demasiado fotógrafos das mais diversas partes do mundo e eu queria fotografar algo mais pessoal. Foi então que ouvi falar da ocupação dos latifúndios no Alentejo e Ribatejo, que era um tema que me fascinava desde sempre porque sou siciliano. Este é um tema crucial na História contemporânea na Sicília, onde cresci, mas também na Calábria e Puglia.” A proximidade entre culturas do Sul não se limitou, porém, a questões políticas, mas passou também por uma proximidade entre as pessoas que, como nota Fausto, seria muito difícil de encontrar em paragens mais nortenhas.
Nas paredes do Panteão, o que encontramos é, pois, a expressão de uma utopia que, de repente, parecia ao alcance da mão. Há fotografias que documentam as tarefas quotidianas da cooperativa agrícola, como a extração da cortiça, outras sobre as assembleias que decidiam a logística dos movimentos seguintes, invariavelmente coordenadas pelo histórico Joaquim Caneijo. Estão lá muitas mulheres (como a antifascista torturada pela PIDE, Rosa Viseu), nos seus belos, e sempre muito limpos, fatos de trabalho no campo, muitas crianças e até o oficial ao serviço do COPCON que vinha ratificar a ocupação das terras, o capitão Rodrigues. “O que mais me impressiona nestas imagens é o ar de festa tímida que há em tudo isto. Ao contrário do que acontece em imagens da revolução de Outubro ou de revoluções na América Latina, o que está representado é um sentimento de alegria e não de violência ou tensão. Estas pessoas vão em cima dos tratores com cestas de piquenique.”
A emoção que o fotógrafo ainda põe na evocação destas memórias, quase meio século depois, sugere a força da relação estabelecida com aqueles protagonistas de que poucos saberiam dizer os nomes. Voltaria dez anos depois, para ver como estavam estas pessoas e para publicar o livro Uma História Portuguesa, com prefácio de António Tabucchi. Ainda hoje fala no Messenger com alguns dos sobreviventes (como a pequena Emília, que aparece sorridente com a boneca que a Revolução lhe permitira ter) ou mesmo com os filhos e netos dos que não usam a internet ou já morreram.
No catálogo da exposição, o diretor do Instituto Italiano de Cultura de Lisboa, Stefano Scaramuzzino sublinha a importância do testemunho único que são estas fotografias: “Embora os acontecimentos retratados pela objetiva do fotógrafo tenham ocorrido 15 meses após a Revolução dos Cravos, entendemos o 25 de Abril no seu sentido dilatado, que vai até ao outono de 1975, considerando a ocupação das terras alentejanas no verão desse ano como uma natural consequência da afirmação das exigências democráticas de igualdade formal e substancial, que estava na base do golpe dos Capitães e das constituições italiana e portuguesa. Acontecimentos entrelaçados e paralelos, unidos pela euforia, pela organização, pela desilusão e, finalmente, pela “ressaca”, mas destinados a oferecer um exemplo duradouro com a demonstração de que a utopia era possível (…).”
dnot@dn.pt