"Eu chamo a língua portuguesa de uma casa comum dos sentidos diversos"
FOTO: Paulo Spranger

"Eu chamo a língua portuguesa de uma casa comum dos sentidos diversos"

Poeta, ficcionista, professor, o brasileiro Anelito de Oliveira esteve em Lisboa para lançar a Inmensa Editorial Portugal. O editor mineiro conversou com o DN sobre escritores, língua e miscigenação.
Publicado a
Atualizado a

Veio a Portugal para lançar a República das Rosas, de Edu Tolenda, livro que fala da ditadura militar brasileira?

Sim, e também A Habitante, de Viviane de Santana, que é um romance que já está aí nas livrarias. E temos também, a anunciar, um livro extraordinário, que é também um romance, chamado O Almoxarife Almaxerifado & Seu Glossário Viralatas. É um livro bem na linha, digamos assim, de Homem Sem Qualidades, de Robert Musil. É um livro de um autor brasileiro, chamado Carlos Antônio Leite Brandão, um dos nossos grandes intelectuais, inclusive, do campo da arquitetura e da filosofia, professor da Universidade Federal de Minas Gerais. Nós temos, então, três autores, já, dentro da nossa Inmensa Editorial Portugal.

E o livro da guineense Odete Costa Semedo vai ser lançado em Portugal também?

Sim, Odete Costa Semedo, com o seu livro A Palavra Grávida, faz parte de uma coleção, que é a coleção Infame Ruído, que tem 25 títulos, até o momento, no Brasil. Neste ano, chegaremos aos 75 títulos. Estamos produzindo, neste momento, no Brasil, mais 50 títulos dentro dessa coleção. Odete Costa Semedo faz parte, então, de um grupo de sete autores africanos que publicámos no ano passado. Neste ano, publicaremos mais dez autores africanos dentro dessa coleção. E nós estamos aqui em Portugal, agora, com a Inmensa Editorial Portugal, que é um braço da Inmensa Editorial Brasil, e o nosso trabalho é, exatamente, de estender essa nossa produção, escoar essa nossa produção para todos os países constitutivos da comunidade, enfim, da CPLP, da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa.

Esta coleção tem autores de vários países africanos, por exemplo o angolano João Melo, que foi colunista no Diário Notícias, mas não tem autores portugueses. Também querem divulgar autores portugueses?

Sim, nós teremos autores portugueses. O nosso trabalho editorial é contra-hegemónico. Ele se ergue, a partir, de preceitos económicos, naturalmente aplicados à cadeia produtiva do livro e da leitura, e, nesse sentido, o nosso interesse é pelas margens do Sul Global, especialmente.

Como entra o autor português nessas margens?

Entra muito a partir de uma dimensão que temos, e nos apraz muito tê-la, de Portugal como uma margem dentro do continente europeu. A margem que nos fez, inclusive, um pouco europeus, com o expansionismo, um pouco ibéricos, como gostamos de dizer, nesse transplante, então, da cultura portuguesa para a América. Estou falando especialmente da América do Sul, da América Latina. E para a África. Nós temos, sim, um compromisso de trazer essas vozes que estão aqui em Portugal, por exemplo, no norte, no centro do país, no Alentejo, no Algarve. Quando falamos, por exemplo, de um autor como José Craveirinha, Prémio Camões, moçambicano, o pai dele era do Algarve, como se sabe, e nós estamos já agenciando a publicação da obra de Craveirinha. Queremos, com isso, evidentemente, atender tanto ao nosso interesse de publicar moçambicanos, como de dialogar aqui com as margens de Portugal.

Portugal é um pouco a margem da Europa, historicamente. Portugal, seja na mestiçagem física, seja na mestiçagem cultural, foi mais longe do que outras potências coloniais?

Com certeza. Creio que seja um dado muito expressivo, explorado, com perspicácia já com o Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil. Como que, digamos, para usar uma palavra muito nossa, o molejo do português, o jogo de cintura, não passou despercebido a Gilberto Freire. Também a outros nossos grandes intérpretes da mestiçagem, que reverteram aquela resistência que vários intelectuais no Brasil, como Silvio Romero, no final do século XIX, tinham. Nós percebemos na mestiçagem, dentro da dinâmica editorial, da nossa Inmensa Editorial, um dado muito potente. As hibridações, as misturas, é isso que estamos buscando.

A Inmensa Editorial pode ser descrita como ideológica?

Se houver um bom sentido para a palavra ideológica, sim, nós temos uma perspectiva ideológica. Eu creio que, de um modo mais sistemático, seria muito mais contra-ideológica, tendo em vista que nós estamos falando da margem para o centro. As editoras que estão alinhadas com o neoliberalismo, e que colocam o lucro antes das pessoas, que se preocupam muito mais com o estrelato do que com anonimatos, é claro que estão alinhadas com o grande capital. O nosso alinhamento é exatamente com o micro, com a margem, então, nesse sentido é contra-ideológico.

A sede da Inmensa, fundada em 2003, é em São Paulo?

A sede é em São Paulo, e temos uma subsede em Belo Horizonte e escritórios também na vasta região de Minas Gerais, que é o Norte de Minas Gerais, nós estamos falando de 3 milhões e 600 mil pessoas. O Estado de Minas Gerais tem 22 milhões de habitantes. Então, nós temos esses números que aqui na Europa soam até extravagantes

Esta editora publica autores lusófonos, tem uma ambição de sair do Brasil, de chegar à África, de chegar à Europa, de chegar a Goa, a Timor-leste, se for possível. O Brasil é um gigante, não só um gigante lusófono. É um país que devia olhar mais para fora? Os brasileiros olham para fora? As elites brasileiras olham para o mundo?

Nós temos, é claro, um país que pode muito. Acho que dizer isto já é um lugar comum. Mas quando pensamos o Brasil em termos de relações internacionais vemos sempre um país que, do ponto de vista económico, opera muito aquém de suas possibilidades. Então, na Inmensa Editorial, nós pensamos, exatamente, em contribuir para as relações no âmbito da lusofonia. Eu acredito em heterofonia, se pudermos abusar aqui do neologismo. Eu acho que as críticas que se fazem à lusofonia tendem muitas vezes a relativizar a importância, por exemplo, de Portugal. Ela se atém muito a um protagonismo que esse luso estaria expressando e que, na prática, esse protagonismo não acontece nos países.

Ou seja, é uma língua policêntrica. É uma língua originada em Portugal, mas hoje uma língua de vários continentes?

Sim, sim, eu chamo a língua portuguesa de uma casa comum dos sentidos diversos. Então, creio que nós temos uma casa que é comum, que é a língua portuguesa, com seus sentidos diversos, com seus sotaques diversos, com tudo aquilo que, durante muito tempo, por preconceito, foi considerado dialeto, mas que hoje consideramos como línguas. E ter esse espaço comum é algo muito potente para nós. Na economia, nós estamos pensando sempre em oikos, em nomos. Então, organizar essa casa, esse oikos, de uma maneira mais produtiva, creio que é um papel que as editoras podem desempenhar, em geral, e que a Inmensa editorial está assumindo. Nós queremos conectar todo esse processo de ramificação, conectar pequenas editoras que têm muita dificuldade de sobrevivência na África, na Ásia, na América Latina. Então, queremos construir uma força a partir das nossas fragilidades. E esse é o nosso projeto.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt