Entre a história  e o mercado

O realizador de<em> Soldado Nobre</em> parte de uma fotografia da Primeira Guerra Mundial para revisitar a história do seu bisavô: a emoção da procura acaba por se ficar pela rotina de um empreendimento televisivo.
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Este texto sobre Soldado Nobre, de Jorge Vaz Gomes, a partir de hoje em duas salas - City Alvalade, Lisboa, e Casa do Cinema de Coimbra (segundo informações do Sapo Cinema) -, não pode deixar de ser contaminado por um equívoco inerente à atual conjuntura cinematográfica e, em particular, ao lugar das produções portuguesas no interior dessa conjuntura.

Estamos perante um exercício sugestivo, ainda que banal, de memória histórica. Assim, o narrador (que é também o realizador do filme) investiga uma fotografia de soldados que combateram na Primeira Guerra Mundial - procura confirmar a presença do bisavô, Francisco Nobre, na imagem e identificá-lo. Para lá da riqueza simbólica da fotografia, o trabalho narrativo define-se a partir de limites convencionais: uma voz off descritiva mais ou menos redundante em relação ao que é mostrado; o recurso a alguns testemunhos cuja montagem reforça uma lógica pitoresca de aproximação dos factos; enfim, a "materialização" do narrador enquanto duplo do próprio Francisco Nobre (vestido como soldado), num efeito figurativo cuja pertinência dramática fica por esclarecer, favorecendo mesmo uma involuntária dimensão caricatural.

De onde provém o equívoco? Não da sinceridade e, por certo, da emoção com que Jorge Vaz Gomes procura esclarecer a história do seu familiar. Resta saber se isso basta para gerar um objeto de cinema. Ou se não estamos perante um empreendimento televisivo de rotina que, infelizmente, não possui elementos vitais que a apresentação numa sala de cinema possa reforçar.

Seria abusivo tratar tal equívoco como exclusivo deste Soldado Nobre. Estamos mesmo perante um simples pormenor de um fenómeno que tem marcado os anos recentes da distribuição/exibição. Assim, os desequilíbrios de um mercado "comandado" pelas lógicas espetaculares, e também pelos valores de marketing, decorrentes de blockbusters e afins, tem levado a um salto para a frente (que se confunde, por vezes, com um salto para o abismo) de alguns títulos portugueses marcados por matrizes rotineiras ditas documentais.

Sistematicamente, tais títulos arrecadam números irrisórios de espectadores (esperemos que Soldado Nobre possa desmentir tal tendência), abrindo ainda mais uma ferida difícil de sarar. O que está em causa, entenda-se, não envolve qualquer juízo de valor a partir de tais números. Acontece que a proliferação de filmes "invisíveis", lançados de modo inevitavelmente discreto (porque não há meios para mais), vai reforçando, de modo incauto, a noção obscena de um "cinema português" orgulhoso da sua própria marginalidade.

Para lá dos filmes, fica adiado qualquer pensamento sobre políticas culturais de financiamento do cinema, dinamização da respetiva difusão e defesa dos pequenos distribuidores/exibidores. Tradicionalmente, há quem opte por explicar tudo pela "crítica" - tenho muita pena, mas mesmo que Soldado Nobre fosse uma obra-prima, todos esses problemas manifestar-se-iam de forma rigorosamente idêntica.

dnot@dn.pt

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