Cinco minutos na Mongólia com o papa Francisco
O escritor Javier Cercas não começa o seu mais recente livro, O Louco de Deus no Fim do Mundo, com “era uma vez” mas não anda distante, como se pode ler: “Tudo começou a 21 de maio de 2023, em Turim”. O autor espanhol conta que estava a dar autógrafos no Salão do Livro e um responsável da sua editora informa-o de que tem um representante do Vaticano à sua espera. A partir dessa nona linha, a narrativa de Cercas expande-se por 485 páginas, num registo de não-ficção que em muito faz lembrar o seu sucesso Anatomia de Um Instante, só que numa entrega à investigação sobre o papa Francisco. Desta vez não há uma tentativa de golpe de estado como em Anatomia, antes Cercas dedica-se a compreender o papa recém-falecido. Diga-se que a morte de Bergoglio coincidiu com o lançamento de O Louco de Deus, ambas situações do passado mês de abril.
Só também Javier Cercas pode começar o seu livro sobre um papa com a seguinte declaração, em jeito de introdução: “Sou ateu. Sou anticlerical. Sou um laico militante, um racionalista resistente e um ímpio rigoroso.” Em seguida acrescenta o objetivo do livro: “No entanto, aqui estou a voar para a Mongólia com o idoso representante de Cristo na Terra”. Sim, Cercas aceitara o convite que o representante do Vaticano lhe fizera em Turim. E continua com as revelações sobre a razão de um ateu aceitar um tal convite: “Embarquei neste avião para perguntar ao papa Francisco se a minha mãe encontrará o meu pai após a sua morte e dar-lhe essa resposta”. Para tal, só necessita de cinco minutos com Francisco, repete.
Poder-se ia dizer que não se justificaria escrever quase quinhentas páginas para ser capaz de ter por parte do papa uma ajuda no esclarecimento que a sua mãe deseja sobre a hipótese de existir a ressurreição, no entanto esse é o motivo que o escritor apresenta para seguir em frente e, no final, entregar ao leitor uma biografia de Bergoglio e de Francisco em que tudo é questionado e contado. Daí fechar essa justificação inicial com uma espécie de trocadilho com o título: “Sou um louco sem Deus a perseguir um louco de Deus até ao fim do mundo”.
Este livro é uma “recaída” sobre a ascendência em Javier Cercas, pois Anatomia de Um Instante devia a sua existência por querer entender a mentalidade da geração do seu pai enquanto este estava a morrer. Desta vez, é a mãe que está a aproximar-se da morte e que não deseja morrer sem a certeza de que reencontrará o marido quando falecer. Cercas, piedoso, oferece esta justificação para avançar na sua investigação sobre uma das figuras da Igreja Católica que mais marcaram o século XXI. Aceita-se a desculpa da mãe, mas pressente-se que o escritor quer descobrir o papel da Igreja, entender porque tantos acreditam no seu Deus, o que sustenta o enorme edifício da fé católica e, principalmente, quem é aquele religioso argentino vindo de tão longe para ser o primeiro papa jesuíta e sul-americano.
A biografia de Francisco é o que mais interessa a Javier Cercas e para a desenhar aceitará o estranho desafio de acompanhar o papa numa deslocação à Mongólia, um dos países do mundo em que os católicos são uma imensa minoria, apenas com uma promessa que não sabe se será cumprida: conversar com o Santo Padre sobre a pergunta da mãe. De capítulo em capítulo vai adiando qualquer revelação sobre a concretização, ou não, desse desejo; vai adensando as conjeturas sobre o Vaticano, a Cúria, os padres sem poderes e perdidos pelos cantos do mundo, a par dos cardeais importantes e decisores que habitam em Roma. Para fazer este exame à fé, que é o grande objetivo deste Louco de Deus, Cercas deambula por todo o cenário da Igreja Católica e, de forma criteriosa, utiliza o papa como o foco de luz que o pode iluminar e, ao mesmo tempo, desenhando a biografia possível de Francisco. O ateu Cercas não aceita uma explicação, busca várias opiniões e investiga tudo o que poderá esconder os mistérios que quer esclarecer. De vez em quando recorda o pedido da mãe, mas o que faz é agir como um detetive que procura respostas para esclarecer um dos maiores mistérios que existe entre os seres humanos: a fé.
Daí que além da biografia do papa, inscreva a sua autobiografia enquanto questionador da religião, e vá expondo num relato de cronista e num inquérito de ensaísta, transformando Francisco no protagonista que permite esclarecer essas dúvidas. O cenário que lhe permite esta grande investigação é a viagem à Mongólia que o Vaticano lhe oferece e na qual nunca existirá a promessa de ter direito aos cinco minutos de conversa com Bergoglio. Javier Cercas mantém esse suspense ao longo de todo o livro, enquanto vai descascando as várias camadas da Igreja e de como o papa Francisco lida com a instituição e a pretendeu mudar. Sem querer estragar surpresas, pode-se dizer que as três últimas páginas compensam de forma brilhante toda a curiosidade que se instalou no leitor sobre a demanda de Javier Cercas em nome da mãe!
O Louco de Deus no Fim do Mundo vem provar o talento de Javier Cercas, já reconhecido com traduções em mais de trinta línguas de obras como Soldados de Salamina, prémios internacionais e membro da Real Academia Espanhola. Este livro terá a tradução portuguesa em setembro pela Porto Editora.
EL LOCO DE DIOS EN EL FIN DEL MUNDO
Javier Cercas
Random House
485 páginas
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