O libreto está escrito em francês mas a música evoca, desde a abertura, a indomável sensualidade da Andaluzia. Como se Georges Bizet tivesse antecipado, em mais de meio século, os versos de Federico García Lorca (esse andaluz universal): "A Carmen está bailando/pelas ruas de Sevilha/Tem brancos os cabelos/e brilhantes as pupilas/Meninas, cerrai as cortinas!" Incapazes de resistir à sedução da fatal habanera, será de cortinas bem abertas sobre uma das óperas mais representadas de sempre que os espectadores assistirão esta 6ª feira à abertura de mais uma edição do ÓperaFest. No jardim do Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa, às 21 horas, repetindo nos dias 19, 21, 23 e 25 de agosto..Encenada pelo português Tónan Quito e com direção musical de Jan Wierzba, esta versão de Carmen conta com as interpretações de Cátia Moreso (impressionante no papel principal): Rodrigo Porras Garulo e Leonel Pinheiro (como Don José, o segundo nos espetáculos dos dias 21 e 23) Christian Luján (Don Escamiglio), Alexandra Bernardo (Micaela), Filipa Portela (Frasquita), Ana Rita Coelho (Mercedes) e Ricardo Rebelo Silva (Zuniga), entre outros. Para a diretora do Operafest, a soprano Catarina Molder, não poderia haver melhor maneira de abrir a programação deste ano:"Esta quarta edição começa com os grandes clássicos para chegar a todos os públicos, mas tem um mote: Entre o Céu e o Inferno: Do prazer supremo ao medo mais profundo. A Carmen é um bom exemplo disso mesmo porque a sua protagonista está condenada por querer ser uma mulher livre. Ela vai do céu da sedução, que não o chega a ser porque ela está sempre ameaçada pelo desejo dos homens, que acaba por a devorar, à morte na praça pública.".Catarina tem uma especial predileção pela obra de Bizet, que não viveu o suficiente para vê-la tornar-se um dos maiores sucessos de sempre da História do género: "Carmen é, até certo ponto, uma ópera feminista avant la lettre. Na verdade, as coisas não mudaram assim tanto desde o século XIX. Temos mais máquinas, mas continuamos a lidar com o machismo, com a violência de género, com o racismo, o desequilíbrio entre as situações de homens e mulheres. É uma ópera completamente atual, para além de ser uma obra-prima musical porque, aqui, Bizet já estava a dar os primeiros passos no sentido do verismo, ao mostrar o assassinato de uma mulher, à facada, em plena praça pública. São acontecimentos reais que acontecem a pessoas reais. E depois tem coros maravilhosos"..Este olhar sobre Carmen é, em boa parte, partilhado pelo encenador Tónan Quino: "Só não podemos dizer que seja um texto feminista porque a Carmen morre, é assassinada pelo amante preterido. A meu ver, para ser uma peça feminista, ela venceria e seguiria com a sua vida em liberdade. É uma mulher de grande sensualidade, mas mal entra em cena avisa os homens que é livre e que faz o que quer." O encenador reforça a atualidade da história: "No princípio temos uma cena de assédio fortíssima. Era assim no final do século XIX e continua a ser assim. Faz-nos pensar e, para além do mais, musicalmente é incrível.".Com uma longa carreira no teatro (entre outros trabalhos co-criou com Tiago Rodrigues, Entrelinhas, e com Pedro Gil, Fausta, de Patrícia Portela e dirigiu espetáculos como Um Inimigo do Povo; Ricardo III; Fé, Caridade e Esperança; Oresteia e Casimiro e Carolina), Tónan Quito estreia-se agora na encenação de ópera (um género que lhe é querido porque, em criança, ia muito com os pais, músicos): "Foi uma grande aventura porque é a primeira vez que faço isto, percebendo que, para além do trabalho de encenador com que estou familiarizado, aqui tenho de jogar também com a música, com o modo como tiramos partido da música, com os tempos para os cantores. É tudo muito diferente." Do teatro trouxe, no entanto, a necessidade de trabalhar as personagens com atores que, neste caso, também são cantores: "É uma peça com uma carga histórica muito grande, mas creio que, juntos, descobrimos qual é a nossa Carmen, tendo em conta também que o nosso espaço é ao ar livre e não um teatro de ópera convencional.".Para além de Carmen, serão ainda apresentados dois clássicos: Suor Angelica, de Puccini, e A Flauta Mágica, de Mozart (esta última para toda a família e em português). No primeiro (26 e 27 de Agosto, às 21 horas, também no jardim do MNAA), com direção musical de Miguel Sepúlveda e direção cénica de David Pereira Bastos, será a própria Catarina Molder a interpretar dois papéis, uma vez mais com o sacrifício feminino no centro da intriga, "que à maneira do mestre Puccini é de fazer chorar as pedras da calçada", brinca a soprano. Em causa está a tragédia de uma jovem da aristocracia que é banida pela família e encerrada num convento para expiar o "pecado" de ter tido um filho fora do casamento. Após sete anos de espera, finalmente recebe a visita de uma tia que da forma mais fria lhe diz que a criança tinha morrido. Em desespero, a protagonista Suor Angelica canta uma canção de embalar ao filho morto e decide suicidar-se para tentar encontrar na morte, a criança que lhe fora roubada em vida: "Vou passar a noite a chorar - diz Catarina - porque se as pessoas choram com A Tosca, aqui será muito mais dilacerante. Não podemos perder de vista que a ópera reflete uma sociedade em que o sacrifício é constantemente pedido às mulheres. Na época de Puccini, uma mulher não podia ser compositora ou artista, se quisesse ser atriz tratavam-na como uma prostituta. Por isso, é que os compositores gostam tanto delas, a tragédia corre bem em palco. Até certo ponto é catártica." Com Suor Angelica será apresentada em estreia absoluta, a primeira ópera do jovem compositor português Francisco Lima da Silva, Rigor mortis, a partir de um conto de Domingos Monteiro..A 2, 3 e 5 de setembro será de vez de A Flauta Mágica, com direção musical de Tiago Oliveira e direção cénica de Mónica Garnel. "Uma vez mais - sublinha Catarina Molder - temos um texto de grande atualidade, em que Mozart, que era maçon e um homem do Iluminismo, se mostra muito crítico de instituições como a Igreja Católica ou mesmo das pressões abusivas que muitas vezes as famílias exercem sobre as crianças.".Mas nem só de clássicos vive o Operafest: A necessidade de renovar o público da ópera em Portugal (que, como admite Catarina Molder, "está bastante envelhecido") passa também por apostar em novos espetáculos, criados de raiz para o festival. Para além da referida peça de Francisco Lima da Silva, teremos a performance de Gustavo Sumpta "Forças Ocultas", no Teatro Romano (dia 1 de Setembro, às 21, 21. e 22.20.).A aposta na renovação do género não passa apenas por novos espetáculos, Uma das singularidades deste Festival está no facto das peças, mesmo as mais clássicas, serem encenadas por pessoas com carreira feita no teatro ou na música, mas que se estreiam na ópera. "No ano passado - conta ainda a diretora - apurámos que 37% do nosso público nunca tinha ido à ópera. Ficámos muito contentes: É isto que queremos. Dessacralizar a ópera. levá-la para espaços mais informais e aprazíveis e conquistar um público novo.".Para além dos espetáculos, o Operafest, que dura até 9 de setembro, inclui conferências e cursos livres, o ciclo cineópera em colaboração com a Cinemateca Portuguesa (onde já se antecipa o centenário da cantora mais mítica de sempre, Maria Callas), aulas de canto para amadores e o único concurso de ópera contemporânea do país o Maratona Ópera XXI (no Centro Cultural de Belém, a 6 de Setembro, às 21 horas). A encerrar, de volta ao Jardim do MNAA, a Rave Operática, com Margarida Campelo, PZ e DJ Marfox, onde a proposta é misturar a Carmen ou a famosa ária da rainha da noite de A Flauta Mágica, com ritmos africanos do kuduro, kizomba, funaná e tarraxinha ou sons urbanos como techno e house..Com o Teatro Nacional de São Carlos, palco de honra da ópera em Portugal desde o século XVIII, em estado quase vegetativo, Catarina Molder mostra-se otimista com a energia replicativa de iniciativas como a que dirige: "Começam a aparecer focos de ópera por todo o país, são companhias independentes que procuram colmatar silêncios inexplicáveis por parte dos teatros, por exemplo." Com um gosto evidente pela Comunicação e pela pedagogia (como mostrou na série da RTP, Super Diva), a soprano não pára e revela-nos andar "a procurar financiamento para uma série de ficção, mas com ópera, chamada Cortina Vermelha. Já tenho a música toda feita e gravada e as histórias estão fantásticas, Mas quero gravar com pessoas muito boas e para isso é preciso financiamento.".Mas, por ora, quem manda no palco é a ousadia de Carmen. À beira do Tejo como numa plaza de Sevilha, a sedutora cigana vem lembrar-nos que "o amor é um pássaro rebelde que ninguém pode domar"..dnot@dn.pt