Graças ao trabalho de alguns distribuidores e exibidores do chamado circuito independente, as salas comerciais continuam a mostrar filmes mais ou menos “antigos”, celebrando a pluralidade da história do cinema. Agora é a Medeia Filmes que, na sua sala de Lisboa (Nimas), propõe um reencontro com a obra de Buster Keaton (1895-1966), um dos génios da comédia de Hollywood nos tempos heroicos do mudo - serão cinco longas-metragens rodadas entre 1925 e 1928, em cópias restauradas 4K, com exibições a partir de amanhã, até 6 de agosto.Prolongando as muitas curtas que protagonizou a partir de 1917 (a par de Mack Sennett, Charles Chaplin, Harold Lloyd, etc.), os filmes de Keaton foram evoluindo no sentido de explorar as virtudes, e também os limites, dessa nova arte narrativa que era o cinematógrafo. Daí o destaque obrigatório para The Cameraman/O Homem da Manivela (1928), correalizado com Edward Sedgwick, em que a sua personagem se envolve, literalmente, com os poderes da câmara cinematográfica.As confusões que se seguem resultam do facto de ter adquirido uma câmara de filmar, não tanto para observar o mundo à sua volta, antes para se aproximar da personagem interpretada por Marceline Day, secretária no setor de atualidades da Metro Goldwyn Mayer - este foi, aliás, o primeiro título de Keaton para a MGM (a ligação com esse estúdio viria a marcar de forma drástica a sua carreira, já que viu a sua autonomia criativa cada vez mais limitada, acabando por ser despedido em 1933).O efeito cómico nasce do paradoxo que se estabelece entre a ingenuidade do cameraman e os inesperados efeitos gerados pelas próprias imagens que, de modo cândido, vai registando. O cinema, “espelho” do mundo, discutia implicitamente a sua relação criativa com esse mesmo mundo, expondo a ambivalência potencial de qualquer imagem (lembremos a curiosa proximidade temporal deste “homem da manivela” com a experiência documental de Dziga Vertov, na União Soviética, em 1929, intitulada O Homem da Câmara de Filmar). . Os outros quatro títulos a exibir são imediatamente anteriores e ilustram o período de maior liberdade de produção de Keaton (sob a égide das Buster Keaton Productions). São eles: Seven Chances/As Sete Ocasiões de Pamplinas (1925), Go West/O Rei dos Cowboys (1925), Battling Butler/Boxeur... por Amor Dela (1926) e The General/Glória de Pamplinas (1926), neste último repartindo a realização com Clyde Bruckman - o cognome de “Pamplinas” foi adotado, na altura, nos mercados espanhol e português.Se há uma maneira sugestiva de sugerir os pontos de contacto destes quatro filmes (obviamente também aplicável a The Cameraman), será através da solidão das personagens de Keaton. Entenda-se: trata-se, antes do mais, de uma solidão social, já que ele não “encaixa” nas regras mais ou menos compulsivas do mundo (dito) normal. Com uma singela dimensão romântica: quase sempre, Keaton age para poder estar com alguém que lhe desperta a peculiar e sedutora estranheza do impulso amoroso. No seu esquematismo, o título português Boxeur... por Amor Dela acaba por condensar a tragédia íntima da sua personagem: arriscar ser pugilista para ter a aceitação da sua bem-amada...Tristeza e alegriaPor vezes, diz-se que a infinita tristeza que perpassa pelo rosto de Keaton, mesmo nos momentos mais exuberantes da sua existência, é também uma forma de envolver o espetador: como não deciframos o que ele está a sentir, vamos construindo a personagem através das emoções que nos desperta ou faz evocar...Assim será, embora seja preciso acrescentar que os seus gestos e ações não são propriamente abstratos. No caso de Seven Chances, depois da rejeição da namorada, ele tenta mesmo arranjar uma noiva de modo a garantir uma espetacular herança; por sua vez, em Go West vive a descoberta do velho Oeste através dos mais bizarros processos de (in)adaptação - e escusado será sublinhar que, como grande mestre do burlesco, Keaton afirma-se como um metódico encenador da tensão entre o papel social do indivíduo e a sua verdade mais secreta.Nesta perspetiva, The General (também por vezes citado como Pamplinas Maquinista) é a apoteose política do universo “keatoniano” ou, talvez melhor, uma declaração antipolítica. Enredado nas convulsões da Guerra Civil, ele vive a odisseia da sua própria locomotiva (de nome “General”) como a aventura de quem não pertence a nenhum credo, a não ser o que nasce do amor pela sua querida Annabelle (Marion Mack) - a tristeza de tudo isso confunde-se com a alegria do cinema. .Eduardo Serra: O cinema é uma arte da luz.'Dept. Q' e outras séries escocesas a não perder de vista