Está uma perfeita jagoz. Sentada frente ao mar da Ericeira, munida de agulhas de tricot e lãs coloridas, Alice Vieira dá conversa a quem passa e lhe traz notícias frescas do centro da vila, como se fazia num tempo anterior às redes sociais. É como sempre ali tivesse estado e fosse, afinal, uma jagoz, nome antigo que, segundo Leite de Vasconcelos (na obra Etnografia Portuguesa) se dava aos naturais deste lugar onde, como se assinala na via pública, a Rainha Dona Maria Pia vinha a banhos sem suspeitar que, em 1910, aqui veria terra portuguesa pela última vez. "As pessoas pensam que agora estou sempre de férias porque vivo aqui", conta-nos a escritora. "Mas a verdade é que aqui sentada, na esplanada onde venho todas as manhãs, estou a escrever livros mentalmente e a inspirar-me nas conversas que ouço e que são deliciosas.".A verdade é que, aos 80 anos, Alice não pára nem manifesta qualquer intenção de o fazer. Acaba de ser distinguida com o Prémio Ibero-americano SM de Literatura Infantil e Juvenil, atribuído pela Fundação SM, no México, nas palavras do júri pelo "estilo pessoal que transcende gerações e culturas" e pela forma como a autora "constrói de forma verosímil personagens infantis e juvenis cativantes, com sentimentos profundos e complexos". Eleita entre 14 escritores finalistas da Argentina, Chile, Colômbia, Espanha, México, Portugal e Uruguai, Alice tornou-se, assim, a primeira escritora portuguesa a receber tal distinção. "O prémio agrada-me por isso mas também pelos 30 mil dólares, que são muito simpáticos", diz numa das muitas gargalhadas desta conversa. "Agora estou a ponderar se vou ou não ao México receber o prémio pessoalmente ou não. É uma viagem um bocado longa.".Alice acaba de lançar Pó de Arroz e Janelinha, um "dueto" com Manuela Niza Ribeiro, escrito durante a pandemia. Trata-se de um livro escrito entre as idas à cozinha e o fascínio pelos alfinetes de lapela de Graça Freitas, que" alegravam" os relatórios da Direção Geral de Saúde, nos dias mais sinistros da nossa vida coletiva, a que se somará em breve um novo título que a autora tem todo escrito na cabeça: "Estou aqui sentada com o tricot (farto-me de fazer mantas para mim, para a família e para as amigas) e vou desenvolvendo a intriga, as personagens. Depois quando passo ao papel, muita coisa muda. Às vezes, as personagens tomam vida e vontade próprias e mudam tudo o que eu congeminara." Para além das obrigações com a editora, Alice Vieira continua a escrever com regularidade para vários jornais e revistas até porque considera que "uma vez jornalista, sempre jornalista." E se alguém duvida, é vê-la a apanhar palavras, expressões, gestos na esplanada com o gosto de quem, ali na praia, recolhe conchas.."Os diálogos que ouço aqui são deliciosos e uma constante fonte de inspiração. Adoro conversar com os carteiros, com os taxistas, com as pessoas, de uma forma geral. Sempre fui assim, mas ainda há quem se surpreenda com isso. Esperavam talvez alguém mais inacessível, não sei." Quando fala de carteiros, Alice está a falar dos que à sua casa da Ericeira levam cartas e postais do mundo inteiro. Ainda. Como se o mundo não tivesse cedido há muito a vários meios bem mais instantâneos, e também mais inócuos, de comunicar. Isto porque Alice integra um grupo de post crossing, que reúne aficionados de postais ilustrados dos mais diversos países, a que há que juntar naturalmente os seus muitos leitores, também eles provenientes de muitas latitudes já que os seus livros estão traduzidos para muitas línguas: "Recebo muitas cartas da Rússia, por exemplo, e ainda hoje estou para saber por que razão eles gostam tanto do meu livro A Espada do Rei Afonso.".Da troca de correspondência nascem, por vezes, amizades que saem do papel e "é muito engraçado". Mas Alice sente que desde o fulgurante êxito de Rosa, minha irmã Rosa (o seu primeiro livro, publicado em 1979), os leitores continuam a ser muitos, mas mudaram de perfil, hábitos e expressões: "Eu diria que os miúdos de hoje têm menos vocabulário e também menos hábitos de leitura. Como autora, tenho de estar preparada para essa realidade: há dias percebi, por exemplo, que não posso usar palavras como regabofe porque eles pura e simplesmente não sabem o que é. Nunca ouviram o termo. Como este, muitos outros" E acrescenta com a bonomia costumeira: "Sabem outras coisas que nós nem sequer sonhávamos.".Mas hoje, neste mundo tão mudado, como ontem, a obra infantojuvenil de Alice é um caso sério de sucesso. Muitos dos seus livros foram traduzidos para várias línguas, como alemão, búlgaro, castelhano, galego, catalão, francês, húngaro, holandês, russo, italiano, mandarim, servo-croata, coreano, ou bengali.. Ao Prémio de Literatura Infantil Ano Internacional da Criança, conquistado em 1979, logo com o seu primeiro livro, seguiram-se muitos outros como o Grande Prémio Gulbenkian de Literatura para Crianças e Jovens (1994), o Prémio Literário Maria Amália Vaz de Carvalho (2007) ou o título de melhor livro em língua portuguesa editado no Brasil (2016). A sua escrita ficcional para crianças e adolescentes abrange temáticas tão diversas como episódios inspirados na História, textos inspirados em grandes questões da atualidade - o apelo ao consumo desenfreado,, a influência da televisão na educação infantil - e casos relacionados com sentimentos comuns a todas as gerações e geografias: a amizade, a solidão, as relações familiares, as relações entre crianças e adultos (Os olhos de Ana Marta) ou a infância em diálogo com a velhice (Às dez a porta fecha; Um fio de fumo nos confins do mar)..Alice Vieira recebeu em 1984, por Este Rei que eu escolhi, o Prémio de Literatura para Crianças / Melhor Texto do Biénio (1983-1984) da Fundação Calouste Gulbenkian. Dez anos mais tarde foi candidata ao Prémio Hans Christian Andersen da IBBY (International Board on Books for Young People), tendo o seu livro Os olhos de Ana Marta sido escolhido para a lista de honra; foi de novo candidata ao mesmo prémio em 1998. Em 1996 foi-lhe atribuído, pelo conjunto da sua obra, o Grande Prémio de Literatura para Crianças da Fundação Calouste Gulbenkian. Em 1992 e 1998 as traduções de Rosa, minha irmã Rosa e Os olhos de Ana Marta, respetivamente, foram nomeadas para o «Deutscher Jungendliteraturpreis» (Prémio Alemão de Literatura para a Juventude)..Mas engana-se quem pense que a sua escrita se destina apenas aos mais novos. Na sua vasta bibliografia constam títulos para adultos, nomeadamente nas áreas da crónica, do diário e da poesia. São os casos de Esta Lisboa (com fotos de António Pedro Ferreira), Bica Escaldada (crónicas); Pezinhos de Coentrada (crónicas), Dois Corpos Tombando na Água (poesia ) - Prémio Literário Maria Amália Vaz de Carvalho (2007); Tejo (com fotos de Neni Glock); O Que Dói às Aves (poesia ); O Que se Leva Desta Vida (crónicas); Os Profetas (romance ); O Mundo de Enid Blyton; O Livro da Avó Alice; Os Armários da Noite (poesia, finalista do Prémio PEN Clube); Só Duas Coisas Que, Entre Tantas, Me Afligiram. Mais recentemente, em parceria com Nélson Mateus, publicou Diário de uma Avó e de um Neto Confinados em Casa (edição Casa das Letras), que chegou em tempo recorde à segunda edição. Como os dois contavam ao DN, quando da publicação do livro: "este diário a duas vozes (...) também mostra como se podem entreajudar duas pessoas muito diferentes (dizem os próprios), com vivências que também o são. "No primeiro confinamento", conta Alice , "o Nélson ensinou-me a fazer videochamadas, o que se revelaria essencial para mim." Em troca, contou a esta espécie de "neto adotivo" um monte de histórias sobre tempos em que, imagine-se, nem televisão havia para encher os dias com um pouco mais de mundo. "Claro que há sempre temas possíveis para conversas de avós e netos", garante Nelson. "Basta haver vontade." (DN, 27/12/2021).Por causa da extensão e sucesso da sua obra, Alice deu várias vezes a volta a Portugal em escolas: "Agora vou menos porque custa-me mais a deslocar. Adorava que tivessem inventado já o teletransporte, como víamos na série Espaço 1999, mas, pronto, não aconteceu. Vou aqui na zona de Mafra e à Universidade Sénior aqui da Ericeira. tenho muito gosto, só lamento que só tenha alunas. Não há homens." Ao longo desses anos a percorrer o país (e não só), a escritora acumulou um bom punhado de histórias, umas ternurentas, outras desconcertantes, como aquela em que uma aluna fez questão de ler previamente um trabalho que fizera sobre a convidada: "Imagina o meu espanto quando comecei a ouvir: Alice Vieira nasceu em Braga (é mentira, nasci em Lisboa) é ceguinha de nascença e sobreviveu com grande dificuldade graças ao seu lugar de peixe. Eu disse-lhe: Olha bem para mim, achas que sou essa? A resposta dela foi pronta: Era o que lá estava. Por lá, imagino eu, entenda-se a internet, onde também se fala de uma Maria Alice Vieira, dinamizadora de uma associação de cegos." E conclui: "O pior foi a reação da professora, que me disse: Não tive coragem de lhe dizer alguma coisa. Ela teve tanto trabalho. Mas qual trabalho? Ela limitou-se a copiar da net.".Do que Alice não abdica é de escrever as suas crónicas para jornais e revistas. Embora tenha deixado as redações no princípio da década de 1990, continua a sentir-se jornalista no modo de ver e sentir o mundo. O que não é de admirar já que começou nestas lides, ainda adolescente, ao colaborar no «Juvenil» do já desaparecido Diário de Lisboa, suplemento que divulgou as primeiras tentativas literárias de muitos jovens talentos de então e foi coordenado por Alice Vieira entre os anos de 1968 e 1970. Em 1975, tornou-se jornalista profissional aqui no Diário de Notícias, onde, entre outras funções, coordenou a secção «Cultura / Arte e Espectáculos» e dirigiu o suplemento infantil «Catraio», que contava com contribuições de alunos das escolas de todo o país. Ainda no DN, a partir de 1981, foi responsável por uma rubrica de crítica literária infantojuvenil - «Ler(zinho)» - e desenvolveu uma página semelhante no «Guia de Pais e Educadores» da revista Rua Sésamo..Embora tenha deixado o DN para se dedicar a tempo inteiro à escrita literária, mantém no entanto colaboração regular em diversos periódicos e em revistas femininas. Uma rotina de que não abdica, tal como não desiste de falar aos jovens sobre um tempo que eles nem sequer imaginam ("e ainda bem", sublinha) em que o poder não dava tréguas a jornais e jornalistas: "Fiquei com muitas provas de censura do Diário de Lisboa e às vezes mostro-as aos miúdos. Um deles pegou numa e ao ver o traço do lápis azul que abarcava todo o texto, diz-me: Ah, mas consegue-se ler à mesma, contornando o risco. Lá lhe tive explicar que o lápis azul significava que pura e simplesmente não se podia publicar. Estava censurado.".No vespertino Diário de Lisboa (onde conheceu o marido, Mário Castrim, pai dos seus dois filhos, Catarina, também escritora e jornalista, e André), Alice viveu momentos caricatos relacionados com a Censura: "Hoje rimo-nos porque havia situações completamente caricatas mas era dramático e revoltante. Com o DL, que era considerado um jornal da oposição ao regime, eles ainda faziam pior. Lembro-me que, certa vez, os cortes eram tantos, que enchemos a primeira página com receitas de culinária para os leitores perceberem nas entrelinhas o que tinha acontecido. Quando o Papa Paulo VI veio a Fátima, mas não esteve em Lisboa para não dar o seu aval ao regime, não se podia escrever as coisas mais banais. Ou quando veio cá a Grace Kelly, eu escrevi que ela era filha de um pedreiro que se tornara milionário e eles cortaram, nem sequer percebi porquê.".A ação quotidiana e insidiosa da Censura era complementada pela vigilância apertada aos hábitos dos jornalistas, o que incluía escutas telefónicas, o que, mais uma vez, provocava equívocos, hoje cómicos, na época assustadores: "Certa vez, eu tinha estado a fazer uns bolos que tinham o nome de russos e liguei para uma prima minha a dizer: Já vão aí os russos. Quando desci a escada, tinha uma brigada da PIDE à minha espera. Vi-me aflita para lhes explicar que estava a falar de bolos e não de pessoas.".dnot@dn.pt