Longe, a mais de 22 mil milhões de quilómetros de distância do Sol, o objeto afasta-se da nossa estrela a 61 mil quilómetros por hora. Partiu da Terra a 5 de setembro de 1977, atravessou o sistema solar, para superar Plutão em 1999. No presente, evolui no espaço interestelar. Em 2025, todos os sistemas a bordo se extinguirão. Após isso, os mais de 700 quilos da sonda espacial Voyager I e da sua irmã gémea Voyager II, também lançada pela NASA em 1977, continuarão o seu caminho rumo às estrelas. Nesse futuro próximo, já inoperacionais, as sondas manterão em aberto um dos objetivos da sua missão, a de entregarem a hipotéticas formas de vida extraterrestres um testemunho do nosso mundo. A bordo das Voyager seguem dois discos fonográficos de cobre banhados a ouro. Não é no minério que reside o tesouro endereçado aos céus. A dupla de cápsulas do tempo acolhidas nas sondas, guardam para a posteridade registos da Terra em imagens e sons. Os sulcos de gravação dos Voyager Golden Record zelam pela voz de uma criança de seis anos que saúda eventuais ouvintes do disco. Ao "olá das crianças do planeta Terra", pronunciado pelo pequeno Nick, juntam-se trechos musicais de Bach, Mozart, Beethoven e Chuck Berry, este, com a promessa de agitar o pó das estrelas ao ritmo de Johnny B. Good. O tesouro terrestre reúne o canto das baleias, o som do beijo de uma mãe ao seu filho e a saudação em 55 línguas antigas e modernas (língua portuguesa incluída), música do Azerbaijão, uma mensagem endereçada pelo presidente dos Estados Unidos Jimmy Carter e do secretário-geral das Nações Unidas Kurt Waldheim uma página de Princípios Matemáticos da Filosofia Natural, da autoria de Isaac Newton e, mais prosaicas, fotografias do quotidiano dos humanos..Também nos sons à boleia dos Voyager Golden Record, soam os passos e o riso de um humano. No caso vertente, a gargalhada de um homem que olhou para o cosmos como uma grande casa a merecer exploração. O astrofísico, escritor e divulgador científico norte-americano Carl Sagan, falecido em 1996, perpetuou-se no disco que viaja nos territórios distantes da nossa galáxia. Sagan, da nova-iorquina Universidade Cornell, chefiou o comité que selecionou as 115 imagens e centenas de sons organizados nos discos das Voyager. Com Sagan viaja a voz do seu filho, Nick Sagan, na mensagem de saudação em nome das crianças da Terra. Também de Sagan são as palavras que descrevem os discos das Voyager como "garrafas" a vogarem no "oceano cósmico"..Sagan pertenceu a uma categoria de humanos que, há centenas de anos, lança aos oceanos e mares, cápsulas do tempo portadores de mensagens, ora desesperadas, ora esperançosas. À expressão "uma mensagem numa garrafa" cola-se mais do que os enlevos românticos de escritores como o norte-americano Nicholas Sparks e o seu Message in a Bottle, ou o travo intenso a aventura de MS Found in a Bottle, obra saída do punho de Edgar Allan Poe. Há séculos que a garrafa lançada ao mar é também sinónimo de investigação científica. Assim o foi para o biólogo marinho George Parker Bidder, nascido em 1863 em Londres, homem particularmente interessado no estudo das esponjas marinhas e nas correntes oceânicas profundas..No início do século XX, Bidder desenvolveu um sistema de flutuação para garrafas, capaz de as manter em movimento a poucos centímetros dos fundos marinhos. O cientista procurava provar o fluxo com o sentido oeste/leste das correntes do Mar do Norte. Fê-lo lançando às águas mais de mil garrafas a partir da costa inglesa. Dentro dos recipientes, seguia um postal assinado por George Parker Bidder, com um pedido formulado em inglês, holandês e alemão. A quem encontrasse a garrafa, pedia-se a sua devolução à britânica Marine Biological Association, contra a recompensa de um xelim. Uma restituição que devia seguir acompanhada da resposta a várias perguntas: "onde foi encontrada esta garrafa?", "a que profundidade?" (no caso de navios de arrasto) e "data em que foi encontrada?". Perguntas que numa manhã de abril confundiram Marianne Winkler, não pela formulação do questionário, antes pela data que o acompanhava. Ao passear numa praia de Amrum, ilha no norte da Alemanha, Marianne deparou-se com a garrafa na linha de rebentação do mar. Ao desenrolhar o objeto percebeu que o passado lhe tocava nas mãos. A garrafa navegava no Mar do Norte há 108 anos e 138 dias. Em 2015, Marianne Winkler viu o seu achado figurar no Guinness World Records com o estatuto de "mensagem mais antiga numa garrafa". O objeto fora lançado ao mar a 30 de novembro de 1906..O mesmo Mar do Norte assistiria no início de fevereiro de 1916 à tragédia do zepelin L19, ao serviço da força aérea alemã no decorrer da Primeira Guerra Mundial. Para a tripulação do engenho voador, a noite de 31 de janeiro fora de batalha inflamada nos céus ingleses, sobre a cidade de Birmingham. Danificado pela contenda, açoitado pela tempestade, o zepelin, comandado por Odo Löwe, despenhou-se no mar. Face ao abismo da aeronave, as águas geladas conheceram uma mensagem endereçada em garrafa. O relato derradeiro da tripulação foi lavrado a 2 de fevereiro, numa localização 40 quilómetros a norte da ilha de Ameland, nos Países Baixos..No início do século XX, poucos meses após iniciar a sua experiência, George Parker Bidder provou a hipótese que sustentara. A corrente marinha fluía com sentido oeste/leste no Mar do Norte, assim o demonstravam inúmeras garrafas encontradas no litoral da Alemanha e Países Baixos, entretanto devolvidas. Em 1916, poucos semanas após conhecer as ondas do mesmo mar, a garrafa que guardava o destino da tripulação do L19 deu à costa num areal sueco. O posterior resgate encetado pela marinha alemã revelou-se infrutífero. A tripulação sucumbira. Longe das atribulações terrenas, as palavras de Nick Sagan deslizarão rumo a um hipotético encontro longínquo. Dentro de 40 mil anos as Voyager singrarão no vazio nas proximidades das estrelas Gliese 445 e Ross 248 e, daí, mais além..dnot@dn,pt