Chapéus de sangue. A moda do século XIX dizimou milhões de aves
Um bloco de gelo com perto de 140 quilos preservou o corpo de Martha na viagem ferroviária de 600 quilómetros, empreendida entre Cincinnati e Washington, onde seria entregue à ciência. Uma razão pesava na empresa de transportar para os museus do Smithsonian uma pomba-passageira que recebeu o nome da primeira-dama dos Estados Unidos, Martha Washington. A ave columbiforme que morrera a 1 de setembro de 1914 no jardim zoológico de Cincinnati, era o último exemplar de uma espécie considerada, um século antes, como a mais abundante dos Estados Unidos. No início da 1800, perto de cinco mil milhões de Ectopistes migratorius pululavam nos céus norte-americanos.
Na época, considerava-se uma impossibilidade extinguir a população de pombos que tingia de cinza o horizonte em frequentes migrações. O naturalista e ornitólogo John James Audubon arriscava afirmar que nenhuma espécie de ave norte-americana seria conduzida à extinção. Com alguma ingenuidade ou ignorância, cria-se na autoperpetuação das espécies, independentemente da pressão a que fossem sujeitas. A desflorestação, a degradação de ecossistemas, a urbanização e a caça, ditaram a sorte dos pombos-passageiros. Em 1901, era abatido o último exemplar selvagem. Alguns exemplares foram mantidos em cativeiro.
Longe, no continente africano e na Península Arábica, o século XIX assistia à caça feroz de avestruzes selvagens, perseguidas a cavalo. Em 1807, Paris recebeu mais de 500 quilos de penas da cauda da avestruz, importadas a partir de rotas instaladas no Norte de África. Ao longo de todo aquele século, o comércio de aves, particularmente as exóticas, cresceu exponencialmente. No início de 1884, perto de 7000 aves-do-paraíso foram importadas pela Grã-Bretanha. No mesmo ano, da Índias Ocidentais (Caraíbas) e do Brasil saíram 400 000 espécimes de aves exóticas. Nos Estados Unidos, o comércio de aves atingiu os 5 milhões de exemplares em 1886. Faisões, pavões, marabus, mergulhões de crista, garças brancas e garças reais, estavam entre as dezenas de espécies sujeitas à mortandade, endereçada a uma indústria próspera ao longo de todo o século XIX, primeiros decénios do século XX, a chapelaria.
A moda chapeleira europeia e norte-americana impunha chapéus de abas largas, ornados com flores, seda, fitas, plumas, penas e pássaros exóticos empalhados. Na milionária indústria chapeleira laboravam centenas de milhares de mulheres. Em 1889, Londres e Paris empregavam mais de 8000 mulheres em fábricas de chapelaria. No virar dos séculos XIX para o XX, 83 000 pessoas, maioritariamente mulheres, trabalhavam na indústria chapeleira de Nova Iorque. Em Londres, o surgimento de grandes lojas de departamentos como o Whiteleys, Peter Robinson e Harrods, com as suas coleções em constante rotação, pressionava o mercado da penas e plumas com fins decorativos.
DestaquedestaqueEntre 1870 e 1920, o Reino Unido importou 18 000 toneladas de plumagens e penas de aves.
A Inglaterra vitoriana e a América do Norte exigiam um número crescente de aves. O naturalista e ornitólogo William Henry Hudson testemunhou na capital inglesa, em 1807, uma venda com 80 mil papagaios e 1700 aves-do-paraíso. O zoólogo e poeta norte-americano William Temple Hornaday calculou que um mercado londrino oferecesse, no período de nove meses, as carcaças de 130 mil garças. Entre 1870 e 1920, o Reino Unido importou 18 000 toneladas de plumagens e penas de aves. No seu auge, no final do século XIX, o comércio de aves, para suprir a demanda da indústria chapeleira, movimentava 20 milhões de libras anuais. Um comércio lucrativo que não encantava todas as mulheres. Na época, uma jovem nascida no ano de 1855, na cidade de Lancaster, começava a erguer a sua voz contra o uso de plumas e penas com fins decorativos e de moda, assim como a caça que não servisse um propósito alimentar.
Emily Williamson, após casamento com o antropólogo Robert Wood Williamson, em 1882, mudou-se da sua terra natal para a cidade de Londres. Na capital inglesa, Emily assistia ao número crescente de aves abatidas com o propósito de servir a indústria da moda. O facto mereceu-lhe uma exposição à União Britânica de Ornitólogos, embora sem sucesso. Como resposta, Emily fundaria em 1889 a Sociedade para a Proteção das Aves, um grupo de mulheres que assinava um compromisso comum, o de repudiarem adornos com penas ou plumas de aves, exceto as abatidas para alimentação e as penas da cauda das avestruzes, então criadas em quintas para o efeito.
A luta contra a demanda predatória de aves robusteceu em 1891 com a união da organização de Emily Williamson à da homóloga dirigida pela britânica Eliza Phillips, ativista na defesa dos direitos dos animais, particularmente no repúdio do comércio de penas e peles. Entre 1891 e 1899, o número de membros da Sociedade subiu de 1200 para 20 000. Fileiras que também engrossaram com o contributo masculino, entre eles o do já citado William Temple Hornaday e o ornitólogo Alfred Newton. Paralelamente, Emily alargava o âmbito do seu trabalho social. Ainda em 1891, fundou a Gentlewomen's Employment Association, em Manchester, com a finalidade de custear os estudos de jovens mulheres.
No terreno, Emily e Eliza multiplicavam ações para a salvaguarda de aves em risco de extinção, nomeadamente a população de garças, assim como as suas fontes de alimentação. Em 1897, ano em que a Sociedade distribuiu mais de 50.000 folhetos, empreendeu a campanha Bird Food in Winter num apelo à não utilização de bagas como elemento decorativo no inverno. Bagas que eram fonte de alimento de inúmeras espécies de aves. Mil novecentos e quatro assinalou um marco na Sociedade dirigida por mulheres, ao receber o reconhecimento Real. Em 1921, a Sociedade Real para a Proteção das Aves via aprovada a Lei de Importação de Plumagem, proibindo a importação para o Reino Unido de peles de aves exóticas. Emily e Eliza ampliavam os objetivos da instituição que criaram, ao fundarem as primeiras reservas para aves, controladas por vigilantes. Atualmente a instituição gere mais de 200 reservas naturais no Reino Unido.
Em 1869, o britânico Arthur Douglass, após servir na marinha britânica, instalou-se na África do Sul para aí inventar a incubadora de ovos de avestruz. Com a inovação, as quintas expandiram os rebanhos de aves em detrimento da criação de ovelhas. Em breve, o comércio de penas de avestruz de cativeiro, poupadas ao abate, sobrepôs-se ao das congéneres selvagens, vítimas de caça implacável. Em 1880, as penas de avestruz constituíam a quarta maior exportação da África do Sul, depois do ouro, diamantes e lã.
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