"Trocava os meus sete romances por um filho"

'Homens imprudentemente poéticos' é o título do novo romance de Valter Hugo Mãe. Chega às livrarias terça-feira e é surpreendente na reinvenção da língua portuguesa, no tema e cenário.
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A coincidência de completar 20 anos de carreira e ter um novo romance, 'Homens imprudentemente poéticos', poderia não ter acontecido pois foi um parto difícil para Valter Hugo Mãe. Di-lo abertamente nesta entrevista sobre a inimizade de dois artesãos japoneses, um texto que recomeçou dezassete vezes: "Em algumas versões já tinha passado da página 100."

O esforço valeu a pena, pois este novo romance do autor é - mais uma vez - tão diferente que o torna uma das mais importantes vozes da literatura nacional, porque foge à vulgaridade do que a maioria dos autores da geração do terceiro milénio está a apresentar. Aliás, se já o tinha conseguido com a máquina de fazer espanhóis, por exemplo; se subira um grande degrau na busca e execução do romance que tem como cenário a Islândia, A Desumanização, volta a realizar uma escrita inesperada nesta narrativa japonesa.

Onde transporta o leitor de uma forma elegante e íntima para aquela parte do mundo sem o fazer passar por um voyeur de costumes. Mais, o registo encontrado para estes homens imprudentes surpreende por poder ser assinado por um escritor daquele país, tal é o modo como evita a confluência baralhada do olhar ocidental e se cinge à verdade da natureza - presença importante -, impondo-se o relato com uma reprodução de personagens que não desvirtuam as prováveis pessoas.

Estranha-se bastante a linguagem, "escangalhada" por um escritor que não se quer repetir e que ao teimar nessa meta entrega um dos muito poucos bons romances portugueses deste ano.

É possível o escritor estar sempre a reinventar-se?

Essa é a grande questão e o que empecilha o paraíso aos escritores, porque para mim é muito claro o que quero da vida. Poderia dizer que gostaria de ter um filho, mas o que ainda quero da vida é escrever um livro que me falte e que valha a pena. Talvez escrever um livro que de uma vez por todas me acabe e dê a sensação de que não é preciso mais nada. Isso não vai acontecer, essa é a desgraça dos escritores.

Ter um filho ou um livro. Qual é que lhe faz mais falta?

Como já escrevi sete romances o que gostaria era de ter um filho. Até digo mais, sabendo hoje o que sei trocava os meus sete romances por um filho. Quem não tem romance e tem filho, tem a obrigação de ser mais feliz do que eu.

Essa necessidade tornou-se mais urgente ou não é de agora?

É uma coisa de há alguns anos para cá, desde os meus 36. Até aí não tinha jeito para crianças e achava-as adoráveis à distância; não tinha paciência nem sapiência, mas hoje acho que a solidão que sinto desde sempre talvez fosse só colmatável com a existência dos filhos.

Voltemos à reinvenção?...

Não é possível os escritores reinventarem-se continuamente mas é possível essa ilusão, até para serem capazes de se convencerem de que há coisas novas num texto.

À p. 199, o personagem diz: "É ofensivo que [a arte] nunca se baste."É a tal exigência também para o escritor deste romance?

Não é efetivamente possível imaginar que um autor possa contentar-se com o que fez, pode estar apaziguado com o livro mas satisfeito não. Aí é um autor morto.

É mais fácil escrever sobre um país afastado como é o caso?

Sim, pois contribui para a impressão da reinvenção. Escrever sobre um lugar distante ajuda-me a ter a ideia de que ainda estou a escrever alguma coisa pela primeira vez, mas é mais difícil como oficina. Seria relativamente mais fácil construir uma trama bem feita mecânica e tecnicamente sobre um universo reconhecível. Mas isso seria desistir e não honesto ou aliciante.

A maioria dos colegas escritores de geração não se preocupam com esse desafio. Repete-se e é óbvia?

Isso assusta-me. Se as pessoas não se surpreendessem com o meu livro eu ficaria desolado. Talvez tenha a ver com a minha avidez pela poesia, um género que não se conforma com repetições ou parecenças, antes exige universos muito definidos, únicos e irrepetíveis. É de tal maneira cruel que muitos dos bons autores são lembrados por um ou dois poemas. Ninguém quer saber da obra completa porque ele supera-se numa só linha, daí que essa escola me traga necessidade de superação. Não concebo escritores de livros de pura narração sem precisarem de emanações irregulares e insuperáveis.

Vamos à oficina. Esta linguagem é estranha na sua construção e com inversão frequente da colocação tradicional das palavras. Porquê?

Parece que faço uma espécie de quebra-cabeças onde a solução também pode ser outra. Tenho a aspiração a poder renovar as expressões, o que não significa que acredite piamente na possibilidade da originalidade. É o português de toda a gente visto a partir de outra perspetiva. Lembro-me de uma expressão do Carl Sagan para o pôr-do-sol, a de que ao invés de ver o Sol a descer deveríamos observar a Terra a subir. É isso que por vezes está em causa na poeticidade da minha escrita. A desconstrução ou o inusitado da frase que mostra o mesmo mas com outro enfoque.

Traduzir a frase tradicional noutra original exige um trabalho exaustivo ou sai-lhe de rompante?

O que se torna cada vez mais patológico na escrita dos meus livros tem a ver com o ambicionar de um texto espontâneo. Só que a literatura não é um fruto da natureza e não vem da árvore, tem uma dimensão técnica ou falsa. O que faço é começar o livro tantas vezes como as necessárias até à versão que parece escrita com limpidez, como se fosse um fio contínuo em vez de o livro se empecilhar e sentir-se que a linguagem ou a trama deixou de ser elegante. Ao invés de ficar a corrigir, recomeço o livro.

Este também foi recomeçado?

Talvez umas dezassete vezes e em algumas versões já tinha passado da página 100.

Recordo a praga que Saramago lhe lançou ao dizer que o seu livro era um "tsunami literário". Ou seja, a precisar de réplicas?

É o melhor dos elogios mas é também um pontapé no rabo porque coloca uma responsabilidade. Tenho uma fotografia muito bonita com ele, onde estou de olhos fechados e tem o seu dedo esticado a tocar-me no peito, como se indicasse o coração. Lembro-me do que dizia quando nos fizeram essa fotografia: "Nunca obedeças ao que te vão pedir e nunca sejas igual, segue sempre a tua pulsão."

Tal como o oleiro aceitava mal que o barro não tivesse vontade. Ou seja, usa vários bocados de barro?

Passei por muitas versões e o próprio jogo da importância das personagens foi-se alterando. A grande frustração era pressentir que há alguma coisa que não está evidente apesar de estarmos a escrever exatamente para que a revelação aconteça. Não sei o que está obscuro, mas sei que está ali e que alguma coisa se vai poder apreender através do meu texto. É como se houvesse um conhecimento dentro da escuridão, ao qual só posso aceder através do exercício literário. Por isso, a grande frustração da escrita está quando o pressentimento é de tal maneira retumbante mas as capacidades de escrita não nos oferecem o interruptor nem o conhecimento. E isso, na escrita, é a maior violência.

Há muito de autobiográfico nas páginas deste romance?

Sim, o livro é todo ele de busca na escuridão. É curioso que a cegueira seja um dos tópicos e de alguma forma todos eles sejam cegos. Para mim, todas as personagens estão incapazes de percecionar.

No entanto, uma das personagens mais fortes é a montanha...

Porque me fascina muito a relação dos japoneses com as montanhas. Têm um conceito intrincado de montanha e de selvagem porque as montanhas são tendencialmente selvagens e os lugares sem a deturpação humana são lugares elevados. Há uma sacralização da elevação como algo a que o homem não tem direito porque é verdadeiramente território dos deuses, onde só o esplendor da liberdade da natureza se impõe.

Na viagem que fez ao Japão sentiu o mesmo que outros portugueses, tal como Venceslau de Morais?

Estamos empobrecidos em relação à visão no que se se compara a Venceslau de Morais porque antes de chegarmos já temos muita informação e imagens. Podemos até iludir-nos com a sofisticação dessas imagens, que superam o que vamos encontrar. Mas o Japão consegue ser ainda um dos lugares que, apesar da globalização, é onde nos sentimos mais deslocados e instigados a regressar a premissas elementares da vida por sermos desafiados nas mais pequenas coisas. A nossa normalidade é distinta da deles, muitos dos seus rituais parecem bizarria e isso expõe-nos bastante. Tendemos a transformar os japoneses nos animais de um Zoológico porque os vemos como quase bichos de outra espécie.

Sentiu que a imagem que tinha dos japoneses invadiu os seus próprios sonhos?

Sim, sei que um dos meus desafios era, tal como em A Desumanização, impedir o deslumbre no momento da escrita do livro. O ficar muito impressionado pela maneira de como comem, a destreza com os pauzinhos ou o mexer das mãos naquela tecnologia, onde há coisas que são do foro do circo e inesperadas. Era muito tentador explicá-las no livro e debitar todas essas coisas.

Seria perder tempo?

Seria as coisas do espanto do turista, por isso precisei de me desespantar e atentar numa profundidade que se destitui do aspeto quase folclórico com que vemos a normalidade deles. Tentei simplificar a gastronomia exuberante. Não me podia render ao deslumbre.

O penúltimo livro passava-se na Islândia, este no Japão. Se o próximo for em Portugal, conseguirá transcender os lugares comuns?

Espero que sim, mas posso dizer desde já que não tenho planos para voltar a Portugal no próximo livro. Está a saber muito bem esta coleção de lugares, como se estivesse a aproximar coisas num mapa-múndi falso, onde estreito os oceanos e coloco na minha vizinhança os países de que gosto como se os pudesse ver da minha janela.

Como os cronistas das caravelas?

Sim, a recolha da meraviglie do mundo. Estou muito fascinado com esta possibilidade porque escrevi cinco romances que se passariam em Portugal e agora dá-me gozo que o lugar me tire o tapete debaixo dos pés. Pensar desde o interior de outras cabeças é aliciante e coloca-me em risco. Mesmo que à décima versão diga "não volto a isto, não preciso de me torturar".

Foi escrito nas Caxinas?

A maior parte foi nas Caxinas, mas teve um momento de dez dias fundamentais da organização das ideias que escrevi em Bragança. Gosto daquela quietude e do vazio.

Foi propositado o estado de stress a que obriga o leitor?

É um estado de alerta, que pressente alguma coisa iminente.

O título surgiu quando?

O título tem um efeito encantatório e é a contingência do livro. Só o achei na penúltima versão e estava antes em vez do lugar certo, por isso coloquei-o mais para o fim.

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