Olivia de Havilland, 100 anos. A que o vento não levou
Leslie Howard, o seu marido em E Tudo o Vento Levou, foi o primeiro a morrer, logo em 1943, quando o avião que o trazia, de Bristol para Lisboa, foi abatido pela aviação nazi. Hattie McDonald, a inesquecível criada Mammy, com quem competiu - e perdeu, abrindo caminho para o primeiro triunfo de uma atriz negra - na corrida para o Óscar de Atriz Secundária, morreu em 1952. A vez de Clark Gable, o pragmático Rhett Butler, chegou em 1960. Depois foi a sua "rival", Scarlett, ou seja, a atriz Vivien Leigh - com quem voltaria a "cruzar-se" por causa do papel de Blanche DuBois em Um Elétrico Chamado Desejo, que Olivia declinou e acabou por render à britânica um Óscar -, que desapareceu em 1967. Um a um, todos os elementos creditados na extensa ficha de atores e atrizes do filme que simboliza uma parte da história americana, foram morrendo - a última foi Alicia Rhett (que fez o papel de India Wilkes, a cunhada de Olivia), em 2014.
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Chamada muitas vezes, sempre que há um relançamento do filme da Metro, oficialmente realizado por Victor Fleming mas reconhecidamente beneficiário da mão sábia de George Cukor (que foi, de resto, o responsável pela escolha da mulher que encarnou Melanie Hamilton, depois de duríssimas negociações entre a Warner Bros., que mantinha a atriz sob contrato, e a MGM), Olivia de Havilland há muito que desempenha o papel de porta-voz da produção que chamou ao cinema o livro de Margaret Mitchell. Recorda episódios da rodagem, evoca os parceiros desaparecidos, aproveita para sublinhar a dimensão humana das personagens e o alcance épico do enredo. Agora, finalmente, é por causa dela, da mulher, que E Tudo o Vento Levou regressa a uma série de reposições, nas salas e na TV: Miss De Havilland festeja o centenário de uma vida repleta, 77 anos depois da estreia do filme, 63 anos após uma das mais drásticas decisões da sua vida, a de fixar residência em Paris, para evitar que o seu primeiro marido pudesse reclamar a custódia do filho.
Este alcance centenário de Olivia contraria, e de forma reforçada, a lei das probabilidades. Nascida como cidadã britânica a 1 de julho de 1916, em Tóquio, onde o pai exercia funções de professor na corte imperial japonesa, Olivia precisou de trocar a capital nipónica por outras paragens, de clima mais ameno para evitar complicações insuperáveis com a doença de que sofria e que partilhava com a irmã, que viria a consagrar-se como Joan Fontaine: a asma. Quando chegaram à Califórnia, vindas do Japão, as duas irmãs não estavam em condições de atravessar os Estados Unidos e rumar à Costa Leste, onde embarcariam rumo a Inglaterra. O pai aproveitou a convalescença das miúdas para regressar a Tóquio e aos braços da amante local. Isso ditou o destino de Olivia, da irmã e da mãe, que fixou residência em Saratoga. Foi nessa pequena cidade que se apaixonou pelo teatro. Na escola, o primeiro papel que a viu brilhar foi o de Alice no País das Maravilhas, como protagonista. Em 1934, estreou-se na Broadway, com uma marcante encenação de Sonho de Uma Noite de Verão, de Shakespeare, passaporte para um contrato imediato com a Warner Bros.
Passada a excitação dos primeiros filmes - a estreia deu-se em Alibi Ike, em 1935 -, apesar das duas produções em que fez dupla com James Cagney, que se tornaria seu amigo e mentor, e da descoberta do seu par mais repetido e notório, Erroll Flynn, com quem contracenou por oito vezes (há um nono filme em que surgem os dois mas nunca se cruzam) e que - com títulos como O Capitão Blood, Carga da Brigada Ligeira, As Aventuras de Robin dos Bosques ou Todos Morreram Calçados - marcaram uma época, De Havilland começou a cansar-se do molde que os estúdios lhe reservavam: a "morena ingénua".
Depois dos percalços, E Tudo o Vento Levou parecia suficiente para expandir a magistratura de influência da atriz. Mas, afinal, a nomeação para o Óscar por A Minha História, ao lado de Charles Boyer, acabou por valer como exceção. Cansada com a insistência de um estereótipo, desiludida com a teimosia do patronato, De Havilland iniciou uma cruzada tão perigosa como as batalhas travadas pela sua Melanie Hamilton: recorreu aos tribunais para acusar a Warner Bros. De ilegalidades. E, onde todos tinham falhado, acabou por triunfar. E estava livre...
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Numa variante certeira da justiça poética, Olivia ganharia os seus dois Óscares já depois de se libertar de um contrato, num dos passos decisivos para o final do studio system. Em 1947, o seu papel de mãe solteira em Lágrimas de Mãe (de Mitchell Leisen) valeu-lhe a primeira das estatuetas. Em 1950 (já depois de outra nomeação por O Fosso das Víboras, de Anatole Litvak), viria a segunda, alcançada com A Herdeira, de William Wyler, e com Montgomery Clift. Ainda tentou a sua sorte com um filme, A Minha Prima Raquel, baseado num livro de Daphne Du Maurier, que servira de talismã a Joan Fontaine para ser a primeira da família a chegar ao Óscar (com a Rebecca, de Hitchcock). Ainda hoje se mantêm como as únicas duas irmãs a alcançar os maiores prémios de representação. Quis o destino - e, de caminho, os feitios das manas - que nunca fossem próximas e que rompessem mesmo em absoluto qualquer contacto depois de um Natal, em 1962, passado em conjunto mas que em vez de compor acabou por quebrar de vez a relação entre ambas. Joan, morreu aos 96 anos, a 15 de dezembro de 2013, nunca se cansou de sublinhar que, sendo a mais nova, chegou primeiro ao casamento, à descendência e... ao Óscar.
Divorciada do primeiro marido, Olivia de Havilland acabaria por escolher Paris para viver. Por essa altura, já se tinha percebido que privilegiava o papel de mãe e se mostrava realizada quanto à representação - o seu último grande papel aconteceu em Com a Maldade na Alma, de Robert Aldrich, ao lado de Joseph Cotten e da sua grande amiga Bette Davis. No ano seguinte, foi a primeira mulher a presidir ao júri do Festival de Cannes. Mais recentemente, recebeu condecorações por mérito artístico das mãos dos presidentes George W. Bush (2008) e Nicolas Sarkozy (2010). Nenhum deles deixaria, se as suas cronologias fossem diferentes, de aplaudir as intervenções de Miss De Havilland nos tempos conturbados da reeleição de Roosevelt: indefetível apoiante dos Democratas, foi também uma feroz combatente ao que considerava serem a propaganda e as infiltrações comunistas. Última ironia: nesse momento de avanço público, o seu grande apoio foi um ator mediano - sejamos simpáticos - chamado Ronald Reagan.