"Não escrevo as minhas memórias, sou gigolô das memórias alheias"

Diz que não podia ter feito mais nada senão palavras, porque se tornou pessoa quando percebeu o processo da leitura. É um mestre da língua, com mais de uma dezena de livros e 50 anos de trabalho jornalístico
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É raro que alguém saiba localizar no tempo, com exatidão, cada acontecimento. Talvez Ruy Castro tenha treinado esse jeito na prática de pesquisa para as biografias detalhadas que construiu sobre Garrincha, Nelson Rodrigues e Carmen Miranda, a que talvez pudéssemos acrescentar as "biografias" da bossa-nova (Chega de Saudade) e do samba-canção (A Noite do Meu Bem). Para cada facto ele indica a data rigorosa. Tem umas belas gargalhadas, que aparecem na conversa mesmo que pareça que tem sempre o ar mais sério do mundo. No dia a seguir à entrevista, ele e Ferreira Fernandes foram o centro de um debate em Cascais: dois cronistas que se admiram, homens que sabem que os advérbios são coisa de encher. Aí contou episódios como a entrevista com Guimarães Rosa, tinha o jovem repórter 19 anos e muitas ilusões: o texto caiu inteiro no esquecimento porque o escritor morreu dois dias depois e, claro, o obituário foi para as mãos de autor mais experiente. Mas uma coisa o académico convidado não sabia e não pôde escrever: que o poeta tinha oferecido num aniversário à filha "uma caixa de acentos circunflexos". Pormenores que só um repórter sabe encontrar. Ele que passou o dia 25 de abril de 1974 nas ruas de Lisboa com um cravo na lapela, que se emocionou com o primeiro telejornal dessa noite - em vez de locutor de fato e gravata, dois jovens, um deles fumando, em mangas de camisa. A entrevista andou pelas voltas da escrita e só no fim chegou à atualidade brasileira, mas no texto inverte-se aqui a ordem das coisas. Para começar pela vida de hoje.

O Rio de Janeiro é o tema de toda a sua obra. Como é o Rio de hoje?

Está numa grande fase por causa das Olimpíadas. Não votei no prefeito Eduardo Paes, não era a favor dele no começo, mas surpreendeu-me desde que tomou posse. Faz uma grande administração. Está a devolver ao carioca um novo espaço gigantesco para lazer. Ele gosta de ser prefeito e gosta de lidar com buraco de rua, com rede de esgotos. Não teve sorte ultimamente, por causa da queda de um trecho da ciclovia. É impressionante, aquilo tem quatro quilómetros, uma estrada maravilhosa como não tem em quase lugar nenhum do mundo, para andar de bicicleta à beira-mar. E por causa de 50 metros que foram mal planeados, mal executados, vai ser crucificada toda uma administração.

Brasil está em ponto de rebuçado?

Está melhor do que há um mês, porque se tem uma noção melhor do buraco em que o Brasil estava metido. Está a fazer-se a conta do rombo deixado pela presidente Dilma, um buraco de 170 mil milhões de reais, que equivale a 40 mil milhões de euros. Poucos meses antes dizia que ia ter um superavit de 30 mil milhões, um mês depois - desculpe, enganámo-nos, é um défice de 90 mil milhões. Foram fazer a conta e eram 170. Sabe-se lá se não será mais. E há 11 milhões de desempregados.

E no entanto está otimista?

Estou, porque agora finalmente tem-se uma ideia, saiu aquela quadrilha que estava no poder e entrou uma outra quadrilha que, pelo menos, é mais transparente. Devido ao descalabro que aconteceu antes, vai haver um pouco mais de controlo sobre essa. Todo o percurso que resultou na queda da quadrilha anterior está amparado em processos legais, tudo feito de acordo com o Supremo Tribunal Federal, com a Polícia Federal, com a justiça, com amplo direito de defesa das pessoas defenestradas. Não é um golpe, como se diz aqui. Se for um golpe, é o golpe mais chato que existiu, leva meses a resolver-se.

O seu primeiro livro, Chega de Saudade, é editado agora a Portugal. É bizarro que um escritor dê entrevistas sobre um livro quando já escreveu outro. E aqui ainda mais, porque escreveu em 1990.

É uma nova edição e fiz mais de 200 emendas. Este livro sai agora no Brasil, com a mesma capa, o miolo, os cadernos de fotografias e principalmente dois apêndices, a cançãografia e a discografia. Esta edição definitiva é mil vezes melhor do que todas as edições até agora. Agora estou satisfeito, 25 anos depois.

É uma investigação enorme.

Eu não faço livros das minhas memórias, sou gigolô das memórias alheia. Reconstituo a história de uma época ou a vida de uma pessoa a partir de centenas de conversas com pessoas que a viveram ou testemunharam, protagonistas ou coadjuvantes. E também faço pesquisa de publicações da época e documentos perdidos em gavetas, em escaninhos, arquivos.

É um trabalho obsessivo?

Se não tiver essa obsessão, não dá. Chega a ser doentio porque enquanto estou envolvido não falo de outro assunto, fico insuportável. É uma busca obsessiva dos milhões de partículas de informação de que se compõe uma história. Por vezes tenho uma informação mas não sei onde colocá-la. De repente, por causa de um pormenor, as coisas juntam-se e fazem sentido.

É espantosa a organização. Como arruma tudo?

Quando comecei a fazer livros não se trabalhava muito com computadores. Era tudo impresso continuamente, guardado em pastas numeradas por anos. Hoje fazemos isso no computador. Mas não basta ter essa acumulação de informações no papel. Quando se fala com 100, 200, 400 pessoas, as conversas não vêm na ordem cronológica. Espera-se que uma pessoa fale sobre os anos 1960, e afinal tem coisas importantíssimas a contar sobre os anos 1950. Tem de se estar preparado o tempo inteiro para identificar o valor, a origem, a veracidade. Não adianta ter só no papel ou no disco rígido do computador, tem de estar também no seu disco rígido.

Sabia que tinha toda essa capacidade de organização?

Um jornalista trabalha com um material de hoje para amanhã. Mas quando faz reportagens grandes para revistas mensais, como eu cansei de fazer, precisa de desenvolver desde cedo a capacidade de organizar a informação. Não basta saber preparar-se para uma entrevista, saber fazer perguntas, saber ouvir as respostas. Aliás, há muito repórter que acha que o importante é a pergunta e não a resposta. Faz duas ou três perguntas de uma vez, o entrevistado fica confuso, não sabe à qual responder, responde só à última ou só à que lhe interessa e o repórter sai satisfeito. Não sabem que numa entrevista o importante é a resposta.

O que lhe interessava quando resolveu escrever sobre a bossa--nova?

Ouvi bossa-nova pela primeira vez com 12 anos, em 1960. Foi no rádio, João Gilberto cantando Desafinado e Chega de Saudade. Interessei--me imediatamente. Nos jornais e revistas já se começava a falar naquilo. Comecei a comprar os discos e a empolgar-me cada vez mais por aquela música. A minha mãe era muito musical, o meu pai tocava violão e cantava. Cresci a ouvir uma variedade enorme de músicas, todas as variações de samba, choro, marchinhas de Carnaval, modinhas, e também as big bands e os cantores americanos como Sinatra, Bing Crosby, Doris Day, tangos argentinos, boleros mexicanos e cubanos, valsas vienenses, cantores franceses. Havia artistas portugueses muito populares no Brasil.

Francisco José?

Francisco José, Ester de Abreu, Gilda Valença e Amália. Eu ouvia a música dos meus pais e a bossa--nova tinha mais a ver com jovens. A minha mãe admirava Dick Farney, Lúcio Alves, Dolores Duran, Maysa, Elizeth Cardoso, cantores mais modernos do que aqueles de que o meu pai gostava. Quando apareceu o João Gilberto, ela gostou imediatamente.

E o Ruy também, claro.

Desde logo. A bossa-nova começou com o João Gilberto gravando Chega de Saudade em julho de 1958. Eu identificava-me com aquela maneira de tocar, de cantar, com as temáticas modernas, com as capas a parecer arte moderna. Anos depois, percebeu-se que essa música ia ser abandonada. No Brasil as modas vão surgindo e sendo abandonadas, sepultadas mesmo. A partir de 1967, a própria expressão bossa-nova não era usada ou era usada pejorativamente, era a música dos velhos. Foi quando comecei a trabalhar como repórter no Correio da Manhã, depois na Manchete.

Conheceu os cantores e autores da bossa-nova?

Conheci o Vinicius no final de 1967, o Tom Jobim em março de 1968, fiquei muitas horas com eles. Entrevistas, bate-papos, muita cerveja. Num bar de Ipanema, conheci o Carlinhos Lira e a Nara Leão. Conheci todo o cenário geográfico da bossa-nova em Copacabana e Ipanema.

Ficou com esse manancial de informação guardado?

Os discos deixaram de ser produzidos, exceto o Tom, que ficou gravando, o João Gilberto menos, mas também. Embora ele renegasse a bossa-nova, talvez da boca para fora, o que ele fazia continuava a ser bossa-nova. Eu estava em Lisboa quando saiu o disco do Tom com a Elis Regina, foi emocionante.

Nessa altura já havia o Chico Buarque, uma nova geração.

Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Paulinho da Viola, de que sempre gostei muito. Mas não achava melhor ou mais avançado, pelo contrário, até nalguns casos é mais atrasado do que a bossa--nova. Mas o Roberto Carlos tinha decidido que era uma coisa ultrapassada. E a situação só piorou no final dos anos 1970 e em toda a década de 1980. Steve Ross, um cantor americano que foi cantar em São Paulo, disse-me que ia fazer uma surpresa à plateia, ia cantar Eu Sei Que Vou Te Amar de Tom Jobim. Disse-lhe: vai ser a sua única não aplaudida. "Mas é a melhor coisa do mundo." Cantou e foi recebido da maneira mais fria. Durante todo este período, a bossa-nova institucionalizou-se nos EUA, passou a fazer parte da música americana de tal maneira que muitos americanos acham que é deles.

E muitos músicos brasileiros foram para lá.

Porque não tinham trabalho no Brasil. Os americanos recebiam--nos de braços abertos, aprenderam a tocar com os bateristas brasileiros. Houve uma incorporação da bossa-nova na música americana, adotaram a batida de violão, a bateria, a suavidade da melodia, a complexidade das harmonias. Entre 1962 e 1967, todos os cantores americanos importantes de grupos musicais e de jazz gravaram discos de bossa-nova. O Sinatra não foi o primeiro, foi o último daquela época.

Porque é que a bossa-nova tem essa força?

Ela surgiu num período de grande indefinição da música internacional, sobretudo americana. Os grandes compositores do passado - Cole Porter, Irving Berlin, Richard Rodgers, Harold Arlen - estavam muito velhos, não estavam tão ativos. Gershwin e Jerome Kern tinham morrido e não apareceu uma nova geração em quantidade suficiente para substituí-los. Burt Bacharach em 1963 não era nada, ficou famoso a partir de 1965/66. Steven Sondheim, o maior génio da Broadway de todos os tempos, ainda não tinha convencido os produtores de que era capaz de fazer grande música, era relegado para fazer letras, como fez no West Side Story. O jazz estava numa fase de indefinição, foi a época do free jazz, de Ornette Coleman, uma coisa desagradável, hostil.

Áspera?

Áspera, sim. Os jazzistas viram as possibilidades da bossa-nova, incorporaram-na no repertório, começaram a tocar, conheciam os discos do João Giberto e do Tom Jobim. O exemplo clássico é o disco Getz/Gilberto [1964]: Stan Getz no saxofone, João Gilberto cantando, Tom Jobim no piano, Tião Neto no contrabaixo, Milton Banana na bateria. Ponha esse disco a tocar. Veja a qualidade da gravação, não se acredita que o disco foi gravado há 53 anos. Tire o Stan Getz do disco, ouça só os brasileiros. É um disco de bossa-nova perfeito, talvez o maior disco feito até hoje. Volte a pôr Stan Getz, tocando lindamente, improvisando com grande suavidade, e você vê como o jazz incorporou a bossa-nova.

Com tudo isso, este livro era uma inevitabilidade, tinha de contar essa história?

No início de 1988, quando tive a ideia de escrevê-lo, não havia a menor necessidade de falar em bossa-nova. Tom Jobim fazia música de vários géneros e tudo o que fazia tinha sotaque de bossa-nova, mas nem ele falava nisso.

O seu editor achou normal que quisesse escrever sobre um tema assim?

Tive a sorte de me dirigir ao Luiz Schwarcz, da Companhia das Letras. Era jovem, gostava de jazz, estava interessado em coisas do passado que lhe poderiam render bons livros, já me conhecia há uns anos, gostava do meu trabalho. Disse-lhe que queria fazer um livro sobre a história das pessoas que fizeram a bossa-nova. Pode começar. Comecei logo. Levei dois anos, o livro saiu em novembro de 1990.

Decidiu logo fazer outro?

Um pouco menos de um ano antes de sair, sabia que ia fazer a biografia do Nelson Rodrigues, que veio a chamar-se O Anjo Pornográfico. Já me tinha apaixonado pelo veículo livro, senti que pela primeira vez tinha um latifúndio à disposição. Podia explorar um tema em toda a profundidade e extensão. Descobri também que não bastava ser um bom repórter para fazer um livro, tinha de ser um escritor. Teria de saber a história do Brasil nos anos 1940 e 1950, a economia, a política, o comportamento. Vali-me das conversas com o meu pai e a minha mãe, as pessoas mais velhas.

E porquê o Nelson Rodrigues? Era um grande escritor e dramaturgo, mas uma figura difícil que apoiou a ditadura militar.

Eu aprendi a ler lendo Nelson Rodrigues, no colo da minha mãe. Ela lia A Vida como Ela É, a crónica dele, todos os dias no jornal Última Hora. Em 1952, eu tinha 4 anos, via--a a ler e a divertir-se, perguntava o que era, ela sentava-me no colo e lia em voz alta. Um belo dia, olhei para a primeira página e li a manchete. Eu não sei desenhar nem casinha com chaminé e não sei tocar instrumento nenhum. Mas quando me deparei com a palavra, naquele formato impresso do jornal, senti-me em casa. Quando eu fiz 5 anos, ganhei de presente um livro, Alice no País das Maravilhas. Li-o todo. Pedi outro livro. Fui com o meu pai a uma livraria e comprámos Tarzan Filho das Selvas de Edgar Rice Burroughs. E depois Sherlock Holmes, quase de seguida.

O caminho estava aberto?

O caminho da palavra. Os meus pais tinham montanhas de jornais e revistas, não se deitava fora, anos e anos de jornais acumulados no quarto dos fundos. Tinham jornais do tempo da guerra, imagine o tesouro. Você ouve os mais velhos falando da atualidade, mas se tem um jornal na frente com a mesma informação é outra coisa. Como se diz no jogo do bicho, vale o escrito mais do que o falado. Olha em volta, lê o rótulo da lata de banha, a bula do remédio da sua mãe, a marca do chocolate, sai à rua e tem o nome da casa comercial, o nome da rua. Você finalmente faz parte do mundo, decifra-o, é maravilhoso. É o seu verdadeiro ingresso na humanidade, como se finalmente você tivesse nascido.

E toda a cabeça muda?

A cabeça muda. Começa pelas maiúsculas, não sabe caligrafia. Passa diante de uma máquina de escrever e vê que no teclado estão os mesmo símbolos, basta carregar na tecla e a letra aparece. Antes dos 5 anos, eu sabia ler, escrever e escrever à máquina. Não tive chance, estava condenado desde os 5 anos, não podia ser outra coisa senão o que sou.

Estava a falar de Nelson Rodrigues. O que o atraiu nele?

Ele escrevia sobre costumes e comportamento, tinha sempre uma história de adultério. Aos 5 anos, eu era a criança brasileira que mais sabia de adultério, embora mal soubesse do que se tratava. Continuei a segui-lo e percebi que também escrevia sobre futebol na Manchete Esportiva. Apaixonei-me pelo jeito de ele escrever desde muito cedo. Só vim a descobrir que ele era um dramaturgo em 1960, num anúncio de uma peça.

Também era uma inevitabilidade escrever sobre ele?

Fui estudante universitário quando ele era considerado um demónio porque era de direita, anticomunista e apoiava a ditadura. Eu discordava do Nelson, mas isso não eliminava a minha admiração. Em meados dos anos 1960, fiquei amigo de jornalistas que eram amigos dele, passei a frequentar casas que ele frequentava. Mas não me dirigi a ele, eu era só um dos que ficavam olhando para ele e ouvindo. Era fascinante. Era um ator, sabia o efeito que provocava, dizia as frases que as pessoas queriam ouvir. Fui almoçar com ele e com mais 20 pessoas algumas vezes. Um dia fomos sozinhos, um almoço para fazer uma grande matéria numa revista de São Paulo, no final dos anos 1970. Sempre tive muita curiosidade porque ele dava pistas sobre tragédias que tinham acontecido na família dele. A morte do irmão, a morte do pai.

O irmão foi morto por uma mulher por causa de uma história de adultério que ele escreveu?

Foi, no jornal do pai deles, e dois meses depois o pai morre supostamente de desgosto, mais uns meses há uma revolução no Brasil em 1930 e destroem o jornal, a família fica toda pobre e doente, ele cai tuberculoso. Uma saga de tragédia.

Uma história que tinha de ser contada?

A história implorava para ser contada e ninguém a tinha contado antes. Para aproveitar a própria expressão dele, o que eu fiz foi descobrir o óbvio ululante. No meio da escrita do Chega de Saudade, eu disse ao Luiz Schwarcz que queria escrever a biografia do Nelson Rodrigues. Apoiou-me logo. Saí de um e entrei no outro. O Anjo Pornográfico saiu no final de 1992 e 15 dias depois tive a ideia de fazer a biografia do Garrincha. Não pelo Garrincha mas porque queria fazer uma história sobre alcoolismo.

Já tinha deixado de beber?

Deixei de beber pouco antes de começar a escrever o Chega de Saudade.

Essa entrega total foi uma terapia, um substituto?

Na prática sim, mas não era o objetivo nem era consciente. Beber toma muito tempo, não sobra tempo para mais nada. Nos últimos dois anos, eu não podia estar 30 minutos sem beber, passava mal, começava a tremer. Você bebe o dia inteiro, pode até trabalhar, mas já não está no pleno domínio das suas faculdades.

O que é que o fez parar?

Fui internado. Deixei que a minha mulher me internasse, porque sentia que já estava fora de controle. Bebi durante 20 anos. Nos primeiros 15 bebi em grande quantidade, mas o organismo ia aceitando com naturalidade. Tinha um organismo feito para beber, a bebida não me alterava, nunca ficava bêbedo, nunca tive uma ressaca. Bebia mais do que todas as pessoas à minha volta.

Bebia whisky?

Bebia whisky, depois vodka. Mas o facto de não te alterar não quer dizer que o organismo não esteja a ser submetido a um processo de dependência e o que era antes uma coisa prazerosa passa a coisa obrigatória. É aquela velha frase: você toma um drink, depois o drink toma um drink, depois o drink toma você. Os meus anos de 1983 a 1988 foram de muita dependência. Conseguia trabalhar, tive muitos empregos, alguns até importantes, mas é um milagre que eu tenha conseguido chegar vivo ao fim desse período. Eu tinha de beber praticamente o dia inteiro. No começo de 1987 eu não podia mais ter empregos, tinha de trabalhar em casa. Pedi a demissão da Veja, fui para casa beber o que faltava beber. Eu achava que a vida era isso.

Até que a sua mulher pegou em si e o internou?

A minha mulher foi-se embora, só voltou para me salvar. Convenceu-me de que tinha de me internar e eu só aceitei porque estava vomitando sangue. Achava que precisava de ir ao médico, mas que ele ia mandar-me parar de beber e que era impossível viver sem beber. Essa frase significa dependência, eu estava dependente e não sabia. Eu achava que podia até morrer, mas viver sem beber era impossível.

Nessa altura, como eram os tratamentos?

Era uma coisa primitiva. Fiquei internado numa clínica de recuperação de dependentes químicos - alcoólicos, drogados. Éramos 15, dos quais 12 ou 13 alcoólicos, e dois ou três drogados - hoje seria o contrário. Você corta o fornecimento e o organismo se ressente violentissimamente, começa a passar mal, a tremer por fora e por dentro, perde a orientação espacial, não consegue andar em linha reta, se se sentar não se levanta sozinho, não consegue tomar banho ou vestir-se sozinho. Isso dura o tempo que o organismo exige que o municie de novo com o produto. Pode durar dias ou semanas, é uma síndrome de abstinência violenta, pode até provocar delírios, o famoso delirium tremens, e pode levar a uma paragem cardíaca e respiratória. Antigamente metiam-te numa camisa de forças, agora há outros processos, o chamado "sossega leão".

Não teve direito a "sossega leão"?

Não precisei. Passei muito mal durante três ou quatro dias, no quinto dia comecei a melhorar, no sexto melhorei muito, no décimo dia estava a sentir-me com a cabeça limpa, impressionado com a lucidez que estava assomando, e um vigor físico muito grande. Foi como se tivessem jogado um jato de luz dentro de mim. Senti-me tão bem que tive consciência de que nunca me tinha sentido assim nos últimos 20 anos. Quero continuar a sentir-me assim. Se para isso é só eu não beber, eu não quero beber mais. Naquele dia tomei essa decisão e comecei a prestar atenção às palestras dos terapeutas, dos médicos, aprendi como as coisas tinham acontecido. Saí de lá e nunca mais bebi. Daí a um mês tive a ideia de entrevistar o Tom Jobim para a Playboy, para onde colaborava. Voltei da entrevista do Tom com a ideia do Chega de Saudade.

As biografias do Garrincha e da Carmen Miranda têm que ver com a questão da dependência?

Eu achava que tinha conhecimento suficiente para escrever um livro sobre alcoolismo, saberia fazer as perguntas, entender o processo. Mas o que seria isso? Um ensaio? Não sou ensaísta nem quero ser. Eu queria contar uma história, queria um personagem que pudesse acompanhar e que tivesse sido vítima do alcoolismo, mas não um perdedor, queria um ganhador. O Garrincha foi um grande vencedor que foi destruído pelo alcoolismo. Era um livro sobre um ser humano que por acaso jogava futebol. Entrevistei mais de 200 pessoas, entre as quais jogadores do melhor período e do período menos melhor, pior, até ao fim. Consegui construir a história toda, tive acesso a relatórios médicos, conversei com o médico dele, li o relatório da autópsia, fui dez vezes à cidadezinha dele

Tinha visto o Garrincha jogar?

No apogeu do Garrincha, de 1954 a 1962, eu tinha entre os 6 e os 14 anos. Foi o período em que mais me interessei por futebol, como toda a criança brasileira da época. Sabia tudo, ouvia pelo rádio todos os jogos, lia nos jornais, lia nas revistas, via os golos no cinema, fui com o meu pai ao Maracanã algumas vezes. Eu sabia tudo o que era possível a uma criança saber sobre o que acontecia dentro do campo. Não só sobre o Garrincha mas sobre o meu clube, o Flamengo, e todos os clubes do Rio, o resultado dos jogos, o nome do árbitro, a escala das equipas. Pensei: se eu fizer esse trabalho a partir do que sei, vou descobrir o que aconteceu no vestiário, na casa dos jogadores, dentro da cabeça deles.

Foi isso que o interessou?

Foi o que me fascinou. Interpretei aquilo como uma expedição ao lado avesso da minha infância. O que aconteceu enquanto eu estava de calça curta ouvindo o relato de futebol? Foi uma experiência maravilhosa. O livro saiu e eu esperava que provocasse discussão sobre o alcoolismo. Mas os advogados das filhas do Garrincha entraram com um processo contra mim e contra a editora, antes de o livro sair. Era injusto, porque não era um processo baseado em imprecisões, injúrias ou ofensas, era baseado em interesses oportunistas. Exigiam um milhão de dólares de indemnização, o que na época valia um milhão de reais. O juiz perguntou: quer dizer que se pagar não há processo? Não tem. Nós dissemos que não pagávamos. Processaram-nos e ganharam.

E o livro ficou fora do mercado?

Um ano. Foi liberado um ano depois mas o processo arrastou-se por 11 anos. A Companhia das Letras gastou uma fortuna com esse processo. Fui fazer outras coisas, publiquei outros livros, e em 2000 tive a ideia de fazer o livro sobre a Carmen Miranda. Era também uma coisa que tinha que ver comigo. Sabia que ela era portuguesa, tinha ido muito nova para o Brasil e tinha-se tornado carioca total. Eu gostava da música dela e lembrava-me do dia da morte, em 1955, tinha 7 anos quando ouvi pela rádio a notícia. O meu pai e a minha mãe choraram. Essa mulher foi uma estrela brasileira, foi para os Estados Unidos, tornou-se uma celebridade internacional e teve um grave problema de remédios - estimulantes e antidepressivos. Morreu com 46 anos, certamente por causa disso. Embora a Carmen já tenha tido várias biografias, a história nunca foi contada. Eu quero saber o que aconteceu entre 1909, quando ela chegou ao Brasil, e 1939, quando foi embora.

Não havia nada sobre essa época?

Nada, nada, era território completamente virgem. Só queriam saber dela com turbante na cabeça. No Rio ela não usava turbante. Levei cinco anos a fazer o livro sobre uma pessoa que tinha morrido 50 anos antes. Foram os cinco anos mais felizes da minha vida profissional, totalmente dedicado à Carmen Miranda. Aliás, não me separei até hoje. Vivo em função dela e contaminando as pessoas em meu redor. O último livro que fiz demorou três anos, saiu em novembro do ano passado.

É a sequência do Chega de Saudade?

É o livro irmão. É a história do samba-canção. Em toda a música popular há duas linhas, o lado romântico e o lado sincopado, rítmico, dançante. A música romântica deu no Brasil o samba-canção e a música sincopada deu a bossa que a partir de certo momento se transformou na bossa-nova. O livro chama-se A Noite do Meu Bem, o nome de uma música de Dolores Duran, é uma história da noite carioca entre 1946 e 1965 nas boîtes elegantíssimas do Rio, frequentadas pelos ricos, pelo poder.

O Rio de Janeiro é um dos grandes temas da sua vida.

É o único. É o único tema que me interessa, é o único que domino, o único que quero trabalhar. Escrevi agora sobre esse período em que o Rio era capital da república e todo o poder se concentrava lá, não só o político mas também o económico, as elites todas. As boîtes que tinham acabado de ser abertas com o fechamento dos casinos, ambientes mais intimistas, menores, masculinos, elegantes, caríssimos - um whisky custava quase um salário mínimo, e eram frequentados pelos grandes comerciantes e industriais, banqueiros, diplomatas, políticos, ministros de Estado e também pelos jornalistas, pelos boémios e pelos grandes compositores e cantores. O samba-canção foi a grande trilha sonora desse período nas vozes de cantores e cantoras como Elizeth Cardoso, Doris Monteiro, Nora Ney, Maysa, Dolores Duran, Dick Farney, Lúcio Alves, Miltinho, Agostinho dos Santos. Do samba-canção saíram muitos que foram fazer a bossa-nova, Tom Jobim, João Gilberto.

Gosta do exercício de fazer a crónica da Folha de S. Paulo?

São 1820 caracteres, quatro vezes por semana. O livro da Carmen Miranda tem dois milhões de caracteres. É a diferença entre um lenço ensopado e o oceano Atlântico. É um exercício muito bom que faço desde 2007 e ajuda-me a ser económico, rigoroso, usar as palavras certas. Não posso usar usar advérbios de modo. Pode cortar qualquer advérbio de modo, não faz a menor diferença e faz a economia de quase meia linha.

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