La Traviata: uma dama entre a mediania geral no São Carlos
É comummente designada como a mais representada e popular ópera de todo o repertório. Cinco anos depois, ei-la de novo no São Carlos, numa produção que, de "nova", passou a "requentada", por contingências exteriores ao Teatro. Mas quando o "requentado" é um trabalho de Pier Luigi Pizzi, um dos monstros da encenação operática (ver texto à direita), estamos (em princípio) bem servidos!
O encenador veio a Lisboa para os derradeiros ensaios e para a estreia: "Calhou bem, pois na verdade desejava voltar a Lisboa e a este Teatro. Há teatros onde regressamos de bom grado e o São Carlos pertence sem dúvida a esse grupo, pois guardo memórias muito bonitas do que fiz e vivi aqui. E após o primeiro ensaio a que assisti, quando subi ao palco, tive a gratificação de ser surpreendido por um aplauso que senti como sincero e afectuoso de todos os envolvidos - e muitos vieram até cumprimentar-me calorosamente! Vi-me num momento que Proust saberia contar muito melhor do que eu, pois foi daquelas instâncias de "tempo reencontrado" que ele tão bem trata. É bonito ver como, pese embora a usura do tempo sobre nós, ao nível físico e tantas vezes intelectual, há sentimentos que resistem ao tempo e reencontramos: a amizade, a gratidão - e a estima, sobretudo, a estima sincera, bem entendido."
Bem mais enxuta é a forma como reencontrou a sua encenação com quase já 30 anos de história: "Não a acho envelhecida per se. Quero dizer: em relação à minha maturidade, sim, mas de modo algum a renego, percebo-a no seu contexto e no do meu percurso, e o pensamento que lhe serve de base é válido ainda hoje." O que, contudo, não exclui intervenções: "Sim, claro, há sempre coisas a melhorar, a apurar, ajustes a fazer, correção de posições e, mais importante, de intenções! Mas a linha geral é aquela e não se pode alterar."
E essa "linha geral" explica-a ele assim: "Ambientei esta encenação no apogeu do Second Empire, isto é, os anos de 1860. É, por isso, bastante fiel à época de composição e de feição mais tradicional. Sem enveredar pelo realismo visual, foi minha intenção transparecer a vulgaridade desse mundo, o triunfo do "modus vivendi" burguês e machista, corporizado por homens ricos que mantêm jovens atraentes, mas destituídas socialmente e economicamente dependentes deles: são jovens que vivem para as aparências, para o que faz vista. É este universo de pessoas que povoa o salão de Violetta."
Cenicamente, qualifica-o de "certamente muito colorido, mesmo em demasia, mas vulgar, grosseiro e até algo alvar. Os espaços têm uma opulência excessiva, teatral, pois que pensados para impressionar. Nada há ali que pressuponha raízes, tradição, história familiar. É tudo muito artificial e efémero".
Prende-se nesta última palavra: "A ideia do efémero é importante, pois tudo quanto vemos em palco o proclama: a(s) vida(s), o(s) amor(es), as casas. Nada ali tem alma ou vida própria, tudo transpira mediocridade e indigência." Mas é deste quadro que se destaca a figura de Violetta: "Se bem que na prática ela seja uma entre iguais, e igual no cinismo por que se rege, no seu interior há algo que a faz estar um degrau acima das demais. Por isso a destaco: pelo isolamento e pela cor do seu vestido. O facto de ser mantida por alguém como o Barão possibilitou, quiçá, que crescesse enquanto pessoa e adquirisse um sentido da dignidade e a consciência de si e do que a rodeia."
Neste quadro, a sua doença (tuberculose), diz, "avança em paralelo com os eventos ligados ao amor que nasce entre ela e Alfredo, e os sintomas que se vão manifestando funcionam como sinais para a atitude dela face à experiência, ignota para ela, do amor verdadeiro".
A renúncia a Alfredo que sobrevirá "tem pressupostos nas convenções sociais vigentes na época, representadas pelo pai Germont, mas o seu principal móbil acaba por ser a vontade de Violetta de estar à altura da situação. A "preleção" do pai Germont teve eco dentro dela e faz com que ela queira responder, superando o plano de dignidade dele, mostrando no ato a sua nobreza de carácter".
A atualidade do tema "não existe, pois hoje a tuberculose tem cura! Mas mutatis mutandis, o cinismo permanece, só que hoje democraticamente distribuído por homens e mulheres sem distinção." Pier Luigi Pizzi prefere outro plano de atualidade: "O poder que esta obra tem ainda e sempre de nos comover, pela beleza da música e pela natureza do amor de Violetta, verdadeiro e altruísta." Nesse sentido, acrescenta, "a renúncia dela a esse amor, para mais no pouco tempo de vida que lhe resta, acaba por funcionar como um resgate da sua pessoa, uma forma de redenção."
"Quando pensamos em Violettas ideais, o nome da Callas vem logo à mente. Podemos estranhar o substrato dramático que ela confere à personagem logo desde o 1.º ato, mas se analisarmos bem a psicologia da personagem, a história daquela mulher e a sua precária condição de saúde, essa abordagem surge-nos justificável! Eu nunca trabalhei com a Callas, mas "tive" Traviatas como Montserrat Caballé ou Leyla Gencer - esta, uma notável, estupenda Violetta! Sabe, sou o curador de uma exposição de homenagem à Gencer que está no Scala de Milão desde há um mês [fica até 16 de setembro]."
Sobre a Violetta nesta produção, Ekaterina Bakanova, pronuncia-se tão-só sobre o lado interpretativo: "Disse-lhe para construir uma noção muito exacta da condição social desta Violetta. Para não pretender ser mais do que aquilo que ela na verdade é." E essa natureza de Violetta, define-a com a expressão "uma senhora no coração", significando que é "generosa, nobre, e alguém a quem a vida ensinou tanto em tão pouco tempo, mas que viveu demasiado pouco tempo com a lição desse ensinamento, pois a doença, de si um "fantasma" que condiciona ab initio as suas atitudes, leva-a pouco depois dessa iluminação".