Chegados às "índias ocidentais", no século XVI, os europeus ficaram fascinados com o paraíso que ali encontraram. Frei Bartolomeu de Las Casas mencionou nas suas crónicas que os indígenas eram "simples, sem malícia, repletos de amor para com os seus, desprovidos de qualquer ambição terrena". Mas o paraíso não iria durar muito. Havia que desbravar terreno, evangelizar os povos, impor uma ordem. Foi preciso derramar muito sangue para que a América fosse construída. Pondo fim ao paraíso. É disso que nos fala Al Final Del Paraíso, um mural feito propositadamente pelo artista mexicano Demián Flores para a abertura da programação de Lisboa - Capital Ibero-Americana da Cultura. A inauguração vai acontecer às 17.00 do dia 7 de janeiro de 2017, no Padrão dos Descobrimentos..À noite, no Teatro São Luiz, a festa começa com três vozes jovens e femininas: Gisela João (Portugal), Mariela Condo (Equador) e Yomira John (Panamá): "Um concerto com o qual queremos exprimir a crença no futuro destes três países e do universo ibero-americano", nas palavras de António Pinto Ribeiro, comissário-geral, que ontem apresentou a programação completa desta capital: serão cerca de 150 eventos, entre os quais 38 concertos e espetáculos, 31 exposições, 5 ciclos de cinema, 7 colóquios e mais uma série de atividades espalhadas por 50 espaços em Lisboa, que vão envolver 390 artistas e convidados internacionais e 250 nacionais..A programação foi montada no prazo "recorde" de seis meses e com um orçamento de 1,5 milhões de euros (3 milhões se contarmos com aquilo que os vários equipamentos trazem) - "o que é manifestamente muito apertado para uma dimensão deste tipo", diz Pinto Ribeiro..A ideia é sempre ligar os vários países do espaço ibero-americano. Logo no primeiro dia é possível atestar a viagem entre o passado e o presente, que é o mote desta Capital da Cultura e destrinçar os quatros eixos que orientam a programação: a questão indígena, os afrodescendentes, a migração e a cria- ção contemporânea. Sem qualquer intenção de branquear a memória, Pinto Ribeiro propõe-se apresentar as visões de um passado colonialista e esclavagista, a complicada relação com os povos indígenas, a influência dos muitos fluxos de migração que cruzaram o Atlântico, tantas vezes fruto de guerras, e o modo como, ainda hoje, esse passado está presente - por exemplo nas ruas de Lisboa (em maio, vai haver um roteiro, preparado pelo Gabinete de Estudos Olisiponenses, intitulado "Os Negros em Lisboa") ou na criação artística nestes países (veja-se o caso de Roberto Huarcaya, fotógrafo peruano, que, também em maio, vem apresentar, Amazogramas, uma instalação composta por três fotografias de 30 metros quadrados, em que usou a própria floresta amazónica como câmara escura).."A cultura ibero-americana não é homogénea e queríamos que essa diversidade estivesse presente na programação", explica Pinto Ribeiro, sublinhando ainda que o desafio é para que, ao longo do ano, o público vá desconstruindo preconceitos e ideias feitas que tenha sobre a América Latina. "Este espaço ibero-americano está cheio de contradições", diz, e assim é também a programação que tanto pode apresentar alguma da mais notável criação artística como pode tocar o kitsch. "Não quisemos purificar a programação", garante. Daí, também a importância de toda a parte mais reflexiva, com colóquios quer sobre o racismo quer sobre a questão indígena..Grande parte da programação concentra-se nos espaços culturais da autarquia - teatros, museus, etc. Mas há também outras instituições que se associaram à Capital da Cultura, como a Companhia Nacional de Bailado que vai estrear, em novembro, uma nova criação do coreógrafo sevilhano Israel Gálvan. Ou o MAAT, que terá, em março, uma exposição de Héctor Zamora (México) e outra de Jordi Colomer (Espanha).Esta é a segunda vez que Lisboa é Capital Ibero-Americana de Cultura (a primeira foi em 1994, quando também foi Capital Europeia da Cultura). A vereadora da Cultura, Catarina Vaz Pinto, sublinhou a importância de, neste momento, potenciar a ideia de esta ser uma cidade cosmopolita, culturalmente ativa e ponto de encontro de culturas. E Fernando Medina, presidente da Câmara, foi mais longe dizendo que o que vai acontecer aqui "é o oposto do que estamos a fazer no debate político europeu e mundial", onde as palavras de ordem são fechamento e exclusão. Ou, como também disse o ministro da Cultura, Luís Filipe Castro Mendes, em vez de "construir muros, é preciso construir pontes" entre cidades, países e culturas, e é isso que se propõe fazer esta programação da capital ibero-americana..5 destaques na programação:. Encontro com os indígenas do Brasil.› Visão Yanomani é uma exposição de fotografias de Claudia Andujar (Brasil), que nos apresenta uma parte do seu trabalho documental realizado nos anos 70 e 80 do século XX sobre o povo Yonomani. Do acervo do Centro de Artes de Inhotim para o Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa, de 11 de fevereiro a 15 de abril.. Fotografia perdida de Armindo Cardoso.› Armindo Cardoso foi um fotógrafo português, exilado em 1965, que acompanhou Salvador Allende, no Chile. Após o golpe de Pinochet, as suas fotografias estiveram durante anos escondidas dentro de um saco, numa quinta. Estarão no Museu Arpad Szenes-Vieira da Silva, de 4 de março a 30 de junho..Racismos e cidadania.› Discutir a relação entre racismo e cidadania ao longo de seis séculos - desde 1497 ao presente - é o ambicioso objetivo de Racismos, exposição com curadoria de Francisco Bethencourt que inaugura a 6 de maio no Padrão dos Descobrimentos. No dia 13, realiza-se o seminário "Racismo e Cidadania".. O novo teatro argentino.› Vigilia de Noche é um espetáculo do dramaturgo e encenador argentino Daniel Veronose: dois irmãos e suas respetivas mulheres juntam--se em volta da urna da mãe falecida. Uma noite para confrontar demónios. O espetáculo estará em cena no São Luiz Teatro Municipal nos dias 13 e 14 de maio.. Antropofagias de Tamara Cubas.› A coreógrafa uruguaia Tamara Cubas apresentará em Lisboa, em estreia mundial, a sua Trilogia Antropofásica, inspirada em Oswald de Andrade e nas obras de outros coreógrafos sobre a tradição antropogáfica da criação brasileira. Para ver em setembro, no São Luiz Teatro Municipal..Veja a programação completa no site oficial AQUI.