Estes são os discretos guardiães dos tesouros nacionais
Os vigilantes são por vezes a única presença humana numa sala repleta de obras. São o rosto dos museus, embora muitas vezes quase não se dê pela sua presença. Em geral, trabalham em número insuficiente
Erminda Lopes conhece o interior e o exterior do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) como a palma da mão. Chegou ali para se tornar servente de limpeza da casa há 40 anos, tinha então 19. "Naquela altura era tudo uma novidade. A gente chegava ao pé do quadro do inferno [O Inferno, atribuído a um mestre português desconhecido] e arrepiava. Hoje é diferente, chego ali com naturalidade. Quando vim para cá, o meu marido já me tinha falado do quadro, que era assim uma coisa enorme. Não é tão grande assim, a criança tem uma dimensão diferente do adulto, e aquilo marcou-o profundamente."
Aos 21 anos, tornar-se-ia vigilante do museu, ofício que nunca mais deixou e que agora conjuga com as funções de coordenadora dos 36 vigilantes do MNAA. Foi ela quem ligou ao diretor adjunto, José Alberto Seabra Carvalho, quando, a 6 de novembro último, um visitante derrubou inadvertidamente a escultura do século XVIII Arcanjo São Miguel, enquanto recuava para fotografar outra obra. "Eu fiquei para morrer", recorda Erminda. "Não me reconheceu do outro lado da linha. Fiquei aflita, horrorizada, porque nunca tinha acontecido. Fiquei em pânico. Não só por estar a coordenar [os vigilantes]: acho que é uma perda, e o senhor [visitante] a quem aconteceu isso, coitadinho, estava arrasado." A Direção-Geral do Património Cultural (DGPC), que tutela os museus e monumentos públicos, faria depois saber que o restauro é possível e que se iria encarregar dele.
Como a tutela e a direção do museu, Erminda não relaciona o acidente daquele primeiro domingo do mês, em que a entrada no museu é gratuita e a afluência maior - "a gente chega a ter duas mil e tal pessoas" -, com a falta de vigilantes do MNAA. Falta denunciada no verão pelo diretor António Filipe Pimentel, que alertou para o risco de iminência de uma "calamidade". Questionado pelo jornal Público, o ministro da Cultura, Luís Filipe Castro Mendes, acabaria por antecipar o anúncio de 37 novas vagas já previstas para vigilantes, prevenindo que "devia haver mais", mas que aquele era o número que o reforço orçamental permitia. Três dessas vagas destinam-se ao MNAA, instituição que acolhe uma grande parte dos mais de 1600 bens culturais móveis de interesse nacional, chamados comummente "tesouros nacionais", assim classificados em 2006. Entre esses, nas 82 salas do museu, contam-se algumas das obras favoritas de Erminda: os Painéis de São Vicente, de Nuno Gonçalves ("a gente encontra sempre coisas novas, mesmo há 40 anos a olhar", diz), o tríptico das Tentações de Santo Antão, de Hieronymus Bosch, ou a Custódia de Belém, de Gil Vicente.
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Quando começou a trabalhar como vigilante, o número de visitantes do museu era muito diferente do atual. "Era muito mais parado. Passávamos dias em que vinha meia dúzia." Naquela altura podiam ler nas salas do museu; hoje, com uma afluência quase ininterrupta, "não é tão aconselhado" fazê-lo. Foi naquelas salas que Erminda leu Os Maias e um grande número de volumes da coleção Livros RTP. Apesar do movimento de hoje, porém, a monotonia continua a ser um dos traços do ofício. "Fazemos uma rotação de lugares, porque é muito monótono, e assim podemos tomar outra atenção às coisas. Raramente estamos no mesmo sítio dois dias seguidos." Muitas vezes, com tantas horas nas salas, dá por si a pensar: "Tenho a roupa para passar, a casa para limpar, os netos para dar o jantar..." Conta, com um sorriso, que a mais nova dos dois netos lhe diz que não se pode reformar enquanto ela não for adulta: "Porque ela vem-me substituir." Mas esse não é futuro que Erminda imagine para ela.

José Gaspar, o guardião atento da Coleção Moderna do Museu Calouste Gulbenkian
© Paulo Spranger/Global Imagens
A escassez de vigilantes faz-se sentir sobretudo nos momentos em que há "doenças, compensação de horas extraordinárias ou férias", afirma. Por vezes, algumas salas do museu são fechadas para garantir a segurança de todas elas. Atualmente, a DGPC conta com 286 vigilantes, mais 82 externos, para os 23 museus e monumentos de que tem a gestão direta. "Acho que hoje temos muito mais dificuldade em que as pessoas consigam entender o que é a profissão de vigilante: é muito complicada e de muita responsabilidade. Muitas vezes temos quatro ou cinco salas para um só vigilante, principalmente à hora de almoço ou assim. E, nos primeiros domingos de cada mês, às vezes estamos em salas onde a gente não vê um colega que esteja do outro lado, porque as pessoas são tantas... Aí é que nos sentimos com o coração nas mãos", explica Erminda. Nessas alturas, acrescenta, está em permanente sobressalto.
"Acho que os museus portugueses são seguros. Nós não temos um perigo imediato que outros museus têm. Isto não quer dizer que não possam faltar meios", afirma João Neto, presidente da Associação Portuguesa de Museologia (APOM). Sem, contudo, especificar quais são os casos mais preocupantes para a APOM, o também diretor do Museu da Farmácia - instituição privada - lembra que a vigilância é tão necessária quanto é "um encargo muito grande dos orçamentos dos museus". E que, independentemente da sua escala, "pode acontecer uma pessoa tropeçar e cair em cima de um tapete persa: ter um espaço aberto ao público traz sempre riscos."
Vários acidentes em 30 anos
A conversa correu ininterrupta até ao momento em que um grupo de estudantes entrou nas salas que guardam a Coleção Moderna do Museu Calouste Gulbenkian. Se quiséssemos uma ilustração do estado de sobressalto de que falava Erminda, bastava olhar para José Gaspar. Naquele momento, perdêramo-lo. E só sossegou quando viu outros vigilantes aproximarem-se. Trabalha na Fundação Gulbenkian há 33 anos. Hoje tem 60. Ao ouvi-lo falar e ao vê-lo circular pelas salas, fica-se com a ideia de que aquele homem magro e de bigode, encimado por um olhar atento, se dedica por inteiro a guardá-las e a ser por vezes a única presença humana com que nos cruzamos por entre as obras que, por mais vivas que pareçam, não nos respondem. Ainda assim, são raras as pessoas que o cumprimentam ao entrar. "Nós estamos preparados para isso." Foi ele quem formou muitos dos vigilantes que ali trabalham. "O meu colega é um pouco a minha imagem, e quero que toda a gente me respeite e veja que atrás desta farda estão pessoas com formação. Nós temos de transmitir isso: desde a posição à maneira de abordar, ao olhar."
O olhar, esse, é treinado há três décadas. "Quando entra um visitante, eu tenho por hábito observá-lo logo para ver que tipo de pessoa é. Disfarçadamente acompanho-o, mas vou vendo tudo isso. Eu estou a falar com a senhora, mas estou a observar aquelas duas visitantes que ali estão [aponta com a cabeça]. Para não dar muito nas vistas, nem imagina a quantidade de vezes que eu acabo por ver o mesmo quadro."

Ana Rodrigues no Museu Nacional de Arqueologia (MNA)
© Paulo Spranger/Global Imagens
O Museu Calouste Gulbenkian, instituição privada, tem 14 vigilantes na Coleção do Fundador e dez na Coleção Moderna. Ao longo dos anos, Gaspar já testemunhou "vários acidentes", nenhum deles com danos irreversíveis. "Pessoas estarem a fotografar, recuarem, não estarem atentas à obra que está atrás e partirem-na. Uma vez, numa escultura do Rui Sanches, isso também aconteceu. As pessoas ao recuar pisam uma das madeiras que ele lá tinha e é o suficiente. Se andarmos sempre atrás do visitante ele não nos aceita muito bem, mas quando algo acontece é que ele se dirige a nós e nos pede desculpa", conta.
A monotonia da profissão não incomoda José Gaspar. "Eu gosto de meditar, de pensar. Não me importo nada de estar aqui o dia todo a observar. E nunca me sento. Uma coisa que peço aos meus colegas é para se sentarem, quando há oportunidade. Muitas vezes, peço-lhes para acompanharem as visitas [guiadas], porque acabam também por se distrair, assim não é monótono para eles." Amor pelas obras em si não se pode dizer que tenha - não é particularmente sensível à arte moderna -, mas tem-no de sobra ao dever. "Quando entrei para as exposições, cada vez que havia uma diferente, a primeira observação seria sempre feita por mim. Tinha por hábito fazer uma leitura de todos os quadros e tirar todos os elementos que via; via todas as anomalias, escrevia-as, tirava fotografias e dava esse CD ao meu diretor. Queria dizer com isso que, antes de pegarmos ao serviço, certas telas já estavam danificadas."
Histórias, tem muitas. Uma, em que Natália Correia - "aquela senhora de verde", diz, apontando para o quadro de Nikias Skapinakis em que a escritora surge com Fernanda Botelho e Maria João Pires -, "um bocado embriagada", se desequilibrou e o levou contra a parede. Outra, em que confundiu Jorge de Brito, a quem pertenceu uma grande parte das obras da Coleção Moderna, com um mero visitante. E também a recordação de Maria Helena Vieira da Silva, de quem todos os vigilantes guardavam uma fotografia porque, na altura, a pintora tinha um ateliê na fundação e eles tinham ordens expressas para não a incomodar.
"Com a idade, talvez me sinta um bocado cansado", admite, quando lhe perguntamos pelo desgaste físico da profissão. "Tento fazer aquele jogo comigo próprio: faço-me sempre de forte, e vou vivendo assim." Esta é, e di-lo sem hesitar, a sua "segunda casa". Mas é um trabalho. "Estou desejoso de que venha a minha reforma. Estou saturado, e tenho por hábito dizer aos meus colegas: "No dia em que eu for reformado, nunca mais irei pôr aqui os pés."" Saudades? "Nada disso."
"Achei que era fácil ser vigilante"

João Carneiro trabalha no Museu do Chiado. Começou porque precisava de trabalhar enquanto fazia o curso de Arquitetura
© Paulo Spranger/Global Imagens
É uma tarde calma no Museu Nacional de Arte Contemporânea - Museu do Chiado (MNAC), outro depósito de tesouros nacionais, e de muitos outros que não o são oficialmente. Entre os primeiros contam-se O Grupo do Leão, de Columbano Bordalo Pinheiro - enorme, e que avistamos logo ao subir as escadas, no seu lugar habitual -, Cabeça, de Amadeo de Souza-Cardoso, ou Menino e Varina, de Mário Eloy. João Carneiro trabalha aqui há oito anos. Começou aos 20, porque precisava de trabalhar enquanto fazia o curso de Arquitetura. "Achei que era fácil." Enganou-se, nota agora que também coordena a equipa de 21 vigilantes do museu. "Há situações em que temos de ser rápidos, porque danificar uma obra é uma coisa muito rápida. Por mais que estejamos atentos, o gesto é uma coisa instantânea." Já aconteceu, recorda, ter de intervir rapidamente junto de um professor que, ao tentar explicar um aspeto de um quadro com uma caneta, por pouco não o danificava. "A dificuldade do nosso trabalho é deixarmos o visitante aproximar-se da obra e ao mesmo tempo tentar preservá-la o máximo possível", diz. Ao lado está Cecília Correia, que lança: "Adoro o que faço." Trabalha ali desde fevereiro de 2015, vinda, por mobilidade interna, da Torre do Tombo, ao contrário de João, que entrou no último concurso externo para vigilantes.
"Entramos mais cedo para ligar as luzes, fazer algumas limpezas, ver se as etiquetas identificáveis estão no sítio, se algum quadro está torto... Para às 10.00 [quando abrem as portas do museu] estar tudo pronto", diz Cecília. Nalguns dias, quando há menos visitantes e nenhum na sala que estão a vigiar, podem ler. Naquela manhã a vigilante tinha estado a ler Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge. Explicam que parte do ofício assenta no exercício de delicadeza com que, por vezes, têm de corrigir as atitudes dos visitantes, embora esta nem sempre baste, dizem. "Uma vez fiz entender a uma senhora que não podia estar ao telemóvel e às vezes, por mais educados que sejamos, isso não chega, ou porque o visitante está maldisposto ou porque não aceita ser repreendido. Neste caso aconteceu o marido vir ter comigo e começar a gritar loucamente. Acham que é uma coisa pessoal." "Eu também já tive uma experiência desagradável", começa Cecília. "Tive cá uma exposição lindíssima do Adriano de Sousa Lopes, labiríntica." Quando chamou a atenção à adulta que acompanhava os "miúdos que não paravam de correr e a miúda que por pouco não deitava um quadro ao chão", a senhora apresentou uma reclamação. "Mas tive toda a atenção da coordenação. O nosso diretor na altura [David Santos, atual subdiretor-geral do Património Cultural] dizia que preferia ter de responder a cem queixas por estarmos atentos do que ter uma de um artista a quem danificaram a obra."
A par do Museu dos Coches, que desde maio de 2015 tem um novo e maior edifício, o MNAC, cuja ampliação aconteceu no mesmo ano, foi lugar das mais recentes contratações do Estado para a função de vigilante. Para o MNAC abriram nove vagas internas, e as pessoas em questão encontram-se ainda em período experimental. Uma delas é Vítor Vicente, ex-militar (são atualmente quatro), que trabalhava no Museu Militar e que encontramos na receção da nova entrada, na Rua Capelo. "Fui treinado com uma espingarda, como é óbvio, mas segurança é segurança. O que difere mais são os riscos e o nível de ação com que podemos reagir às situações. Temos de ser presentes sem sermos o objeto da sala", diz.
Cecília, que fez o 12.º ano através das Novas Oportunidades e nunca estudou arte, quer ser fotografada ao lado do quadro Gadanheiro, de Júlio Pomar, que a leva às memórias da infância, às gadanhas dos avós. Tem aprendido muito desde que está no museu, quer ajudando na montagem das exposições quer acompanhando as visitas guiadas ou meramente andando pelo museu - "Cada vez que olho para os quadros vejo coisas novas."
"Represento a imagem de um país"
Ana Rodrigues está na receção do Museu Nacional de Arqueologia (MNA). Enquanto a esperamos, um casal idoso de alemães senta-se. Entretanto, passa um grupo de rapazes britânicos e uma turma de uma escola portuguesa. Estamos ao lado do Mosteiro dos Jerónimos, da Torre de Belém, do Museu dos Coches: os turistas são mais do que muitos. Ana, que ali faz vigilância há sete anos - entrou no último concurso externo -, coordena os 11 visitantes do MNA. Antes trabalhava no Palácio da Pena. Já não faz vigilância no seu espaço favorito do museu: a Sala do Tesouro, que agora está entregue a uma empresa de segurança privada.
Formada em Ciências da Comunicação, não foi este o emprego com que sonhou, mas aproveita-o: "Gosto de falar com as pessoas, trocar ideias e histórias. O contacto com as pessoas é vital nesta profissão. A pessoa tem de procurar escapes, falar." Como todos os outros vigilantes que encontrámos, é constantemente abordada pelos visitantes, que lhe põem questões várias. "Nem toda a gente está habituada ou sabe o que é a arqueologia. Há muitos povos que não sabem: os asiáticos, por exemplo." Ao contrário dos outros museus que visitámos, onde a formação é dada pelos colegas em contexto de trabalho, no MNA os vigilantes têm formação de cada vez que se inaugura uma nova exposição, dada "pelo diretor, pelo serviço educativo ou por um investigador".
Com o aumento exponencial dos visitantes nos últimos anos, Ana, de 36 anos, diz que quase não se senta. "O que as pessoas não sabem é que quando há muita, muita gente, nós estamos cansados ao final do dia, porque estivemos a falar com muita gente e estivemos de pé sete horas. Temos de estar bem vigilantes e alerta." Além disso, há a simpatia. Como em todos os outros museus que visitámos, durante a semana os visitantes são sobretudo estrangeiros. "Também é a imagem de um país que eu estou a representar, não é?"