À mesa e na cozinha de Eça, escritores não dão sopa de letras

Juntam-se escritores e chefes na casa duriense de Eça de Queiroz e o resultado é "Virar a mesa do avesso": duas noites de gastronomia, de literatura e de tertúlia
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Recém-chegado a Tormes de Paris, onde vivia com todas as mordomias do centro da modernidade e da "civilização", à primeira refeição Jacinto deleita-se com uma canja, um arroz de favas e o que se segue: "Diante do louro frango assado no espeto e da salada que ele apetecera na horta, agora temperada com um azeite da serra digno dos lábios de Platão, terminou por bradar: -- É divino! - Mas nada o entusiasmava como o vinho de Tormes, caindo de alto, da bojuda infusa verde -- um vinho fresco, esperto, seivoso, e tendo mais alma, entrando mais na alma, que muito poema ou livro santo." A prosa é de Eça de Queiroz em A Cidade e as Serras -- um pequeno exemplo de como o escritor da Geração de 70 nos brindou com descrições nas quais a gastronomia está presente.

Hoje e amanhã, o Restaurante de Tormes, na casa que hoje acolhe a Fundação Eça de Queiroz (Santa Cruz do Douro, Baião), não serve favas nem frango no espeto. Dois escritores, Nuno Camarneiro e Joel Neto, foram desafiados a mostrar os seus dotes culinários numa iniciativa gastronómica e literária com a assinatura do jornalista da TSF Fernando Alves.

A ideia ganhou forma no ano passado, durante o Outono Vivo, na Praia da Vitória. "Sou curador nesse festival da Terceira e para o qual o Fernando Alves e o Nuno Camarneiro tinham sido convidados", conta Joel Neto. O cronista do DN prossegue: "Naquele festival temos uma preocupação acima de qualquer outra: que as pessoas desfrutem os Açores, passeiem bem e comam bem. Acabámos por falar muito de comida e dos hábitos com que cozinhamos". A associação entre gastronomia e a culinária à literatura estava encontrada. O desafio foi lançado e aceite. "Um festival destes não podia ter melhor cenário do que a casa de Eça de Queiroz. É com um misto de respeito e de medo que eu vou à casa de Tormes demonstrar os pratos", revela. Joel Neto escolheu comida típica da sua ilha, a Terceira, bem como do resto dos Açores: sopa do Espírito Santo, alcatra terceirense, queijada Dona Amélia e queijadas de feijão.

Já Nuno Camarneiro optou pela cozinha internacional. "Vivi um ano em França e quatro em Itália. Aprendi muito da cozinha destes países. Como sou da Figueira da Foz, se quisesse levar para o lado regional só se fosse peixe fresco, o que em Baião é um bocado absurdo", explica o vencedor do Prémio Leya em 2012. Amanhã será servido salada de ovas de bacalhau, sopa de alho porro, bacalhau à livornese, risotto de cabidela e arroz doce com limonete.

Joel Neto não cozinha todos os dias, mas recusa ser "o cliché do homem que faz petiscos para os amigos, deixa a cozinha toda suja e se reclama cozinheiro". E como se reflete a sua relação com as artes culinárias? "A gastronomia é bastante presente, sobretudo nos meus últimos dois livros. Desde os meus primeiros livros que se come muito, uma pessoa sai de lá com fome", diz o autor de Arquipélago.

Já Nuno Camarneiro cozinha todos os dias, mas isso não se reflete na obra publicada, antes na inspiração. "Quando um prato resulta particularmente bem ou de que goste muito se calhar predispõe-me depois a criar. Uma boa refeição e um bom vinho ajudam-me a lançar para a escrita".

Um e outro consideram fundamental o papel dos chefes da cozinha do restaurante, António Pinto e António Queiroz Pinto. "Espero que o chefe e a sua equipa me ajudem bastante. Não estou habituado a cozinhar para tanta gente", diz o escritor figueirense. "Eu nem arriscava se não tivesse a participação destes dois chefes. Estão previstas dezenas de pessoas e isso é uma coisa absolutamente arrepiante", comenta Joel Neto. António Pinto confirma o modus operandi para as noites de tertúlia: "Os pratos vão ser preparados em parceria com os chefes. Isto é como tudo, os escritores têm as receitas, mas precisam de ajuda devido às quantidades e ao empratamento, e essa ajuda será dada por nós."

Além da moderação de Fernando Alves, participa na tertúlia o escritor de Baião António Mota (hoje) e a professora de Literatura da Universidade do Rio de Janeiro Mónica Figueiredo (amanhã). E os chefes, participam? "Se houver oportunidade. Temos o dever de servir as pessoas e alguém tem de ficar na retaguarda", diz o mais velho, António Pinto.

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