É certo que Fernão Lopes deixa transparecer na sua crónica um D. João, Mestre de Avis, receoso e hesitante, pelo menos na fase inicial do processo revolucionário..Admitimos que tenha tomado atitudes pouco honrosas, logo após a morte do conde Andeiro, mas depois da sua eleição revolucionária, como Regedor e Defensor dos Reinos de Portugal e do Algarve, e de ter decidido, definitivamente, permanecer em Portugal, desenvolveu uma série de acções de liderança dignas de um verdadeiro estadista e chefe da nação..Rodeou-se de excelentes conselheiros políticos, jurídicos e militares, nomeadamente, Álvaro Pais, doutor João das Regras e Nuno Álvares Pereira e, com visão abrangente, concluiu que a primeira batalha a ser ganha seria em Lisboa, necessitando para o efeito de apoios externos e internos..Envia duas embaixadas a Inglaterra, renovando a D. João, duque de Lencastre, o apoio de Portugal às suas pretensões ao trono castelhano e pedindo autorização para arregimentar ingleses para a defesa territorial..Avisa os lisboetas, em especial os acompanhantes do rei de Castela, em Santarém, que o tempo de indefinição e de opção partidária de acordo com os interesses de momento havia acabado, porque decorrido certo prazo, conforme Edital afixado na Rua Nova, se não regressassem à cidade de Lisboa, perderiam todos os bens a favor da coroa "quando El Rey de Castella chegou a Santarem foy dado pregom na çidade de Lixboa e bitafe posto no tauolado da Rua noua que todos os moradores da dicta çidade que eram em companha delRej de Castella que se uiessem a dicta çidade ataa tempo çerto e nom vindo ao dicto tempo que perdessem todos seus beẽs e fossem pera a cooroa do Regno testemunhas Jusep Nauarro que o dito bitafe leeo" (Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Carmo de Lisboa, Tombo n.º 18, fl.26)..Consegue comunicar com o infante D. João, preso em Castela, recebendo todo o seu apoio a favor da sua eleição e da causa defendida..Encontrando os cofres da coroa em penúria, por causa das guerras fernandinas, e necessitando de dinheiro para sustentar a guerra, angaria fundos: recebe cem mil libras, oferecidas pelos lisboetas; a comuna dos judeus, para além do serviço dos judeus, empresta-lhe sessenta marcos de prata; os clérigos, em cruzes, cálices e outros paramentos religiosos, dão-lhe duzentos e oitenta e sete marcos de prata; do dinheiro apreendido aos fugitivos, premeia o denunciante com um quinto do seu valor e reverte o resto para os cofres da coroa; dos haveres escondidos, apossa-se de um grande tesouro descoberto da mulher do conde D. João Afonso Telo; pede também empréstimos a pessoas particulares; e a esse dinheiro junta novecentos marcos de prata de sua câmara..Manda cunhar moeda, autoriza outros a fazê-lo, resgata cativos da guerra, encarrega o diligente D. Lourenço, arcebispo de Braga, de armar galés em Lisboa, que em poucos dias arma doze, pondo termo às isenções e obrigando todos a trabalhar, incluindo clérigos e frades..Não podendo fazer um périplo pelo país, por estar em guerra, envia emissários pedindo que fossem tratados como se ele próprio estivesse presente, como acontece com Afonso Eanes de Évora..A procuração passada a seu favor, em 14 de Fevereiro de 1384, é dirigida aos concelhos e homens-bons de Montemor-o-Novo, Évora, Viana, Alvito, Vila Nova, Alcáçovas, Portel, Beja, Serpa, Mértola, e a todas as vilas e lugares do Campo de Ourique, Odemira, Santiago de Cacém, Sines e Torrão, sendo a sua missão principal a de angariar adesões e apoio económico no Alentejo (Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Gavetas, gaveta 4, maço 2, doc. n.º 3)..No dia 21, apresenta-se no Paço do Concelho de Montemor-o-Novo, em presença do juiz, clérigo, regedores, vereador, procurador do concelho, cabeça dos sapateiros, cabeça dos alfaiates, cabeça dos braceiros, homens-bons e muito povo da vila e do seu termo, sendo notória a representação dos mesteirais. No dia 25, já se encontra em Évora, onde também consegue o desejado apoio económico (gaveta 12, maço 7, doc. n.º 13)..Decorre da leitura da procuração que a capital contava com o apoio de Mértola, e é provável que isso acontecesse pois, nessa altura, Fernão Dantas, cavaleiro, comendador-mor da Ordem de Santiago e alcaide de Mértola, se encontrava em Lisboa, tendo sido agraciado pelo Mestre (ANTT, Chancelaria de D. João I, Livro 1, fls. 3v-4.), mas depois Mértola toma o partido castelhano..Na sua prelação, além de fazer uma síntese dos acontecimentos ocorridos em Lisboa, explica-os e justifica-os, afirmando que Deus dera sempre lídimos, verdadeiros e direitos reis, tendo eles regido e governado em paz, direito e justiça, mantido sempre Portugal independente ("isento sobre si"), e eram correspondidos pela população..Declara que os problemas tinham surgido após o casamento do rei D. Fernando com D. Leonor Teles, por ter trazido duplicações de encargos e padecimentos populares..Ela e alguns dos seus falsos conselheiros haviam tentado assassinar o Mestre de Avis, antes e depois da morte do rei D. Fernando, com intenção de pôr termo à linhagem real e sujeitar os Reinos de Portugal e Algarve a Castela..Depreendendo os perigos que esta conspiração representava para Portugal, por inspiração divina, o Mestre de Avis matara o conde Andeiro, pondo em perigo a sua própria vida, para honrar os reinos e evitar a consumação daquela conspiração..Escandalizada com a morte daquele conde, sem razão, a rainha partira de Lisboa e convidara o rei de Castela a entrar em Portugal, com intenções obscuras, que se provavam pela sua abdicação do governo e do regimento a favor dele, sem nenhum conselho nem razão justificável..Pelas obras feias praticadas pelos castelhanos, em Santarém, poder-se-á calcular o que fariam, caso dominassem Portugal..Exposta a situação, enumera as regras e os bons ordenamentos, postos pelo Mestre, para prosseguir com a sua missão e custear os encargos por terra e mar. No dia 25, Afonso Eanes repete os argumentos em Évora e agrava os ataques à rainha, acrescentando que ela e os seus maus conselheiros tinham desnaturado também os infantes D. João e D. Dinis..Ao contrário da situação vivida na Europa, apesar dos concelhos se queixarem da sobrecarga dos encargos, em Portugal não surgem protestos, distúrbios ou revoltas. Os concelhos aceitam-nos pacificamente, porque sabiam que se destinavam a ser utilizados a favor da luta pela independência nacional, mas agora exigiam e determinavam que o ónus recaísse sobre todos, sem nenhuma isenção, fosse qual fosse o estado, condição, privilégio e liberdade que tivessem as pessoas..Todavia, é de colocar certas reservas à unanimidade das decisões concelhias que a documentação parece garantir. É certo que o povo detestava a rainha, mas daí a aceitar unanimemente a decisão lisboeta da eleição revolucionária do Mestre, e o abraço uníssimo à sua causa, é um dado que nos parece exagerado, porque a situação era crítica e o rei de Castela estava prestes a avançar contra a capital, o coração de Portugal..A falta de coragem e o receio de represálias calaria os pensamentos inoportunos, como o de pedir perdão à rainha. A excessiva força da maioria, os ânimos exaltados e as exemplares execuções conhecidas, aconselhavam a ter prudência e a secundar, sem réplica, as decisões tomadas em público..Também pelo facto de ter sido criado um Governo Revolucionário em Lisboa, parece não ser motivo suficiente para o resto do país se rejubilar e esquecer que existia uma autoridade legítima, consubstanciada na rainha D. Leonor, legítima por ter casado com o legítimo rei D. Fernando..Aos olhos do povo, este tipo de realidades quotidianas não carecia de complexas demonstrações jurídicas, políticas ou filosóficas. Pelo contrário, a eleição do Mestre de Avis como Regedor, sem o apoio da autoridade legítima, para ser válida e aceitável é que necessitava de justificação..Cabia aos representantes do Mestre divulgar o conceito segundo o qual a rainha D. Leonor fizera do poder legítimo uma utilização abusiva, daí que fosse lícita a sua destituição do poder e a sua substituição pelo Mestre de Avis..Competia aos seus delegados fazer vingar a argumentação de só ser legítima a autoridade real quando pugnava pelos interesses nacionais, ou seja, pela independência nacional. É precisamente essa ideia-chave que é defendida e propagandeada pelo país, pelos embaixadores da revolução, vincando bem que a rainha era ilegítima porque pretendia eliminar os legais herdeiros ao trono português a fim de sujeitar o território nacional ao domínio castelhano..É no decurso do processo revolucionário que as regras, pelas quais se regia Portugal, vão ser alteradas sendo apontados novos valores como prioritários. A defesa de um estatuto que ressalvasse no seu todo a independência nacional passou a ser considerada a prioridade das prioridades. Nesse contexto é difundida e apoiada a ideia segundo a qual a fidelidade vassálica só era devida a quem defendesse a independência nacional..O Mestre reconhece também que o norte do país é tanto ou mais importante que o Alentejo para a ajuda e defesa da causa revolucionária, daí ter enviado dois embaixadores para a cidade do Porto, Gonçalo Peres e Rui Pereira, este com maior poder do que Afonso Eanes de Évora e Gonçalo Peres, a ponto de ser autorizado a fazer doações e quitar menagens dos castelos..Para que fossem bem-sucedidos, antecipando a chegada da frota à capital nortenha, em Março de 1384, doa à cidade do Porto a jurisdição de Bouças e do seu termo, e em 12 de Abril, doa por termo todo o julgado de Bouças, da Maia e Gaia. O próprio Rui Pereira leva consigo outro documento do Mestre onde consta: "damos-lhj por termho E metemos so sua jurdiçom Penafiell de Sousa E Vila noua da par de Gaya" (Arquivo Municipal do Porto, Livro 2.º de Pergaminhos, doc. n.º 65)..Afortunadamente, a frota vai chegar precisamente quando as forças inimigas, compostas de galegos e portugueses, comandadas por João Manrique, arcebispo de Santiago, tentava acercar-se da cidade do Porto. Obrigadas a retirarem-se, são postas em fuga..Ao pedido de Rui Pereira para que fossem armadas as naus, barcas e galés e emprestassem dinheiro, o cidadão Domingos Pires das Eiras, em nome da cidade, garante todo o apoio e aconselha-o a convidar o conde D. Gonçalo, irmão da rainha D. Leonor, para comandar a frota portuguesa..Em termos político-militares, esse apoio era fundamental, porque seria uma figura cimeira, inicialmente de oposição, depois expectante, e a seguir partidário da causa revolucionária. Manifestando a sua disponibilidade para lutar por ela, esperava-se que assim se pudesse convencer outras localidades, vizinhas da cidade Coimbra, e oferecer-lhes argumentos oportunos e válidos para mudarem de opinião e alinharem pela revolução..Daí todas as suas exigências terem sido satisfeitas, incluindo o pedido das terras pertencentes à rainha D. Leonor, então em posse de Nuno Álvares..Os arquivos portuenses, as chancelarias régias, incluindo a do rei D. Duarte (Livro I, fls. 182 v a 184 v.), comprovam à saciedade a inolvidável ajuda prestada pelos portuenses à causa revolucionária..Será que o Mestre de Avis reservava também um papel especial a Nuno Álvares Pereira?.Historiador.O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.