XVII - Um grande estadista

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É certo que Fernão Lopes deixa transparecer na sua crónica um D. João, Mestre de Avis, receoso e hesitante, pelo menos na fase inicial do processo revolucionário.

Admitimos que tenha tomado atitudes pouco honrosas, logo após a morte do conde Andeiro, mas depois da sua eleição revolucionária, como Regedor e Defensor dos Reinos de Portugal e do Algarve, e de ter decidido, definitivamente, permanecer em Portugal, desenvolveu uma série de acções de liderança dignas de um verdadeiro estadista e chefe da nação.

Rodeou-se de excelentes conselheiros políticos, jurídicos e militares, nomeadamente, Álvaro Pais, doutor João das Regras e Nuno Álvares Pereira e, com visão abrangente, concluiu que a primeira batalha a ser ganha seria em Lisboa, necessitando para o efeito de apoios externos e internos.

Envia duas embaixadas a Inglaterra, renovando a D. João, duque de Lencastre, o apoio de Portugal às suas pretensões ao trono castelhano e pedindo autorização para arregimentar ingleses para a defesa territorial.

Avisa os lisboetas, em especial os acompanhantes do rei de Castela, em Santarém, que o tempo de indefinição e de opção partidária de acordo com os interesses de momento havia acabado, porque decorrido certo prazo, conforme Edital afixado na Rua Nova, se não regressassem à cidade de Lisboa, perderiam todos os bens a favor da coroa "quando El Rey de Castella chegou a Santarem foy dado pregom na çidade de Lixboa e bitafe posto no tauolado da Rua noua que todos os moradores da dicta çidade que eram em companha delRej de Castella que se uiessem a dicta çidade ataa tempo çerto e nom vindo ao dicto tempo que perdessem todos seus beẽs e fossem pera a cooroa do Regno testemunhas Jusep Nauarro que o dito bitafe leeo" (Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Carmo de Lisboa, Tombo n.º 18, fl.26).

Consegue comunicar com o infante D. João, preso em Castela, recebendo todo o seu apoio a favor da sua eleição e da causa defendida.

Encontrando os cofres da coroa em penúria, por causa das guerras fernandinas, e necessitando de dinheiro para sustentar a guerra, angaria fundos: recebe cem mil libras, oferecidas pelos lisboetas; a comuna dos judeus, para além do serviço dos judeus, empresta-lhe sessenta marcos de prata; os clérigos, em cruzes, cálices e outros paramentos religiosos, dão-lhe duzentos e oitenta e sete marcos de prata; do dinheiro apreendido aos fugitivos, premeia o denunciante com um quinto do seu valor e reverte o resto para os cofres da coroa; dos haveres escondidos, apossa-se de um grande tesouro descoberto da mulher do conde D. João Afonso Telo; pede também empréstimos a pessoas particulares; e a esse dinheiro junta novecentos marcos de prata de sua câmara.

Manda cunhar moeda, autoriza outros a fazê-lo, resgata cativos da guerra, encarrega o diligente D. Lourenço, arcebispo de Braga, de armar galés em Lisboa, que em poucos dias arma doze, pondo termo às isenções e obrigando todos a trabalhar, incluindo clérigos e frades.

Não podendo fazer um périplo pelo país, por estar em guerra, envia emissários pedindo que fossem tratados como se ele próprio estivesse presente, como acontece com Afonso Eanes de Évora.

A procuração passada a seu favor, em 14 de Fevereiro de 1384, é dirigida aos concelhos e homens-bons de Montemor-o-Novo, Évora, Viana, Alvito, Vila Nova, Alcáçovas, Portel, Beja, Serpa, Mértola, e a todas as vilas e lugares do Campo de Ourique, Odemira, Santiago de Cacém, Sines e Torrão, sendo a sua missão principal a de angariar adesões e apoio económico no Alentejo (Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Gavetas, gaveta 4, maço 2, doc. n.º 3).

No dia 21, apresenta-se no Paço do Concelho de Montemor-o-Novo, em presença do juiz, clérigo, regedores, vereador, procurador do concelho, cabeça dos sapateiros, cabeça dos alfaiates, cabeça dos braceiros, homens-bons e muito povo da vila e do seu termo, sendo notória a representação dos mesteirais. No dia 25, já se encontra em Évora, onde também consegue o desejado apoio económico (gaveta 12, maço 7, doc. n.º 13).

Decorre da leitura da procuração que a capital contava com o apoio de Mértola, e é provável que isso acontecesse pois, nessa altura, Fernão Dantas, cavaleiro, comendador-mor da Ordem de Santiago e alcaide de Mértola, se encontrava em Lisboa, tendo sido agraciado pelo Mestre (ANTT, Chancelaria de D. João I, Livro 1, fls. 3v-4.), mas depois Mértola toma o partido castelhano.

Na sua prelação, além de fazer uma síntese dos acontecimentos ocorridos em Lisboa, explica-os e justifica-os, afirmando que Deus dera sempre lídimos, verdadeiros e direitos reis, tendo eles regido e governado em paz, direito e justiça, mantido sempre Portugal independente ("isento sobre si"), e eram correspondidos pela população.

Declara que os problemas tinham surgido após o casamento do rei D. Fernando com D. Leonor Teles, por ter trazido duplicações de encargos e padecimentos populares.

Ela e alguns dos seus falsos conselheiros haviam tentado assassinar o Mestre de Avis, antes e depois da morte do rei D. Fernando, com intenção de pôr termo à linhagem real e sujeitar os Reinos de Portugal e Algarve a Castela.

Depreendendo os perigos que esta conspiração representava para Portugal, por inspiração divina, o Mestre de Avis matara o conde Andeiro, pondo em perigo a sua própria vida, para honrar os reinos e evitar a consumação daquela conspiração.

Escandalizada com a morte daquele conde, sem razão, a rainha partira de Lisboa e convidara o rei de Castela a entrar em Portugal, com intenções obscuras, que se provavam pela sua abdicação do governo e do regimento a favor dele, sem nenhum conselho nem razão justificável.

Pelas obras feias praticadas pelos castelhanos, em Santarém, poder-se-á calcular o que fariam, caso dominassem Portugal.

Exposta a situação, enumera as regras e os bons ordenamentos, postos pelo Mestre, para prosseguir com a sua missão e custear os encargos por terra e mar. No dia 25, Afonso Eanes repete os argumentos em Évora e agrava os ataques à rainha, acrescentando que ela e os seus maus conselheiros tinham desnaturado também os infantes D. João e D. Dinis.

Ao contrário da situação vivida na Europa, apesar dos concelhos se queixarem da sobrecarga dos encargos, em Portugal não surgem protestos, distúrbios ou revoltas. Os concelhos aceitam-nos pacificamente, porque sabiam que se destinavam a ser utilizados a favor da luta pela independência nacional, mas agora exigiam e determinavam que o ónus recaísse sobre todos, sem nenhuma isenção, fosse qual fosse o estado, condição, privilégio e liberdade que tivessem as pessoas.

Todavia, é de colocar certas reservas à unanimidade das decisões concelhias que a documentação parece garantir. É certo que o povo detestava a rainha, mas daí a aceitar unanimemente a decisão lisboeta da eleição revolucionária do Mestre, e o abraço uníssimo à sua causa, é um dado que nos parece exagerado, porque a situação era crítica e o rei de Castela estava prestes a avançar contra a capital, o coração de Portugal.

A falta de coragem e o receio de represálias calaria os pensamentos inoportunos, como o de pedir perdão à rainha. A excessiva força da maioria, os ânimos exaltados e as exemplares execuções conhecidas, aconselhavam a ter prudência e a secundar, sem réplica, as decisões tomadas em público.

Também pelo facto de ter sido criado um Governo Revolucionário em Lisboa, parece não ser motivo suficiente para o resto do país se rejubilar e esquecer que existia uma autoridade legítima, consubstanciada na rainha D. Leonor, legítima por ter casado com o legítimo rei D. Fernando.

Aos olhos do povo, este tipo de realidades quotidianas não carecia de complexas demonstrações jurídicas, políticas ou filosóficas. Pelo contrário, a eleição do Mestre de Avis como Regedor, sem o apoio da autoridade legítima, para ser válida e aceitável é que necessitava de justificação.

Cabia aos representantes do Mestre divulgar o conceito segundo o qual a rainha D. Leonor fizera do poder legítimo uma utilização abusiva, daí que fosse lícita a sua destituição do poder e a sua substituição pelo Mestre de Avis.

Competia aos seus delegados fazer vingar a argumentação de só ser legítima a autoridade real quando pugnava pelos interesses nacionais, ou seja, pela independência nacional. É precisamente essa ideia-chave que é defendida e propagandeada pelo país, pelos embaixadores da revolução, vincando bem que a rainha era ilegítima porque pretendia eliminar os legais herdeiros ao trono português a fim de sujeitar o território nacional ao domínio castelhano.

É no decurso do processo revolucionário que as regras, pelas quais se regia Portugal, vão ser alteradas sendo apontados novos valores como prioritários. A defesa de um estatuto que ressalvasse no seu todo a independência nacional passou a ser considerada a prioridade das prioridades. Nesse contexto é difundida e apoiada a ideia segundo a qual a fidelidade vassálica só era devida a quem defendesse a independência nacional.

O Mestre reconhece também que o norte do país é tanto ou mais importante que o Alentejo para a ajuda e defesa da causa revolucionária, daí ter enviado dois embaixadores para a cidade do Porto, Gonçalo Peres e Rui Pereira, este com maior poder do que Afonso Eanes de Évora e Gonçalo Peres, a ponto de ser autorizado a fazer doações e quitar menagens dos castelos.

Para que fossem bem-sucedidos, antecipando a chegada da frota à capital nortenha, em Março de 1384, doa à cidade do Porto a jurisdição de Bouças e do seu termo, e em 12 de Abril, doa por termo todo o julgado de Bouças, da Maia e Gaia. O próprio Rui Pereira leva consigo outro documento do Mestre onde consta: "damos-lhj por termho E metemos so sua jurdiçom Penafiell de Sousa E Vila noua da par de Gaya" (Arquivo Municipal do Porto, Livro 2.º de Pergaminhos, doc. n.º 65).

Afortunadamente, a frota vai chegar precisamente quando as forças inimigas, compostas de galegos e portugueses, comandadas por João Manrique, arcebispo de Santiago, tentava acercar-se da cidade do Porto. Obrigadas a retirarem-se, são postas em fuga.

Ao pedido de Rui Pereira para que fossem armadas as naus, barcas e galés e emprestassem dinheiro, o cidadão Domingos Pires das Eiras, em nome da cidade, garante todo o apoio e aconselha-o a convidar o conde D. Gonçalo, irmão da rainha D. Leonor, para comandar a frota portuguesa.

Em termos político-militares, esse apoio era fundamental, porque seria uma figura cimeira, inicialmente de oposição, depois expectante, e a seguir partidário da causa revolucionária. Manifestando a sua disponibilidade para lutar por ela, esperava-se que assim se pudesse convencer outras localidades, vizinhas da cidade Coimbra, e oferecer-lhes argumentos oportunos e válidos para mudarem de opinião e alinharem pela revolução.

Daí todas as suas exigências terem sido satisfeitas, incluindo o pedido das terras pertencentes à rainha D. Leonor, então em posse de Nuno Álvares.

Os arquivos portuenses, as chancelarias régias, incluindo a do rei D. Duarte (Livro I, fls. 182 v a 184 v.), comprovam à saciedade a inolvidável ajuda prestada pelos portuenses à causa revolucionária.

Será que o Mestre de Avis reservava também um papel especial a Nuno Álvares Pereira?

Historiador

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

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