XVI - Invasão de Portugal com 30 homens

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Tendo D. Afonso Correia, bispo da cidade da Guarda, assegurado que tinha preparado a cidade para o receber, entusiasmado com a notícia, o rei D. João I de Castela, acompanhado de sua mulher, rainha D. Beatriz, filha do falecido rei D. Fernando e da rainha D. Leonor Teles, partiu de Perosim e, fazendo marcha forçada, durante toda a noite, chegou àquela cidade de manhã, tendo sido recebido pelos clérigos em procissão.

Foi assim concretizada a temida invasão castelhana pelo casal real vizinho, escoltado por escassos 30 homens armados.

Em ajuda a esse desenlace, como prova de não estar sozinho, a documentação comprova que o bispo fora auxiliado por Álvaro Eanes do Porto e Álvaro Gonçalves de Proença.

É claro que o rei castelhano jamais seria tão ousado e imprudente se não soubesse que teria o apoio de personagens mais importantes da Comarca da Beira, designadamente, Vasco Martins de Melo, Martim Afonso de Melo, Vasco Martins da Cunha, Martim Vasques, Fernando Afonso de Melo, Álvaro Gil de Carvalho e de muitos outros, que o foram receber, prestando vassalagem e fazendo menagem dos castelos em sua posse.

Apesar desse sucesso inicial, o monarca castelhano sofreu as primeiras contrariedades: eles frisaram que faziam menagem com entendimento de que o Tratado de Salvaterra de Magos fosse guardado; apesar de ser aliciado e pressionado, o Alcaide do Castelo da Guarda, Álvaro Gil Cabral, não entregou o castelo e manteve-se imparcial; soube também que essas destacadas figuras não gostaram muito dele porque, ao contrário do rei D. Fernando, era de poucas palavras; e que não tinham aceitado de bom grado a sua desculpa de não lhes ter dado dinheiro, pretextando haver entrado apressadamente.

Todavia podia dar-se por satisfeito porque se, em Alenquer, a rainha D. Leonor era contra a sua entrada em Portugal, já em Santarém, consciente da sua incapacidade de pôr cobro à insurreição encabeçada por Mestre de Avis, queixa-se ao casal real de ter sido desonrada, por ele e pelos lisboetas, e convida-os a entrar rapidamente em Portugal e a esmagar a rebelião.

Estava convencida de que após o domínio da rebelião, do restabelecimento da ordem pública e da pacificação do país, recuperaria a regência e o seu genro, acompanhado da esposa, regressaria a Castela.

Era tamanho o seu ódio pelos rebeldes e tão grande o desejo de retaliação que afirmava: "Só me sentirei vingada de todos, em especial, dos homens e mulheres de Lisboa, quando tiver um tonel cheio de línguas deles."

No desenho político, com o acelerado aumento diário de efectivos militares inimigos, três poderes passam a ditar ordens e a intervir no país. Destes, só o da rainha D. Leonor era legítimo, por dimanar directamente da vontade do falecido rei D. Fernando e dos usos e costumes tradicionais portugueses.

O do rei castelhano era ilegítimo por ter entrado em Portugal, por sua iniciativa, antes da formulação do convite da rainha D. Leonor, o que representou uma flagrante violação do território português.

Admitindo que soubesse estar a sogra a debater com graves dificuldades e que solicitaria a sua ajuda, todavia nenhum mecanismo legal o autorizava a entrar no território português sem receber o convite formal e muito menos a preparar uma invasão, mesmo à luz do Tratado de Salvaterra de Magos.

Aos olhos dos revolucionários, essas forças de impugnação representavam poderes ilegítimos, porque, no entender deles, só era legítimo o poder dirigido por D. João, Mestre de Avis, por defender a independência nacional.

Fortemente determinado a ser rei de Portugal, ciente de estar garantido o apoio da rainha D. Leonor e dos seus poderosos familiares e partidários, como ela afiançara, o rei castelhano, permanece quatro dias em Celorico e, antes de se encontrar com a sogra, procura confirmar o apoio de Coimbra. Aqui sofre uma surpresa desagradável, porque o conde D. Gonçalo, irmão da rainha, que tinha a cidade de Coimbra, e o alcaide do castelo, Gonçalo Mendes de Vasconcelos, tio da rainha, não o foram receber.

A caminho de Santarém, se, em Miranda, o conde de Viana, D. João Afonso Telo, homónimo do conde de Barcelos, toma o seu partido e vai recebê-lo, em Tomar, D. Lopo Dias de Sousa, Mestre de Cristo e sobrinho da rainha, ausenta-se, propositadamente, para Pombal, a fim de se furtar a acolhê-lo.

Constata-se assim que nem todos os familiares mais chegados da rainha corresponderam às suas expectativas. Embora fossem partidários dela, alguns manifestavam-se contrários à fusão das duas coroas.

Chegado a Santarém, em 12 de Janeiro de 1384, é recebido pela enlutada e chorosa rainha D. Leonor que se queixa do Mestre de Avis, acusando-o de ter matado o conde Andeiro, nos seus paços, e de ter expulsado, de Lisboa, a ela e aos seus.

O rei de Castela, revelando estar muito bem preparado ou instruído para lhe responder, replica que, realmente, havia vindo para cumprir esse propósito, mas lamenta não poder concretizar esses desejos, ou seja, de a vingar do Mestre de Avis e dos insurrectos, nem poder sujeitar vila ou cidade, que tinham tomado voz contra ela, sem que primeiro renunciasse a seu favor e de sua filha, todo o Regimento que detinha do reino.

Apesar de ter sido aconselhada a não fazê-lo e de lhe terem dito que poderia ser considerado ilícito, D. Leonor esquece todos os impedimentos legais existentes e renuncia todo o direito do Regimento que tinha no reino, por escritura pública, no dia seguinte, a favor do rei de Castela e de sua esposa.

Essa abdicação do Governo e do Regimento a favor de um rei estrangeiro, embora seu genro, é de legitimidade duvidosa, porque sendo um acto público de máxima importância só podia ter sido praticado depois de submetido à aprovação das Cortes ou, pelo menos, depois de as consultar.

Senhor do poder, o rei de Castela substitui os titulares do castelo e da alcáçova de Santarém por castelhanos de sua confiança e comporta-se como rei de Portugal. Mantém os membros do Governo, altera selos, cunha moeda, paga soldos, faz doações das terras pertencentes aos partidários do Mestre para os seus apoiantes, como acontece com o lugar e a alcaidaria de Alter do Chão que, de Nuno Álvares Pereira, passa para Pedro Rodrigues da Fonseca.

Tudo parecia correr-lhe de feição, pois importantes fidalgos, senhores poderosos e cavaleiros, detentores dos castelos, vieram prestar-lhe homenagem e garantir obediência. Após aceitação da vassalagem, ordenou o regresso de alguns aos seus lugares e manteve outros em sua companhia. Acresce ainda que o Concelho de Santarém, por iniciativa própria, deu-lhe 30 mil libras e a rainha ofereceu-lhe também muitas jóias do rei D. Fernando.

Contudo, em Santarém, depressa os problemas vieram bater-lhe à porta. Dos membros da governação fernandina, por si reconduzidos, sofre duas baixas de peso, porque Lourenço Anes Fogaça, chanceler-mor, e Gonçalo Peres, seu escrivão de chancelaria, aproveitando a autorização concedida para, alegadamente, irem ter com as respectivas mulheres, abandonam-no e oferecem os seus serviços ao Mestre de Avis.

Se inicialmente os castelhanos tiveram boas maneiras para com os donos dos locais onde se aposentavam, não tardou muito a abusarem, expulsando-os das suas casas, roubando os seus haveres, dormindo com as mulheres deles, ameaçando-os de morte e dizendo pertencer-lhes tudo o que tinham.

Receosas de serem presas e maltratadas, as pessoas passaram a ter medo de sair das casas, sem alvará. Cansadas dos excessos, muitas preferiram fugir para Lisboa e para outros lugares, enquanto terceiros solicitaram ao Mestre que viesse de barco e atacasse os castelhanos, garantindo ajuda.

A esses males acresceram os atritos da rainha D. Leonor com o rei de Castela, iniciados quando vagou o arabiado-mor dos judeus, em Castela. Ela pediu-o a favor de D. Juda, tesoureiro do rei D. Fernando e seu privado. O rei recusou e deu a D. David Negro, judeu honrado, muito rico e privado do rei D. Fernando, a servir a rainha D. Beatriz desde a sua chegada a Santarém.

Zangada, aconselha a alguns acompanhantes, da sua fuga de Lisboa, a tomarem o partido do Mestre, havendo quem tivesse aceitado o repto.

Arrependida, dizem que escreveu, em segredo, a alguns lugares que o rei de Castela pretendia cobrar, como Coimbra, dizendo que não lhe cedessem, mesmo que ela estivesse presente com ele e apresentasse as melhores razões para o fazer. O rei de Castela, convencido de que poderia apossar-se dessa cidade, se fosse apoiado e acompanhado da sogra, vai dormir a Torres Novas, onde comete a imprudência de ordenar que ela fosse guardada por castelhanos.

No dia seguinte, ao tomar conhecimento desse procedimento, ficou furiosa e acusou o rei de Castela de trazê-la presa, recusando aceitar justificações.

Chegando a Coimbra, embora fosse apoiada pelo conde D. Gonçalo, seu irmão, as suas tentativas para fugir e refugiar-se junto dele revelaram-se infrutíferas por estar bem vigiada e guardada por ordem real.

Transtornada e desiludida, incapaz de encontrar uma solução adequada para os seus intrincados problemas, abraça a conjura dos que em Coimbra pretendiam assassinar o rei de Castela para poderem libertá-la.

O plano consistia em o primo do rei de Castela, conde D. Pedro, matar o seu rei e fugir com a rainha D. Leonor para junto do conde D. Gonçalo para, depois de casar com ela, ser ele rei de Portugal e ela rainha.

Descoberta a conspiração, ao fugitivo conde D. Pedro, por não vir acompanhado da rainha D. Leonor, é recusado o refúgio em Coimbra. Perseguido pelos castelhanos, foge para a cidade do Porto.

A desventurada rainha D. Leonor, acareada depois de presa, despida de argumentos para se defender, antes de ser deportada para Castela, ao irado sogro que lhe disse que não a matava por causa da filha, mas a mandaria a um mosteiro, respondeu altiva e corajosamente: "Isso fazei vós a uma irmã se a tiverdes."

A prisão e deportação da rainha D. Leonor retira ao rei de Castela a credibilidade que até então conseguira ganhar e leva muitos hesitantes a manterem-se indecisos ou a tomarem o partido do Mestre, por se sentirem libertos do juramento de fidelidade à rainha. Todavia, havia quem ainda se julgasse preso à escritura de Salvaterra de Magos, enquanto outros indiciavam a opção pelo mais forte.

O rei de Castela, que já enviara uma força de 1000 lanças para permanecerem no termo de Lisboa, a fim de iniciar o cerco da capital, parte de Santarém, no dia 10 de Março de 1384, com intenção de a cercar, por saber que, conquistada Lisboa, Portugal inteiro seria seu.

Após deportação da rainha D. Leonor para Castela, Portugal vai ser dirigido por dois governos que podem ser considerados ilegítimos. O revolucionário, do Mestre de Avis, e o de impugnação, de D. João I de Castela.

De agora em diante, só a força das armas irá decidir, em definitivo, o vencedor da contenda, legitimando de facto, o seu Governo.

Entrementes, como respondia o Mestre de Avis?

Historiador
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

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