Viver como um homem

Se fosse uma personagem do filme "Morrer como um Homem", e não o actor principal, dir-se-ia que vive há 25 anos uma vida partida entre Deborah e Fernando. Mas um travesti/transformista não é sempre um abismo. Este filho da Mouraria escolheu não o ser<br />
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Há pelo menos mais duas Deborahs Cristal no mundo. Uma é americana, vice-presidente de uma empresa de marketing com 150 empregados. A outra está no Facebook, é sul-americana e parece ter vinte e poucos anos.

Fernando Santos talvez saiba, não falámos disso. Mas certo é que não roubou o nome a nenhuma delas. Deborah Krystal, que também aparece escrito Cristal, nasceu "para aí em 1984", no meio de um espectáculo em que vários participantes estavam no camarim e resolveram começar a mudar os títulos de guerra. Fernando era na altura Susie Flower ("Foram as pessoas que me convidaram para trabalhar que me nomearam assim"). E Deborah, que depois descobriria querer dizer abelha em hebraico - "Tem graça porque é um insecto com o qual toda a gente simpatiza, faz mel, anda de flor em flor...", surgiu na conversa. Krystall, "uma palavra cintilante", veio do seu fascínio por pedras semi-preciosas ("Era muito novo quando mandei fazer o meu primeiro anel, com uma ametista - a pedra do meu signo, sou aquariano. Adoro anéis grandes e hoje exagero, com a ligação ao espectáculo").

Um anel de ametista acompanha (o termo é dele) Fernando no filme de João Pedro Rodrigues em que a sua personagem, Tonia, vive atormentada na fronteira entre géneros - o masculino e o feminino - e esse não ser "carne nem peixe" de que o namorado a acusa. Fernando conhece bem esse tormento que na maior parte dos casos viu transformar-se em massacre. "Conheci situações de transexuais que se transformaram em fabulosas mulheres e depois acabaram por se suicidar ou provocar o seu próprio assassinato. Muita gente transforma-se [faz a chamada operação de mudança de sexo] e depois percebe que cometeu um erro." Isso sucede, julga Fernando, por dois motivos essenciais. "Primeiro, a transformação nunca está ao nível do sonho. Ninguém consegue fazer aquilo que só a natureza consegue. E os relacionamentos emocionais são muito complicados. As pessoas nunca se sentem amadas como acham que merecem, nunca está à altura do que antecipavam." Se, admite, é provável que ninguém se sinta amado à medida da ideia que tem do que deve ser o amor, no caso dos transexuais a via dolorosa das transformações físicas e dos tabus e discriminações, do construir de uma imagem e de um corpo salvíficos, mais "autênticos" (pegando na frase extraordinária de uma personagem transexual de Tudo Sobre a Minha Mãe, de Almodóvar, "Sou tanto mais autêntica quanto mais me aproximo da ideia que tenho de mim"), faz do amor um lugar de redenção ainda mais elevado e inatingível. "Só conheço um caso bem sucedido, uma transexual operada que conheci em Espanha, casou e agora vive em Paris."
Ele próprio chegou a pensar nisso, há muito muito tempo, quando começou a fazer transformismo. "Aos 18 anos é normal que não se saiba bem o que se é e o que se quer. E ao enveredar por este tipo de espectáculo é normal pensar isso. Chegaram a oferecer-me as operações." Nunca aceitou e aconselha toda a gente a não fazer. "Passo a vida a dar conselhos. Podem servir para mais nada, mas pelo menos fico reconfortado comigo."

Nascido em 1961, na Mouraria, filho de "um comerciante de pronto-a-vestir e de uma vendedeira de mercado", chegou a ser empregado numa loja de roupa (não do pai) e numa florista na avenida de Roma, antes de descobrir que ia passar a vida num palco. "Saía à noite, ia ao espectáculos e um dia fui convidado a experimentar." Vivia já fora de casa dos pais quando se iniciou no transformismo, mas  a transição criou alguns engulhos. "Os meus pais no início não reagiram bem mas depois, quando perceberam qual era a linha do meu trabalho e a minha postura fora do espectáculo perceberam." Confessa que nos primeiros três anos se sentia deslocado. "Andava a apanhar bonés, não percebia o que fazia. Ainda por cima ganhava-se muito pouco..." Foi nessa altura que decidiu pedir ajuda profissional. "Contratei um coreógrafo, um bailarino cubano que tinha fugido num tour a França, o Oscar Gonzalez. Ensinou-me o que é estar num palco, disse-me para aprender dança clássica."  De 1985 a 1993, andou em tournée fora do país, sobretudo em Espanha. "Tinha um espectáculo com um mínimo de cinco pessoas. E percebi que se podia viver de outra forma, mais ligeira. Percebi que era possível estar num intervalo de  um show de travesti e ir jogar ao bingo com a peruca, a maquilhagem, os saltos, e ninguém me chatear. Isto sucedeu no meio da Andaluzia, numa cidade comparável a Évora. Tinha duas horas entre shows e o dono da casa perguntou-me se não queria ir com ele fazer tempo para um bingo ali perto. Eu não queria ir, com medo das bocas, mas ele insistiu e fui com outro transformista. Ia nervosíssimo, cheio de medo. Mas entrámos e ninguém olhou para nós, ninguém."

Do que ganha hoje, cabeça de cartaz e director do espectáculo do Finalmente bar (Lisboa), não quer falar. "Durante o ano tenho várias outras actividades, cenografia das marchas de Lisboa, por exemplo. Fiz uma peça com a Fernanda Lapa, fui há pouco tempo chamado para fazer a maquilhagem de um espectáculo do Filipe La Féria. E entrei noutros filmes antes deste - A Raiz do Coração e A Outra Margem - mas este é o primeiro como protagonista. Foi muito duro, trabalhar 12 horas por dia, e emocionalmente complicado." Considerado o actual decano dos transformistas portugueses, conheceu não só as velhas glórias - como Guida Scarlatty e Lídia Barloff - como todos os que foram fazendo espectáculos de travesti, incluindo Gisberta Salce Júnior, transe- xual brasileira assassinada no Porto em 2006. Prefere não falar do caso, que conhece mal. "Penso que terá sido o resultado de uma vida complicada." Também Gisberta, mesmo se a história de João Pedro Rodrigues e de Rui Catalão (que fez reportagens sobre o meio transexual e transformista como jornalista do Público) nada tem a ver, directamente, com a dela, morreu como um homem. Foi aliás como homem (não era uma transexual completamente operada, tinha apenas feito cirurgia no rosto e nos seios e os seus documentos de identificação eram masculinos) que foi referida nas notícias que davam conta da descoberta do seu corpo e das torturas, levadas a cabo por um bando de menores, que resultaram no seu homicídio. Morreu também "como um homem" Luna, outra transexual de origem brasileira espancada até à morte cujo corpo foi colocado num contentor no Conde Redondo (zona onde se prostituía) e descoberto em Fevereiro de 2008 numa lixeira de Montemor. Fernando suspira. "A Luna conhecia muito bem, era muito boa pessoa, tive muita pena que tivesse enveredado por esse caminho da prostituição, que se tenha metido nas drogas... Conheço tantos casos desses, tantos."

A sempiterna ligação entre transformismo, travestis, transexuais e prostituição alimenta-se de histórias como estas e do preconceito - como o preconceito alimenta, com a dificuldade de conseguir um emprego "normal", o recur- so à prostituição. "As pessoas fazem essa identificação por pura ignorância, têm de saber distinguir. Mas é verdade que muita gente acaba por ter de recorrer a isso por não arranjar mais nenhum modo de vida."

Outra confusão mais que frequente: a de transformismo e homossexualidade. "Não é a mesma coisa, claro. Conheço um transformista português que tem agora 60 e tal anos casado, com filhos, e que fazia isto com o apoio da mulher. E há a Dame Edna, que é um transformista americano de 70 anos que aparece em imensos filmes - é aquele do cabelo azul, sabe? - e que também é casado e com filhos. E continua, com essa idade, a fazer a sua personagem."  Se vai seguir-lhe o exemplo, não sabe. "A actual panorâmica social não indica ser a melhor altura para me confrontar com a reforma. É uma questão de saúde, também. Mas não creio que no nosso país se possa fazer isto até muito tarde."
Na voz e na pose,  afecta uma serenidade polida, às vezes cansada. Muitas entrevistas, talvez. Muita curiosidade por este mundo que diz "muito mais vasto" que o retratado no filme que protagoniza. "Há imensas formas de abordagem, do Transamerica ao Priscilla, passando pelo Corações de Papel e pelo Almodóvar... E pelo Morrer como um Homem. Tantas." A de viver como um homem, por exemplo. "Um homem normal e corrente", como ele se define. Alguém que escapou à maldição que a noite e o transformismo carregam e atingiu "um equilíbrio". "Tive a sorte de ter encontrado alguém com quem partilho a minha vida e o tempo. Isso foi fundamental". Não é sempre? 

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