O realizador chinês Jia Zhang Ke já tinha competido duas vezes no Festival de Veneza, com Plataforma (2000) e O Mundo (2004). À terceira foi mesmo de vez, e Zhang Ke ganhou o Leão de Ouro desta edição 63, com Still Life, que foi o filme-surpresa deste ano e, curiosamente, o último a entrar na competição. Não sendo um dos principais favoritos, Still Life constava na "segunda linha" do lote de títulos que podiam aspirar à vitória, com I Don't Want to Sleep Alone, de Tsai Ming- -Liang, e Nuovomondo, de Emanuele Crialese. E o júri presidido por Catherine Deneuve acabou mesmo por recompensar um dos mais importantes nomes do cinema chinês de hoje..Passado na zona onde foi construída a monumental Barragem das Três Gargantas, que está a inundar parte da região, submergindo cidades e obrigando ao realojamento (muitas vezes forçado) das populações, Still Life documenta as consequências físicas e humanas desta contestada obra, concretizada numa altura de mudança vertiginosa para a sociedade chinesa. Este é o pano de fundo contra o qual Zhang Ke desenvolve as histórias de duas pessoas que voltam à região por motivos diferentes, mantendo-se fiel à sua estratégia de registar as grandes alterações do seu país a partir de enredos pessoais ou de movimentações de pequenos grupos..Bobby, de Emilio Estevez, ficou em branco, mas os dois filmes que reuniam um amplo - e pouco habitual - consenso como os melhores apresentados este ano a concurso, The Queen, de Stephen Frears, e Coeurs, de Alan Resnais, foram distinguidos. O primeiro teve o Prémio de Argumento, para Peter Morgan, e a esperada Taça Volpi de Melhor Actriz para Helen Mirren pelo seu papel de Rainha Isabel II. Nos agradecimentos, Mirren chamou a Morgan "o pai do filme", a Stephen Frears "a mãe", e disse que era "apenas um bocadinho do ADN do filme. Coeurs recebeu o segundo maior prémio, o Leão de Prata da Realização, mas não lhe teria ficado mal o de ouro..Na Taça Volpi da Interpretação Masculina é que caiu a grande nódoa da premiação. Foi para o sonolento Ben Affleck, intérprete mortiço do actor George Reeves, o Super-Homem original da televisão, no logo esquecido Hollywoodland. O festival foi mau para papéis masculinos, mas o júri ainda chamou mais a atenção para o facto. Affleck, ausente nos EUA, agradeceu por SMS..A premiação foi distribuída com abrangência e boa pontaria. O júri de Veneza 2006 conseguiu distinguir filmes de qualidade e mainstream, como The Queen; um nome "histórico" como Alain Resnais, que trouxe um dos seus melhores filmes ao festival; o cinema chinês com o Leão de Ouro, consagrando finalmente Jia Zhang Ke; o cinema de autor militante com o Prémio Especial para a Obra dado a Jean-Marie Straub e Danièle Huillet (Quei Loro Incontri); o cinema italiano, com o Leão de Prata de Revelação a Emanuele Crialese por Nuovomondo (embora esta seja já a terceira longa metragem do realizador); e o cinema terceiro-mundista de mensagem "humanista", com o Prémio Especial do Juri para Daratt, do chadiano Mahamat-Saleh Haroun. Insólita foi a recompensa da francesa Isild Le Besco com o Prémio Marcello Mastroianni (por L'Intouchable, de Benoît Jacquot), dado a "um jovem actor ou jovem actriz estreante". É que Le Besco já tem mais de vinte filmes no seu currículo....À frente do Festival de Veneza há três anos, Marco Müller levou a cabo mais uma excelente edição, e não tem que temer a concorrência do novo Festival de Roma, mais "popular" e glamuroso, anunciado para Outubro. Se o Governo de Romano Prodi der à mostra os apoios reiterados aqui há dias, em especial para a construção do novo Palácio do Cinema e o investimento nas infra-estruturas, e Müller continuar na direcção, os próximos anos poderão ser memoráveis para o Festival de Veneza.