Visita ao reino dos sonhos

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A lista de prémios conquistados pela série Sandman daria para encher parte significativa deste texto, e a lista de elogios que lhe foram feitos ocuparia todo o jorral. O próprio Norman Mailer afirmou que Sandman «era, para além de tudo o resto, uma BD para intelectuais», o que permitiu a Neil Gaiman conquistar um prestígio que extravasou em muito as fronteiras da banda desenhada.

Ao longo de 75 números, lançados a partir de 1989 a um ritmo mensal, concluídos já na segunda metade dos anos 90 e posteriormente compilados em livro, Sandman foi crescendo tanto em qualidade como no reconhecimento do público, até ser considerada, de forma praticamente unânime, como uma das melhores séries de BD de todos os tempos. Quinze anos depois, chega enfim a Portugal, com a Devir a assumir a publicação da série em pequenos volumes que compilam quatro números dos Sandman originais (as edições de luxo disponíveis em inglês nas lojas de importação reúnem, em geral, o dobro).

Sandman Prelúdios - Volume I marca o início da colecção, dando os primeiros passos - de um modo geral, modestos - na definição dos ambientes e da personagem que dá título à série. Sandman recupera uma personagem à altura praticamente esquecida que aparecera na editora DC Comics algures na década de 40. Já segundo a visão de Gaiman, Sandman, o Senhor dos Sonhos, é invocado por engano e aprisionado na Terra durante 70 anos, até se libertar e iniciar o processo de recuperação dos símbolos que lhe dão o poder e que haviam sido roubados.

É basicamente a isto que se resume o primeiro arco de histórias de Sandman agora publicadas, e que estão ainda longe do engenho e da inventividade narrativa que mais tarde a série irá revelar. O próprio Gaiman o admite num posfácio escrito em 1991 «Ao reler algumas destas histórias hoje em dia, confesso que acho que são meio deselegantes e irregulares, embora mesmo a mais atrapalhada delas tenha algo - uma frase, ou talvez uma ideia, uma imagem - de que ainda me orgulho.» Eis um bom resumo da investida criativa inicial de Gaiman, onde facilmente se encontram algumas fragilidades, sem dúvida - até a nível gráfico, com o pincel partilhado por um ainda jovem Sam Kieth e por Mike Dringenberg, inventivos na planificação mas por vezes demasiado obscuros -, mas onde já é inteiramente perceptível a profunda originalidade da série.

Originalidade é a palavra-chave. Porque apesar de Sandman ser a recuperação de uma velha personagem e de o universo visual da série prestar tributo aos comics de horror da EC que haveriam de ser banidos pela censura americana no pós-guerra, existe uma estrutura engenhosa que nunca antes havia sido utilizada, caracterizada pela extrema plasticidade narrativa quando o herói é o Rei dos Sonhos, tudo parece possível. Hábil como poucos, Gaiman aproveitou para criar a sua própria mitologia, entrando pelo mundo real, irreal e surreal, como no notável conto Uma Esperança no Inferno.

Assinale-se que a edição portuguesa de Sandman conta com um prefácio exclusivo do autor, que por cá passou em 2003. Neil Gaiman tece elogios ao país (fica-lhe bem) e propõe paralelismos com os ambientes da série «Há algum tempo que suspeito que Portugal não existe inteiramente no mundo real ; há algo na qualidade da sua luz do sol, por exemplo, que eu antes só encontrei em sonhos.» Vamos ver se estas afinidades permitem a Sandman alcançar o êxito que certamente merece.

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