Divide-se a "doutrina": alguns gostariam, outros nem por isso, que a digressão tripartida que a alemã Ute Lemper cumpre em Portugal ainda antes do regresso da primavera se baseasse na "aventura" do seu disco mais recente, The 9 Secrets. Por uma razão simples e legítima: porque nesse álbum - que apresenta como antecessor imediato Forever, dedicado aos poemas de amor de Pablo Neruda - a cantora mergulha, compondo e cantando, na obra do escritor brasileiro Paulo Coelho..Melhor ainda, aproveita e adapta passagens do livro Manuscrito Encontrado em Accra e rende-se à "mensagem" de Coelho. Não significará, seguramente, a "morte" da artista, tanto mais que, se pusermos a memória a funcionar, um dos expoentes do rock brasileiro, Raul Seixas, trabalhou e cresceu com o apoio de Paulo Coelho. E outra grande interprete, a "Pimentinha" Elis Regina, chegou a gravar um poema do escritor de O Alquimista, ainda que a partir de um original de Armando Manzanero..[youtube:aNaIQPuR_ek].Insondável ou incómoda, alguma razão haverá para que Ute Lemper tenha chamado ao seu novo espetáculo Songs from the Heart. Ora é sabido que, no seu coração, moram Weill e Brecht, Michael Nyman, Hollaender, Charles Dumont, Kosma e Prévert, Stephen Sondheim, Paul Célan, Philip Glass, Astor Piazzola, Jacques Brel, Georges Moustaki, Hans Eisler, Chava Alberstein, mas também Joni Mitchell, Van Morrison, Sting, Nick Cave, Neil Hannon (dos Divine Comedy), Elvis Costello e, claro, Tom Waits. Desta lista, uma espécie de "quem é quem" entre os melhores da música desde há mais de um século para cá, acabarão por saltar os autores eméritos que La Lemper cantará na Figueira da Foz, em Lisboa e no Porto. Com duas certezas: a primeira passa pelo pleno das capacidades desta mulher de 53 anos ser invariavelmente atingido em palco, onde ela pode somar voz e gesto, pormenores de interpretação e uma teatralidade sensual intensa. Talvez aquilo que separa uma diva de uma boa cantora....Segunda, a convicção profunda de que cada reencontro com Ute Lemper é uma descoberta - de cada vez, mesmo nos clássicos que há muito chamou à sua "magistratura de influência", vai aparecendo um novo tempero, um acrescento inédito, uma inflexão antes nunca escutada, que garantem que nunca ficamos pela repetição. E, já agora, que é melhor aproveitar enquanto a magia dura..Em qualquer canto.Se Kurt Weill (1900-1950), o compositor judeu alemão que fugiu aos nazis e acabou refugiado e reconhecido em Nova Iorque, assumiu sempre papel de destaque entre as escolhas da sua compatriota, a verdade é que esta nunca se cingiu a uma só dimensão musical - as suas presenças como Sally Bowles no elenco parisiense do musical Cabaret, logo no arranque da carreira, e, mais tarde, como Velma Kelly, nas versões londrina e nova-iorquina de Chicago, permitiram-lhe ganhar a dimensão do palco e até exercitar em público a primeira das suas paixões artísticas, a dança..Mais se espantarão aqueles que tomam Ute Lemper como uma criatura unidimensional, quando souberem que ela cumpriu - e bem - a dobragem para alemão dos diálogos e das cantigas de Ariel, em A Pequena Sereia, e de Esmeralda, em O Corcunda de Notre-Dame, nas versões animadas da Disney. Talvez a circunstância de Ute Lemper ser hoje mãe de quatro filhos (dois de cada casamento) possa ter contribuído para que ela aceitasse esse desafio, primordialmente dedicado aos mais novos..Mas estamos perante um daqueles casos em que a diversidade não se confunde com o diletantismo: a cantora aproveita a multiplicidade do seu reportório para se mostrar em várias línguas - alemão, francês, inglês, espanhol, italiano, russo, ídiche. De resto, a própria Lemper pode reclamar o título de cidadã do mundo: nasceu (a 4 de julho de 1963) em Münster, Alemanha, e aí viveu antes de passar por Viena, Berlim, Estugarda, Paris, Frankfurt e Londres, para acabar por se fixar em Nova Iorque, onde reside desde 1999. Como vimos, Paulo Coelho valeu-lhe uma nova etapa, no universo lusófono: no disco 9 Secrets há mesmo uma passagem (na canção Movimento) em que a cantora aborda, sem medos, o "português com sotaque doce". O que, ainda assim, não invalida o desejo de que possa - nas suas demandas futuras - vir a abordar, para completar a sua viagem de circum-navegação musical, a Bossa Nova de António Carlos Jobim e, de uma forma sistemática, o Great American Songbook de Cole Porter, Irving Berlin, Johnny Mercer e outros "suspeitos do costume"..[youtube:SHFXEPYU0FQ].Mesmo improvável, até porque a maturidade é mais ingrata quando pensada no feminino, ainda lhe resta uma abordagem mais continuada ao cinema. Para já, ficam registadas colaborações seletas com realizadores de eleição, como Peter Greenaway (Os Livros de Próspero), Robert Altman (Prêt-à-Porter, sublinhada pela célebre cena do desfile na passerelle, nua e grávida) e, mais recentemente, Woody Allen (Magia ao Luar, em que dá corpo e voz a... uma cantora de cabaret). Lá atrás, no tempo, poderia igualmente ter dado continuidade à sua primeira paixão, a já referida dança: chegou a contar com peças coreografadas por Maurice Béjart, por exemplo, exclusivamente para ela..Como a distribuição das faculdades se confirma manifestamente injusta para o comum dos mortais, é ainda uma pintora consagrada - dita neoclássica - com dezenas de exposições já concretizadas. Acabamos por concluir que o segredo da dama também passa pelas suas recusas, como aconteceu ao declinar um papel de Bond girl num dos filmes de 007. Em compensação, parece categórico e indesmentível o gozo que carrega, com igual intensidade, numa mediática participação no concerto de The Wall (Pink Floyd) junto ao derrubado Muro de Berlim ou numa quase anónima colaboração no disco de homenagem ao compositor italiano Nino Rota, parceiro das estradas de Fellini.Renova-se o aviso: é no palco que se agiganta. Como aqui se escreveu há ano e meio, momento da anterior visita de Ute, do alto do seu metro e 75, bem penteada, pintada e vestida "para matar" (e nada há de vulgar nesta expressão e neste caso concreto), olhos rasgados, sorriso ocasional, drama q.b., esta alemã de alcance planetário parece transcender-se sempre. Seduz, mas guarda distâncias. Suplica, mas com a altivez e a dignidade dos eleitos. Salvo melhor opinião, isto sim, é uma diva. E estas, se pecam, é sempre por escassez. O que, neste caso, não quer dizer defeito, mas raridade..Informação Songs from the Heart.Amanhã, às 21.30, Centro de Artes e Espetáculos, Figueira da Foz.Bilhetes a 25 euros.Sexta-feira, às 21.00Centro Cultural de Belém, Lisboa Bilhetes de 22 a 42 euros.Sábado, às 21.30, Casa da Música, Porto Bilhetes a 32 euros