Uma terra de ninguém inquietante e genial

Publicado a
Atualizado a

Um velho exausto desce dum comboio. Pretendia seguir até Belamonte, para visitar os pais. Mas o ar sufocante da carruagem de janelas soldadas, a sede que o persegue como uma maldição e o calor insuportável que lhe derrete a alma obriga-o a apear-se em Mosteiros, uma aldeola de que nada sabe.

É provável que a inquietação de Hugo se cole ao espectador de (Selvagens) Homem de Olhos Tristes, a peça que o austríaco Klaus Händl assinou em 2003, agora em cena no Teatro Aberto. A mórbida confusão mental deste protagonista, sempre à beira do colapso, nunca é verdadeiramente explicada. Pelo contrário, as personagens que o desviam do seu caminho - dois irmãos que concluem as frases um do outro, um pai mudo que se deixa espancar e uma filha enclausurada que espera um salvador - só intensificam a estranhíssima sensação de se ter perdido o pé num pesadelo infernal.

Este mundo às avessas - não será por acaso que, artisticamente, Klaus Händl inverte o seu nome, assinando Händl Klaus - é magistralmente recriado por João Lourenço. Face a um texto elíptico e aparentemente anárquico - semelhante, na sua construção, a um sonho bizarro - o encenador e a dramaturgista Vera San Payo de Lemos investem na clareza da tradução (assinada por ambos) e num requintado e preciso trabalho de modulação de registos.

É absolutamente notável o contraste entre a expectativa ansiosa do Hugo de João Perry - o meio-tom da sua voz aflita, sempre estrangulada na garganta, quase torna gráfica a sede (real e metafórica) que o aflige permanentemente -, a energia maliciosa dos dois irmãos (o monstro bicéfalo de Jorge Corrula e Paulo Oom tanto remete para o pânico gerado pela violência urbana contemporânea, como insinua uma consciência dilemática do passado), a inexpressividade apática do Walter Flick de Francisco Pestana (onde demissão rima paradoxalmente com resistência), e o histrionismo feérico de Gracinda Nave (uma virgem amaldiçoada a reproduzir mortos-vivos tão inúteis e incapazes de contemplar o Sol como ela).

O expressionismo surrealista desta estética - invulgar no percurso do Novo Grupo - surge em toda a sua crueza clínica no cenário de João Mendes Ribeiro. Os módulos brancos que definem os três espaços por onde Hugo passa - a gare, o bar e a casa dos Flick - conjugam fachadas rigorosas com interiores descarnados, como se fosse num algures indefinido no tempo que ganhassem sentido estas personagens sonhadas numa má noite, numa má pousada.|

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt