UMA CARTA EUROPEIA

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As eleições para a Presidência da República Francesa, um dos acontecimentos europeus que inevitavelmente condiciona a política global da União, não podem deixar de conferir especial importância ao futuro da chamada Constituição e à política de acolhimento, integração e assimilação dos milhões de imigrantes que até agora foram sobretudo condicionados pela teologia de mercado. O projecto constitucional tem um especial toque de origem, que foi a presidência excessivamente interventiva do grupo de trabalho que pareceu imaginar-se constituinte. Um parágrafo, depois discretamente esquecido, proclama que os povos estão "gratos aos membros da Convenção Europeia por terem elaborado a presente Constituição em nome dos cidadãos e dos Estados da Europa". Porque acontece frequentemente que estas inspirações se libertem da memória dos antecedentes, numa linha de modesto profetismo sem raízes, talvez seja justa a recordação das aspirações que desafiaram as limitações estruturais dos tempos em que a violência da guerra era absorvente de todas as capacidades de resistência e protesto. Lembram-se o movimento alemão Rosa Branca, que antes da paz, liderado pelo professor Huber da Universidade de Munique, apoiado pelos seus estudantes de que se destacaram Hans e Sophia Scholl, lançou o apelo a uma Alemanha federal numa Europa federal, tendo sido decapitados, ou o Manifesto dos prisioneiros de Ventotene, ainda a Declaração dos Resistentes Europeus, alguns exemplos dos muitos recolhidos por Jean-Pierre Gouzi por meados do século passado. Mas talvez mereça especial menção Richard Coudenhove-Kalergi, cujo pensamento está hoje recolhido pela FCK - Fondation Coudenhove-Kalergi, fundada em 1978, com sede em Genebra. Filho de um diplomata da monarquia austro-húngara e da sua mulher japonesa, foi logo no fim da I Guerra Mundial que lançou o movimento destinado a eliminar os demónios interiores europeus que fizeram da sua História uma História de guerras civis. Em 1923 criou a União Pan-Europeia, tendo em vista evitar os desastres que seriam convocados pelo sovietismo, pelo nacional-socialismo e pelo fascismo. Partiu desta observação posta no seu Manifesto Europeu de 1924: "Será possível que, na pequena quase-ilha europeia, 25 Estados vivam lado a lado na anarquia internacional, sem que um tal estado de coisas conduza à mais terrível catástrofe política, económica e cultural?" A guerra de 1939-1945 mostrou que tinha razão. Daqui o seu Movimento Pan-Europeu, advogado de um conjunto de instituições que eliminassem futuras revisões de fronteira, que substituíssem os confrontos militares pela arbitragem, que regulassem a disputa económica e apontassem para a moeda única, que assegurassem o estatuto pacífico das minorias. Um dos seus instrumentos principais foram os Congressos Pan-Europeus, o primeiro reunido em Viena de 3 a 6 de Outubro de 1926: ali estiveram Edouard Bènés, Aristide Briand, Adenauer, Einstein, Ortega, Churchill, Bernard Shaw, entre outras celebridades da época; em 1930 reuniu-se em Berlim o II Congresso, onde Briand apresentou o seu Memorando dirigido aos europeus; no III Congresso, de 1932, distinguiu-se Maurice Schumann; o IV Congreso, reunido em Viena em 1936, teve como presidente o infeliz Kurt Schuschnigg. Logo no começo da II Guerra Mundial animou a constituição, em Nova Iorque onde ensinava, de um Comité Americano para uma Europa Unida e Livre, presidido por Fulbright e W. Bullit; em 1943, no V Congresso em Nova Iorque, foi lida a mensagem de Churchill preconizando a criação do Conselho da Europa, e em 1948 reuniu-se na Haia o Congresso presidido por Churchill. É útil a iniciativa da presidência da FCK, nesta data exercida por Alois Mock, antigo vice-chanceler e ministro dos Negócios Estrangeiros da Áustria, que lançou as Cartas Europeias, repondo a discussão do legado. O esquecimento da História, ou, ainda mais inquietante, o esquecimento bem lembrado da História, pode servir ambições de imagem, mas não contribui para definir os alicerces do futuro, nem ajuda a que a Europa ultrapasse a situação presente de potência virtual.

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