Um QEC duro de roer

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O próximo QREN para o período 2014-2020, que ficou precocemente conhecido por QEC (Quadro Estratégico Comum), embora rebatizado como Portugal 2020, está longe de ser bolo doce e macio.

Desde logo há que registar um facto: o envelope financeiro global baixa, naquilo que é comparável, face ao atual QREN 2007/2013. De facto, dos 21 402 passaremos, no Portugal 2020, para cerca de 21 180 milhões de euros (valor corrente; FEDER+FSE+FC).

Mas, sobretudo, o que muda drasticamente é a tipologia dos conteúdos e das formas que os apoios financeiros terão no futuro.

As principais diferenças impostas pela UE são as seguintes:

1- Existência de condicionalidades ex ante. Isto é, são impostos condicionalismos que os países terão de respeitar para serem apoiados financeiramente.

Desde logo terão de garantir os já conhecidos rácios de "equilíbrio" no plano dos orçamentos de estado.

No domínio de várias políticas públicas há drásticas imposições que devem estar concretizadas/asseguradas antes da aprovação final do Acordo de Parceria (maio 2014).

Todas as imposições vão no sentido de maior liberalização, de intensificação da privatização, da flexibilização sociolaboral e do managerialismo público. A europa neoliberal em toda a sua pujança ideológica, portanto.

2- Passa a haver temas obrigatórios para os projetos candidatáveis. Isto é, a UE exige que uma parte muito importante do financiamento seja destinada à competitividade e inovação das empresas e outra à eficiência energética e energias renováveis.

Nas regiões classificadas como "mais desenvolvidas", e no caso português, temos Lisboa e Madeira (PIB per capita > 90%) nessa condição, isto significa que 80% das verbas disponíveis têm de destinar-se a estes dois temas.

São os assuntos da moda nos últimos dez anos, em particular depois de 2007 (Tratado de Lisboa), com a tendência "politicamente correta" centrada nos temas ambiental e inovação.

Na prática, isto determina que uma enorme parte dos financiamentos se destinarão a empresas privadas, diminuindo drasticamente as verbas para o sector público, designadamente para os municípios.

Como os dinheiros europeus são provenientes dos impostos pagos pelos cidadãos e, portanto, são dinheiros que se destinariam às funções públicas, poderemos dizer que haverá, por esta via, uma importante privatização de meios financeiros.

3- Os financiamentos passarão a ser atribuídos prioritariamente aos projetos candidatados que apresentem melhores "resultados" previstos.

Haverá fixação de metas quantitativas e qualitativas que darão prioridade à eficiência económico-financeira. Os indicadores que virão a ser estabelecidos, designadamente os qualitativos, apresentarão a mesma tendência neoliberalizante já referida.

4- Complementarmente, haverá alterações quanto aos procedimentos (simplificação) e às elegibilidades.

Trata-se, portanto, de um quadro estratégico pautado por três aspetos centrais:

a) Aprofundar o movimento da privatização das produções e dos serviços essenciais; incrementar a liberalização, presumindo que a concorrência tudo resolve, mesmo quando se sabe que ela é fictícia (serviços das redes infraestruturais); forçar a desregulamentação e aumentar a crença irracional na capacidade da autorregulação dos mercados.

b) Minorar os aspetos sociais mais bicudos que, sendo resultantes da forma como a UE tem enfrentado a prolongada crise financeira e económica, poderiam levar à convulsão e ao confronto sociolaboral. Assim, destinam-se importantes envelopes financeiros para amaciar os efeitos do desemprego jovem, da exclusão social e da desadequação formativa.

c) Insistir nos conhecidos conceitos "politicamente corretos" em torno da resiliência, das parcerias estratégicas, da sustentabilidade (só ambiental), das alterações climáticas, da governança, do benchmarking e benchlearning , da visibilidade e do marketing urbano, etc., que, com o seu carácter adormecedor, facilitam a aplicação do essencial da receita antes já caracterizada.

A Europa não quer, por exemplo, financiar mais infraestruturas educativas (escolas básicas e secundárias), infraestruturas rodoviárias (mesmo que sejam last mile fundamentais para projetos económicos e, no caso da regeneração urbana, apenas facilitarão os projetos financiáveis no estilo Jessica. Quanto à habitação, apenas em casos pontuais que envolvam situações sociais extremas, mas sempre em baixa extensão.

Quanto água, esgotos e resíduos sólidos serão privilegiados os projetos que respeitem as já referidas condicionalidades ex ante, ou seja, correlacionados com a liberalização e privatização.

Até no que diz respeito às PME, tão referidas no discurso governamental, é necessário esclarecer que os apoios a fundo perdido serão reduzidíssimos. A grande parte do financiamento será canalizável através de empréstimos, de bonificações e dos instrumentos de engenharia financeira. Para isso servirá no designado "banco de fomento" que, como grossista, fará a gestão dos fluxos. O retalho será assegurado pela banca privada, claro!

Aqui está, portanto, o duro QEC que o Governo português subscreve e diz ter concertado com o PS.

*Membro da Comissão Diretiva do POR Lisboa

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